Edição 483 | 18 Abril 2016

A preocupação pastoral no tratamento das diferenças

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João Vitor Santos | Edição Leslie Chaves | Tradução Ramiro Mincato

Para Giannino Piana, em Amoris Laetitia a marca pessoal do Papa se evidencia na abordagem das diversas realidades humanas

Tocar em questões complexas emergentes na sociedade contemporânea é uma tarefa delicada. Sobretudo para alguém que representa uma instituição secular como a Igreja. Em sua exortação mais recente, Bergoglio fala sobre a família com o engajamento social e o tom conciliador que lhes são peculiares. “Fiquei impressionado, em todos os casos, pela análise detalhada e precisa que o Papa Francisco faz, que põe em causa os componentes sociais e culturais do estado de crise que a família atravessa, sem ceder em recriminações inúteis e previsões catastróficas”, frisou Giannino Piana, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, a respeito de suas primeiras impressões sobre o documento. 

Ao longo da entrevista, o teólogo ressalta alguns dos pontos que têm causado divergências e as principais características da exortação ao fazer uma análise do texto. Segundo Piana, “o modelo de ética próprio do documento — modelo já presente também em discursos anteriores do Papa e pela primeira vez na Laudato Si’ — está estreitamente ligado a uma preocupação eminentemente pastoral. Trata-se da mediação entre a proposta evangélica em toda sua radicalidade e a atitude misericordiosa com as diferentes (e complexas) situações humanas”.

Para o teólogo, apesar de haver algumas lacunas em Amoris Laetitia, como a abordagem da questão do gênero, no documento o Papa Francisco foi capaz de encontrar o equilíbrio entre discurso religioso e as circunstâncias e potencialidades reais do cotidiano. “Trata-se, em suma, de dar lugar a uma ‘ética do possível’, onde o ideal é posto, constantemente, em relação com a realidade das situações pessoais e do contexto social e cultural em que se vive”, aponta.

Giannino Piana é professor de Ética Cristã na Universidade Livre de Urbino, e de Ética e Economia na Universidade de Turim. É considerado um dos maiores teólogos morais da cena cultural italiana e internacional. Foi presidente da Associazione Italiana dei Teologi Moralisti. É autor de diversas obras, como Omosessualità. Una proposta etica (Assisi: Cittadella Editrice, 2010), Etica scienza società. I nodi critici emergenti (Assisi: Cittadella Editrice, 2005) e Pregare e fare la giustizia (Mangano: Edizioni Qiqajon, 2006).


Confira a entrevista.


IHU On-Line - O que esperava do documento? Correspondeu às suas expectativas?

Giannino Piana - De fato, não esperava conteúdo diferente. A Exortação Apostólica do Papa Francisco reflete (e não poderia ser de outro modo), especialmente em relação às conclusões pastorais, as posições assumidas pelos dois Sínodos, contidas nos documentos finais (em particular, no segundo, o ordinário), e votadas por uma maioria de dois terços. Não significa, no entanto, que não haja aspectos de novidade e originalidade, que trazem claramente a marca pessoal do Papa. Entre estes merece particular destaque a forte marca pastoral que perpassa todo o documento e lhe dá caráter de grande concretude.


IHU On-Line - A que visão de família o Papa se refere? O que se pode dizer do diagnóstico da situação atual, na segunda parte?

Giannino Piana - Não sou sociólogo e não posso expressar, com relação a isso, um juízo competente do ponto de vista científico. Fiquei impressionado, em todos os casos, pela análise detalhada e precisa que o Papa Francisco faz, que põe em causa os componentes sociais e culturais do estado de crise que a família atravessa, sem ceder em recriminações inúteis e previsões catastróficas. 

Mesmo destacando a singularidade e a beleza da família cristã, fundada no matrimônio, não hesitou em colocar a tônica sobre a importância de superar "um estereótipo ideal da família" por considerá-lo "um interpelante mosaico feito de diferentes realidades" (n. 57), ou seja, de diferentes modelos e de diferentes níveis de participação. Tudo isso sem abrir mão da denúncia da presença, em nossa sociedade, de processos de deterioração, caracterizados pela emergência da lógica individualista, consumista e instrumental, que acabam fragilizando extremamente as relações familiares.


IHU On-Line - Que modelo ético é proposto pela Exortação Apostólica?

Giannino Piana - O modelo de ética próprio do documento — modelo já presente também em discursos anteriores do Papa e pela primeira vez na Laudato Si’  — está estreitamente ligado a uma preocupação eminentemente pastoral. Trata-se da mediação entre a proposta evangélica em toda sua radicalidade e a atitude misericordiosa com as diferentes (e complexas) situações humanas. O ideal evangélico deve ser pregado em sua integralidade, com força, porque é o caminho para uma verdadeira humanização do indivíduo e da comunidade humana. Mas, ao mesmo tempo, devemos não esquecer o estado de precariedade e de limite próprio da condição humana, que depende, em última análise — e esta é a interpretação do cristianismo — da natureza criatural e da presença do mistério do mal no mundo.


IHU On-Line - Como se configurou, concretamente, esta proposta ética? A quais critérios de avaliação se faz referência?

