Edição 481 | 21 Março 2016

A violência do nada. A Nova Direita e as paixões tristes

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João Vitor Santos | Edição Ricardo Machado

Na aridez das paixões tristes, sustenta Hugo Albuquerque, a política brasileira mergulha nas tendências conservadoras de uma vida afetivamente desértica

Há uma dissonância interna no governo do PT que, por um lado, promoveu avanços sociais significativos e, por outro, mais recentemente, assumiu uma linha de austeridade em relação às políticas sociais dividindo o poder com as forças conservadoras. “O meu palpite é que Dilma precisa desesperadamente da ordem, de uma gramática pobre e aritmética, para conseguir entender e fazer as coisas. E não só aqui como em várias outras ocasiões percebe-se que ela foi incapaz de lidar com o desejo coletivamente considerado”, avalia Hugo Albuquerque, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Nesse horizonte de obscuridade — diante do Congresso mais conservador desde 1964 e de emergência de promulgação de textos como os da Lei Antiterrorismo — a Nova Direita ganha força. “A Nova Direita, que tem tendências mais conservadoras do que liberais, faz exatamente isso se amparando nas paixões tristes: a indignação com a violência, com a crise econômica, as frustrações pela vida insuportável nas metrópoles, as neuroses causadas por uma vida afetivamente (até mesmo sexualmente) desértica”, considera o entrevistado. “Podemos, com efeito, ter algo mais violento do que a Ditadura Militar se não nos cuidarmos. Basta ver que Aécio e Alckmin foram hostilizados na manifestação do dia 13 de Março. Já Bolsonaro foi ovacionado”, destaca.

A crise institucional dos poderes levou o Executivo e o Legislativo ao descrédito, ao passo que certos setores do Judiciário assumiram uma posição déspota. “O Direito está sendo transgredido na Lava Jato em todas as direções, seja na sua não aplicação para alguns ou na sua aplicação draconiana para outros. A Lava Jato, vista no cômputo geral, é marcada por uma clara violação da Isonomia”, descreve Hugo. Em um arremedo histórico pouco criativo, o Brasil repete o passado conservador, em que a “burocracia brasileira (do Judiciário, mas também do Ministério Público e das polícias) ocupa o lugar do que poderia ter sido uma guinada democratizante em 2013. O que veio é isso e isso é a violência do nada”, complementa.

Hugo Albuquerque é jurista e mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP.

 

A entrevista foi publicada nas “Notícias do Dia”, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 17-03-2016.

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Que análise é possível fazer da esquerda no Brasil hoje? Quais suas bases teóricas políticas e econômicas? Quais seus limites e quais caminhos são possíveis para se atualizar enquanto esquerda no mundo de hoje?

Hugo Albuquerque - Para começo de conversa, é preciso que nos perguntemos o que é a esquerda? Basicamente, é um campo político nascido do mundo deixado como legado pela Revolução Francesa, que corresponde aos variados caminhos que servem à realização do desejo de liberdade dos oprimidos, das minorias e dos inferiorizados. Portanto, não existe “a Esquerda”, mas sim “as esquerdas” — e mesmo quando empregamos o termo “a Esquerda” é preciso lembrar que falamos de uma variedade de experiências e projetos modificadores. Isso ocorre em contraposição à Direita, que pode variar dentro de certas margens, mas sempre está dentro de um padrão, de uma métrica (que é dos poderosos, por sinal) ou do Centro que é o espaço residual desse confronto, seja por moderação ou oportunismo. 

No Brasil, a modernidade política só vem com o andamento da República — e só aí nascem “as esquerdas brasileiras”, grosso modo ligadas ao anarcossindicalismo trazido pelos imigrantes italianos, mas depois tende também ao Comunismo no pior sentido da palavra, de Stalinismo  mesmo. E já dos fins dos anos 20 em diante, o maior adversário da Esquerda no nosso país está dentro dela mesma.

