Edição 482 | 04 Abril 2016

As instituições como escudo contra o capital

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Márcia Junges | Edição João Vitor Santos

Danilo Vaz Curado entende que Hegel faz a defesa de instituições como forma de proteger cidadãos das forças de opressão

A metafísica hegeliana se mostra ainda potente na política ocidental, podendo ser vista como arma de defesa para proteger os cidadãos do capital, o operário da instrumentalização do mundo do trabalho, os povos das invasões de outros povos e assim por diante. “A denominada Filosofia clássica alemã não dissociou a explicitação do presente duma relação de participação ativa nos acontecimentos refletidos”, destaca o professor Danilo Vaz Curado Ribeiro de Menezes Costa. Ele entende que a afirmação está suscetível a críticas. Há quem diga que Hegel e seus pares da filosofia clássica alemã não estavam assim tão preocupados com as questões imanentes do povo, pois há ideia de defesa da superioridade alemã materializada no Estado. “Hegel nunca foi um defensor de nenhum estado concreto particular, por exemplo, a Prússia. Nem tampouco nunca foi defensor de uma suposta superioridade do povo alemão”, esclarece.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Costa explica que “o que Hegel defendia eram instituições que pudessem regular fenômenos suprapessoais em favor dos cidadãos”. Por isso destaca que é importante entender a defesa das instituições por Hegel como propósito de “proteger os cidadãos do capital, então nascente, o operário da instrumentalização do mundo do trabalho, os povos das invasões de outros povos”. Para o professor, é nesta perspectiva que a metafísica hegeliana assume “um protagonismo histórico sui generis, realizando uma profunda revolução na política”.

Danilo Vaz Curado Ribeiro de Menezes Costa é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco – Unicap, onde leciona no Departamento de Filosofia. É um dos autores de Carl Schmitt contra o 'Império' (Recife: EDUFPE, 2009) e escreveu A interrogação filosófica no pensamento de Hegel (Munich: Grin Publishing GmnH, 2012).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - A partir da obra de Hegel, em que medida é possível ler a Lógica sem a Metafísica?

Danilo Vaz Curado Ribeiro de Menezes Costa - A leitura da Lógica, que aqui não deve ser confundida com a lógica formal ou do cálculo proposicional, sem a metafísica pode ser dividida em duas perspectivas: uma externa ao sistema hegeliano e que tem sua história a partir do confronto da tradição analítica, do início do século 20 com a obra de Hegel; e outra imanente, que se nutre da própria transformação que Hegel operou em sua lógica.

Leitura externa ao sistema hegeliano

A leitura externa ganha força a partir das descobertas operadas por Frege  de uma lógica que não ficasse refém do modelo aristotélico de estruturação proposicional. Ou seja, ao compreender a proposição em termos de argumento e função, Frege superou o modelo clássico da proposição lógico-gramatical. Esta inovação, aliada ao primeiro Wittgenstein  do Tractatus e sua tese de isomorfia entre a lógica e o mundo e a reformulação da pergunta acerca do que há em Quine , inaugura a leitura analítica ou sem metafísica da lógica, tal como a realiza Pirmin Stekeler-Weithofer .

Leitura interna ao sistema hegeliano

A leitura interna ou imanente segue os passos da transformação da metafísica operada pela filosofia clássica alemã, especialmente com Kant  e Bardilli , que subordinando à lógica ao princípio transcendental passa a compreender o juízo, a inferência e o silogismo não como determinações formais do pensar, porém como determinações transcendentais do sujeito lógico-pensante constituindo objetivamente os objetos do mundo. Esta transformação operada por Kant como resposta à grande erradicação metafísica promovida por Hume  à metafísica recebeu na filosofia clássica alemã o impulso de Reinhold , Bardilli, Fichte , Schelling  e atinge sua consumação em Hegel. 

