Edição 483 | 18 Abril 2016

Um marco para a Igreja pós-Vaticano II

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João Vitor Santos | Edição Leslie Chaves | Tradução Walter O. Schlupp

Para Massimo Faggioli, a exortação sinaliza a disposição do papa para o diálogo com os religiosos e a sociedade

O perfil pastoral, disposto ao encontro com o outro, seja ele diverso de si ou não, continua permeando as ações de Bergoglio. Na exortação Amoris Laetitia essa característica se evidencia já na forma como ela foi elaborada. “É o primeiro documento que um papa publica como exortação pós-sinodal depois de um sínodo de verdade, com autêntico debate entre os bispos. Em certo sentido, é a primeira vez que um papa atua na colegialidade, colegiadamente, desde o Vaticano II”, ressalta Massimo Faggioli. Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, o estudioso frisa que, por ser resultado de discussões no clero a respeito de temáticas complexas, como a questão do casamento e da sexualidade, a exortação torna-se uma referência para o pontificado de Francisco e para a Igreja pós-Concílio. 

Apesar de apontar a importância e os avanços que Amoris Laetitia representa, ao longo da entrevista Faggioli também analisa alguns dos principais limites da exortação. “A linguagem sobre mulheres e gênero é melhor do que em documentos anteriores, mas não se adapta bem à compreensão teológica vigente na teologia católica de hoje. É um passo em frente, mas ainda bastante tímido. O que não é um passo em frente é a seção sobre a homossexualidade, que basicamente é extraída do Catecismo”, avalia. Para o estudioso, o mais importante é que o documento não encerra os debates, mas propõe mais uma importante pauta para o papado, o qual, em sua análise, “transformou-se num púlpito global no século XX”.

Massimo Faggioli é doutor em História da Religião e professor de História do Cristianismo no Departamento de Teologia da University of St. Thomas, de Minnesota, Estados Unidos. Seus livros mais recentes são Vaticano II: A luta pelo sentido (Paulinas, 2013); True Reform: Liturgy and Ecclesiology in Sacrosanctum Concilium (Liturgical Press, 2012).

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Qual foi a sua expectativa, o que esperava do documento?

Massimo Faggioli - A exortação Amoris Laetitia era esperada com particular apreensão, porque é o primeiro documento que um papa publica como exortação pós-sinodal depois de um sínodo de verdade, com autêntico debate entre os bispos. Em certo sentido, é a primeira vez que um papa atua na colegialidade, colegiadamente, desde o Vaticano II. A Igreja Católica ainda está tentando aprender a fazer isso. Além disso, o documento apresenta problemas culturalmente identificados com o catolicismo de hoje: casamento e sexualidade. O documento é um marco para o pontificado e para a Igreja pós-Vaticano II.


IHU On-Line - Quais os pontos mais importantes no documento?

Massimo Faggioli - Em primeiro lugar, uma reafirmação do primado da consciência e a necessidade de a Igreja formá-los, não substituí-los — Francisco o diz exatamente com estas palavras. Em segundo lugar, o novo entendimento do papel do Bispo Papa de Roma e seu ensinamento, que é muito menos expansivo em Francisco e se fia muito mais numa Igreja descentralizada e inculturada. Em terceiro lugar, a ênfase sobre o discernimento espiritual e no "discernimento dinâmico", a fim de decidir situações difíceis entre os fiéis e os pastores; e a ênfase sobre a ideia do gradualismo.


IHU On-Line - Quais são os limites do documento?