Giannino Piana - Amoris Laetitia denuncia os limites da ética legalista e minimalista, insistente em questões doutrinárias ou em obrigações derivadas da lei. Coloca, ao invés, o acento no fato de que o agir moral encontra sua verdadeira manifestação na resposta que o homem dá a Deus que o chama, e em entregar o primado do próprio comportamento ao exercício da caridade. O ensinamento moral, portanto, deve perseguir o ideal da perfeição, deve incentivar os valores mais altos. Mas — enfatiza o Papa — o ideal deve ser proposto dentro da lei da gradualidade, contribuindo, assim, para que cada um — neste critério deve inspirar-se o discernimento — "encontre os caminhos possíveis de resposta a Deus e de crescimento no meio dos limites" (n. 305). Trata-se, em suma, de dar lugar a uma ''ética do possível", onde o ideal é posto, constantemente, em relação com a realidade das situações pessoais e do contexto social e cultural em que se vive.


IHU On-Line - Em que termos o modelo descrito e os critérios assinalados aplicam-se às situações particulares analisadas pelo documento?

Giannino Piana - São particularmente significativos, a este respeito, os três verbos constitutivos do título do oitavo capítulo, onde são apuradas as questões críticas consideradas pelo documento. Acompanhar, discernir e integrar constituem um verdadeiro programa de pastoral (e não só), que destaca claramente o espírito com o qual o Papa Francisco convida a abordar as situações "assim chamadas irregulares" (que ele prefere chamar de "imperfeitas"), para colocar-se seriamente a serviço do seu crescimento. O objetivo é transformar estas situações em oportunidades, valorizando os elementos positivos e criando condições para ampliar suas potencialidades. Tantas e pontuais são as indicações para aplicação do discernimento que leve em conta — pense-se o cenário dos divorciados recasados — a diversidade das situações, e importante é o reconhecimento do valor do casamento civil enquanto constitui um ato de assunção de responsabilidade pública.


IHU On-Line - Há limites no documento, sobretudo em relação às expectativas? Quais são?

Giannino Piana - Os principais limites do documento encontram-se na passagem da enunciação dos princípios orientadores à sua aplicação nas situações críticas emergentes. Em particular, um pouco apressado é o julgamento sobre a questão do gender — questão sem dúvidas delicada, mas que mereceria uma maior atenção devido à sua complexidade — e o mesmo pode-se dizer com relação à avaliação da homossexualidade, onde, ao lado de sublinhar a necessidade de atitude de maior compreensão, reafirmam-se as posições tradicionais do magistério, sem a atenção necessária para o significado pessoal e social que revestem as uniões entre pessoas do mesmo sexo. 

Mais graves e articuladas, no entanto, são as alegações relativas à integração dos divorciados recasados. Neste caso, são oferecidas sugestões valiosas para a participação ativa na vida da comunidade cristã. Permanece aberta (e não completamente resolvida) a questão da comunhão eucarística: é importante a afirmação de que não se deve falar de estado de "pecado mortal", mas o reenvio do juízo ao discernimento, caso a caso, pelos pastores, constitui um encaminhamento talvez demasiado vago, também porque, na ausência de critérios de avaliação mais precisos, pode originar interpretações completamente diferentes, dependendo das posições doutrinárias (e ideológicas) de cada operador pastoral.


IHU On-Line - E sobre a questão da contracepção?

Giannino Piana - A posição do Papa, a este respeito, é prudente. Cita indicações da encíclica Humanae Vitae  de Paulo VI , onde é estabelecido o critério da responsabilidade geradora, não tomando, no entanto, posição sobre a questão dos meios, exceto para sublinhar, na sua avaliação, o critério do respeito pela dignidade humana.


IHU On-Line - Que efeitos terão as indicações da Encíclica na vida das comunidades cristãs?

Giannino Piana - Eu não tenho como fazer previsões precisas. Penso, de qualquer modo, ser indubitável que a Exortação pode (deve) ter reflexos decididamente positivos, acima de tudo, para criar um clima de serena abordagem dos problemas considerados. É importante o convite que o Papa Francisco dirige à comunidade cristã, de não esperar, sempre, todas as soluções de cima para baixo, mas para procurá-las, descendo para o coração das situações, com a consciência — o Papa cita aqui Santo Tomás de Aquino — de que a passagem, dos princípios gerais para os casos particulares, faz crescer a indeterminação. Há aqui, por um lado, uma visão articulada da Igreja, que abre espaço para a autonomia das comunidades locais e, por outro lado, a solicitação da assunção de responsabilidades por estas últimas. Responsabilidade que exige aquisição de maiores competências e implementação de uma pastoral encarnada e criativa.■

 

Leia mais...

- Gênero, sexualidade e biopolíticas. Um olhar teológico. Entrevista especial com Giannino Piana publicada nas Notícias do Dia, de 31-01-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Sexo e gênero: para além da alternativa. Artigo de Giannino Piana reproduzido nas Notícias do Dia, de 16-07-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- A ética do Papa Francisco. Artigo de Giannino Piana reproduzido nas Notícias do Dia, de 24-03-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- O questionário por uma Igreja viva. Artigo de Giannino Piana reproduzido nas Notícias do Dia, de 07-12-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Homossexualidade, primado da pessoa e da relação. Entrevista com Giannino Piana reproduzida nas Notícias do Dia, de 29-10-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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