Nesta perspectiva, uma leitura sem metafísica a partir da lógica hegeliana não implica a ausência na lógica do discurso metafísico, mas sim a superação lógica da metafísica dogmática (metafísica generalis e metafísica especialis), através da compreensão metafísica da lógica. Hegel propõe uma leitura em que a Lógica substitui os campos de indagação racionais tradicionais da metafísica como Deus, a alma, a origem do mundo e a liberdade. É assim que se entende a lógica sem metafísica em Hegel.

 

IHU On-Line - Quais são os limites e desafios que surgem dessa leitura?

Danilo Vaz Curado Ribeiro de Menezes Costa – Toda interpretação já implica certo comprometimento com o texto interpretado, e, como em toda a interpretação, o risco que se deve admitir é aquele de iluminar determinações conceituais em detrimento de outras. Ao se eleger qualquer uma das duas perspectivas acima assinaladas, já se corre um risco que exporei, em seus traços fundamentais.

A leitura internalista de compreensão de lógica como metafísica corre o risco de insinuar o colapsamento da contingência da realidade na medida em que assume as determinações fundamentais e abrangentes da racionalidade como sendo índices capazes de explicitar em sua mais profunda intensidade a totalidade do que é. Esta sempre foi uma crítica a que pesquisadores como Carlos Cirne-Lima  imputaram a Hegel, e que, em parte, é verdadeira. Hegel, ao unir a doutrina das categorias com a estrutura formal do mundo num sujeito extralógico que se autoexplicita, determinou metafisicamente a série dos possíveis, domesticando o acaso; esta, por exemplo, é a tese de Konrad Utz .

A leitura externalista de ler a lógica sem a metafísica possui o mérito de buscar demonstrar a atualidade da lógica de Hegel ante as lógicas paracompletas, bivalentes e paraconsistentes. Todavia, ao fazê-lo, cai-se numa imperiosa necessidade de reformular o espaço semântico de significações dos principais conceitos hegelianos, violando assim a letra de Hegel para salvar-lhe o espírito; este é o caso, por exemplo, de Pirmin Stekeler-Weithofer.

 

IHU On-Line - Em que consiste a crítica a Pirmin Stekeler-Weithofer?

Danilo Vaz Curado Ribeiro de Menezes Costa – Pirmin Stekeler-Weithofer é um dos grandes filósofos alemães da atualidade, um pensador de obra própria, que no sentido mais claro da tradição continental passa a limpo os principais intervenientes desta tradição, a exemplo de Platão , Hegel, Heidegger , entre outros.

Entretanto, também assumindo uma premissa da tradição analítica, referente à análise lógica dos enunciados e sua necessária correção quanto à vaguidade e ambivalência, elabora uma leitura analítica da lógica hegeliana como uma teoria crítica do significado, numa clara perspectiva reducionista. Isso porque admite uma leitura em termos de filosofia da linguagem, num dos aspectos da linguagem, qual seja, sua semântica com vistas a sua pragmática. Logo, a principal crítica é aquela referente ao reducionismo hermenêutico.

 

IHU On-Line - Que traços fundamentais devem ser apontados acerca da lógica e da metafísica hegelianas?

Danilo Vaz Curado Ribeiro de Menezes Costa – Hegel viveu o avassalador espetáculo do apogeu das ciências modernas e da necessidade de estabelecimento de uma gramática filosófica capaz de explicitar fenômenos, até então, não abarcados nos quadros conceituais da lógica de base aristotélico-medieval. E, também, nem tampouco da metafísica enquanto teoria do Ser, a ontologia geral, que tinha por objeto Deus, e seus desdobramentos enquanto teoria do ens, ou ente. Estas constituíam as ontologias regionais da reflexão e que, ao se preocupar com os problemas da origem do mundo, da alma e da liberdade, davam nascimento reciprocamente à cosmologia, à psicologia racional e à ética.