Massimo Faggioli - O limite geral do documento é que ele depende da forma como os bispos e pastores locais irão receber e aplicar Amoris Laetitia — e isso poderia ser uma má notícia para muitos católicos. Penso que, no que diz respeito ao texto, os limites deste documento estão nas seções sobre mulheres e gênero, e sobre a homossexualidade. A linguagem sobre mulheres e gênero é melhor do que em documentos anteriores, mas não se adapta bem à compreensão teológica vigente na teologia católica de hoje. É um passo em frente, mas ainda bastante tímido. O que não é um passo em frente é a seção sobre a homossexualidade, que basicamente é extraída do Catecismo e refere-se a um documento da Congregação para a Doutrina da Fé do Cardeal Ratzinger . É resultado do retrocesso do Sínodo de 2015 contra as aberturas feitas no Sínodo de 2014. Dito isso, estas são claramente questões ainda em aberto para o debate, e esse documento não encerra o debate, o que é importante.


IHU On-Line - Quais devem ser os impactos do documento?

Massimo Faggioli - O documento é um desenvolvimento da teologia e da eclesiologia de Francisco: uma Igreja não ideológica, uma Igreja misericordiosa e uma Igreja que não faz de conta que a realidade não exista ou sempre seja uma exceção frente ao ideal. Os críticos de Francisco veem neste documento a continuação de um pontificado que não tem medo de adotar uma nova abordagem para questões disciplinares, tais como casamento e família. Neste sentido, [o documento] irá confirmar-lhes que este papa está mudando aquilo que eles pensam que não pode ser mudado. Mas eu os vejo como uma pequena minoria, que desde o início tem demonstrado certa hostilidade para com Francisco — talvez devêssemos dizer um ódio — que seus antecessores nunca precisaram enfrentar. A recepção pode dar a impressão de uma Igreja dividida por causa de Francisco, mas na realidade Francisco está tentando curar a divisão encarando resolutamente a realidade. As divisões já existiam durante o papado de João Paulo II e Bento XVI, e agora se tornaram evidentes .


IHU On-Line - Como é que o documento lida com antigos conceitos tão presentes nos enunciados de Francisco, tais como misericórdia, tempo e espaço, não-julgar e inculturação? E como ecoam nele premissas e pressupostos de Bergoglio, que ele já tinha apontado na Evangelii Gaudium?

Massimo Faggioli - A exortação Amoris Laetitia baseia-se nos pressupostos fundamentais da Evangelii Gaudium , mas desenvolve-os numa direção que terá impacto sobre a teologia moral (o papel da consciência, discernimento dinâmico) e sobre a eclesiologia (novo papel do papado, descentralização e soluções diferentes para problemas em diferentes partes do mundo). Ambas, Amoris Laetitia e Evangelii Gaudium, são exortações, e isso deveria representar alguma coisa para os que acreditam que os ensinamentos oficiais constam apenas em encíclicas...


IHU On-Line - Como se pode relacionar o conteúdo do documento com o momento que Francisco está atravessando como líder mundial? Qual é o eco e a relação com sua viagem a Lesbos, por exemplo?

Massimo Faggioli - Tecnicamente, essa exortação trata de uma questão interna da Igreja — o casamento —, mas no século XX o papado transformou-se num púlpito global. Se o papa diz algo sobre as questões morais, todo mundo vai notar, sejam católicos ou não. A credibilidade do papa em questões internas é a mesma credibilidade em questões globais (migrantes, justiça social, meio ambiente, etc.): não é apenas uma questão de relações públicas, mas uma questão de credibilidade daqueles que pregam o Evangelho de Jesus Cristo.■

 

Leia mais...

- O que Francisco está dizendo com “Amoris Laetitia”? Artigo de Massimo Faggioli reproduzido nas Notícias do Dia, de 11-04-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Uma guerra cultural assimétrica na Igreja de Francisco. Artigo de Massimo Faggioli reproduzido nas Notícias do Dia, de 29-01-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. 

- A heterodoxia política do Papa Francisco. Artigo de Massimo Faggioli reproduzido nas Notícias do Dia, de 11-11-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Francisco: o primeiro Papa totalmente pós-Concílio. Entrevista especial com Massimo Faggioli publicada nas Notícias do Dia, de 10-05-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- As oposições ao Papa Francisco. Artigo de Massimo Faggioli reproduzido nas Notícias do Dia, de 11-10-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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