Hegel incorporou estes temas da tradição lógico-clássica em seu primeiro livro da lógica, a Doutrina do Ser, o próprio nome já o indica, reservando ao segundo livro da Lógica, a Doutrina da Essência, demonstrar que tais conceitos eram apenas aparentemente filosoficamente consistentes, elaborando a erradicação da metafísica tradicional, pela explicitação desta como uma lógica da aparência. Com o terceiro livro de sua lógica, a Doutrina do Conceito, é elaborada pela primeira vez na história da filosofia uma alternativa à lógica e metafísicas tradicionais, com o claro propósito de articular unificando: o espaço de razões com a realidade, o sujeito que reflete com as determinações da reflexão, instituindo assim a lógica como a totalidade metafísica do discurso filosófico.  

 

IHU On-Line - Qual é a importância de A ciência da Lógica e sua atualidade na Filosofia? Quais são suas recepções e críticas centrais?

Danilo Vaz Curado Ribeiro de Menezes Costa – A Ciência da Lógica de Hegel busca ser enquanto lógica uma síntese, tanto de uma lógica que estabelece as condições de estruturação proposicional do pensamento. Ou seja, uma lógica formal; ao mesmo tempo que constrói e explicita a constituição dos próprios objetos do pensamento. Hegel postula que sua Ciência da Lógica será tanto objetiva como subjetiva. Nesta perspectiva aberta por Hegel, a Ciência da Lógica deve suprassumir a lógica formal e aquela transcendental, apresentando-se como uma verdadeira metafísica.

Dita perspectiva postulada e desenvolvida por Hegel para sua lógica, coloca-a no centro das grandes questões atuais da filosofia como aquelas da mente, da metafísica, da rejeição ao fisicalismo e naturalismo etc. A principal, para não dizer central, questão que se põe a Ciência da Lógica, de Hegel, é o paulatino sufocamento da liberdade pela supressão da contingência em seu modelo lógico-metafísico.

 

IHU On-Line - Por que a metafísica hegeliana se mostrou tão influente na política ocidental?

Danilo Vaz Curado Ribeiro de Menezes Costa – A assim denominada Filosofia clássica alemã que compreende pensadores como Kant, Fichte, Schelling, Jacobi , Hegel, entre outros, não dissociou a explicitação do presente duma relação de participação ativa nos acontecimentos refletidos. Pensa-se, por exemplo, em Hegel plantando uma árvore comemorando a revolução francesa, em Fichte discursando aos seus ouvintes em Berlim em favor de uma guerra legítima contra o invasor, diga-se, Napoleão etc.

Tal perspectiva promove uma ambiguidade na recepção da obra destes autores, em geral, e da metafisica de Hegel, em particular. Hegel nunca foi um defensor de nenhum estado concreto particular, por exemplo, a Prússia . Nem tampouco nunca foi defensor de uma suposta superioridade do povo alemão, assumo com todo o ônus que isso pode me cobrar o uso do quantificador universal nunca...

Em verdade, o que Hegel defendia eram instituições que pudessem regular fenômenos suprapessoais em favor dos cidadãos. Ou seja, a defesa das instituições por Hegel, em verdade, tem por propósito proteger os cidadãos do capital, então nascente, o operário da instrumentalização do mundo do trabalho, os povos das invasões de outros povos etc. Nesta perspectiva, bem singular, de fato a metafísica hegeliana assumiu um protagonismo histórico sui generis, realizando uma profunda revolução na política.

 

IHU On-Line - Como Dialética, Religião e a construção do conceito de liberdade se imbricam nos Theologische Jugendschriften  hegelianos?

Danilo Vaz Curado Ribeiro de Menezes Costa – Quando iniciei minha trajetória nos estudos hegelianos fui aconselhado pelo Pe. Paulo Meneses SJ  que fizesse o caminho hegeliano como um todo, e assim iniciasse meus estudos pelo grande manancial de especulações, anotações e grandes diagnósticos a que Hegel chegara com seus escritos de juventude. Acredito que assumir os escritos de juventude como momento inicial de minha formação hegeliana foi para mim fundamental, pois pude acompanhar como os grandes conceitos da filosofia hegeliana foram gestados no laboratório do pensamento de Hegel.

E percebi que havia nesta massa de escritos um movimento permanente de estabelecer um modo de reflexão não estático — a Dialética — a partir de uma reflexão dos assuntos fundamentais da existência humana — a religião — com vistas à elaboração daquele que é o conceito perseguido por todos os filósofos, a liberdade. Os Escritos de Juventude [Theologische Jugendschriften] desenvolvem em praticamente todos os seus fragmentos os temas que posteriormente formam aglutinados nos conceitos de dialética, religião e liberdade.

 

IHU On-Line - Em que consistem esses “escritos juvenis” teológicos?

Danilo Vaz Curado Ribeiro de Menezes Costa – São um importante laboratório de reflexões hegelianas, em que temas teológicos, sociológicos, antropológicos, jurídicos, filosóficos e mesmo de literatura são entrecortados com o propósito de instrumentalizar o pensamento maduro de Hegel. A tradição da Hegel-Forschung sempre volta a estes escritos com o propósito de iluminar a filosofia de Hegel, em particular, e a filosofia ocidental, em geral. 

Autores tão diversos como Dilthey  voltam a Hegel para instituir um discurso novo na filosofia, como certo tipo de vitalismo hermenêutico. Lukács  igualmente volta ao Hegel juvenil, quando o marxismo vivencia a sua primeira grande crise. Habermas  igualmente retoma estes escritos e, junto com os de Iena, os identifica com o Hegel revolucionário. 

Igualmente, diversos estudiosos articulam a estes escritos juvenis seu caráter não sistemático a pensadores, que ordinariamente poderiam ser taxados de anti-hegelianos como, por exemplo, Nietzsche . Pensa-se aqui, por exemplo, no jovem pesquisador e Pe. Adilson Felício Feiler SJ , que recentemente publicou um livro pela editora Unisinos, intitulado Hegel e Nietzsche, resultado de sua tese de doutorado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.

 

IHU On-Line - Qual é o impacto de tais reflexões nas obras escritas posteriormente?

Danilo Vaz Curado Ribeiro de Menezes Costa – Os escritos de Juventude serão fundamentais no modo como Hegel compreenderá a dinâmica de estruturação da política, da vida em sociedade e da relação entre as diversas esferas institucionais como o Estado, a Igreja, a Sociedade civil, a família etc. De algum modo, também estes escritos já nos permitem identificar a estruturação do conceito de eticidade, dos nexos fundamentais da Fenomenologia do Espírito etc. Todavia, também há uma forte corrente exegética que refere identificar na relação entre juventude e maturidade em Hegel uma relação de ruptura e descontinuidade como, por exemplo, advertem Habermas, Theunissen , Honneth , Dussel , entre outros, e cada um por seus próprios motivos.

 

IHU On-Line - Há um nexo entre a Lógica enquanto discurso do Absoluto? Qual seria ele?

Danilo Vaz Curado Ribeiro de Menezes Costa – Sim, diversos estudiosos hegelianos têm interpretado a Ciência da Lógica como um grande discurso do absoluto. Ou seja, a Ciência da Lógica teria esta função reveladora na qual a verdade se identifica a si mesma com seus diversos modos do vir-a-ser, tal como expostos na Enciclopédia dos Sistemas Filosóficos. ■

 

Leia mais...

- O trabalho filosófico como síntese da tradição cristã. Entrevista especial com Danilo Vaz Curado Ribeiro de Menezes Costa, publicada na revista IHU On-Line nº 412, de 18-12-2012;

- Hegel. Sistema, método e estrutura. Entrevista especial com Danilo Vaz Curado Ribeiro de Menezes Costa, publicada na revista IHU On-Line nº 449, de 04-08-2014.

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