PT

A referência mais relevante para a esquerda brasileira, no bom e no mau sentido, é o PT, um partido que passou por uma série de transformações em sua breve existência: o PT nascente era uma Nova Esquerda, capaz de unir a pauta clássica do socialismo (de propor uma transformação socioeconômica) com pautas de gênero, raça e outras. Mas depois, vagamente, o PT se tornou um partido social-democrata, em um primeiro momento mais radicalizado, depois mais moderado. E a moderação ocorre no momento em que o PT funde o elemento “socialista” com a tradição popular e nacionalista – que em um país como o Brasil, uma ex-colônia de exploração não tem, nem poderia ter, o mesmo significado que isso tem na Europa. É nesse momento que o “povo” toma o lugar dos “trabalhadores” como chave para criar uma sociedade plena, que o PT chega ao poder e consegue, bem ou mal, produzir avanços sociais relevantes no país. Só que com o cobertor curto, pois Lula não trabalhou pelo fortalecimento do seu próprio Partido ou das instituições da sociedade civil, mas da estruturação no plano do governo dos meios para efetivar as mudanças.

Guinada

A meu ver, o que cria a atual crise, profundíssima, por sinal, é a guinada que Dilma resolve dar ao assumir o poder e, sobretudo, o erro crasso que ela comete no segundo mandato. O que ele gostaria, de início, era efetivar um plano grandioso, complexo e fundamentado na tecnocracia de Estado, o qual daria vazão a um Capitalismo à moda oriental: igualitário, mas disciplinar e hierárquico também. A partir daí não é mais o caso de o governo ter assumido uma linha mais recuada ou dividir o poder com outras forças (algumas até conservadoras), mas do próprio núcleo político ter assumido uma linha estranha à tradição histórica da esquerda (como se vê pela construção das usinas na Amazônia, o descaso com os índios, uma ideia disciplinar policial etc.). 

Opção pelo abismo

Só que no segundo mandato Dilma, diante do fracasso de seu plano original, ela teria de ir ou para a esquerda ou literalmente se jogar no abismo efetuando a política defendida pelos seus rivais. E ela resolveu se jogar do abismo. Foi aí que ela não só aprofunda a crise como ainda perde o apoio popular. Pior do que Dilma ter aderido à política dos rivais foi que isso, ainda por cima, deu errado. Se as esquerdas aderiram em grande parte à Dilma no segundo turno de 2014, o fato é que ela recusou ser ao menos o “menos pior”, implementando a agenda liberal, sem agradar os liberais, e criando mais do que insatisfação, mas uma verdadeira confusão entre os setores de esquerda, seja seu próprio partido ou as demais organizações e movimentos de esquerda no país.

Nova esquerda

Mas mesmo essas esquerdas que recusam os deslizes do atual governo, tampouco conseguem entender a complexidade do momento atual. E aí 2013  aparece como tensão e paradoxo: é o atestado do esgotamento da esquerda clássica, mas ao mesmo tempo o clamor por mudanças, liberdade etc., isto é, o chamado a uma nova esquerda. Ali, o PT, mas também os demais partidos e organizações de esquerda, perderam uma belíssima oportunidade de renovação, pois pensam tudo à base do grande sujeito histórico e das ideias, não dos afetos, da simbologia e da psicologia da multidão, o que é, aí sim, material. A Direita não, ainda que de um jeito tosco, se renovou, e aprendeu a navegar nessa maré, só que ela ainda não tem um plano que seja funcional e não demande a hipertrofia policial e repressiva, o que pode ser usado por algum tempo, mas não por todo tempo – como se vê, sobretudo, em governos estaduais do PSDB como em São Paulo, Paraná e Goiás.


IHU On-Line - É possível inscrever ao debate uma ideia de nova esquerda? O que a sustenta – sustentaria? E a nova direita, o que é e como se inscreve no cenário político nacional?

Hugo Albuquerque - A Nova Esquerda, em sentido próprio, é aquela que nasce no pós-1968,  para muito além da dicotomia entre reforma e revolução, absorvendo as pautas raciais, de gênero, ambientais etc. — como o PT fazia no seu nascimento e muito mais tardiamente se viu na Europa com Syriza  e Podemos.  O PT, contudo, transubstanciou-se em algo difícil de reconhecer. Se você pensa em uma nova esquerda no sentido genérico, algo que substitua as esquerdas existentes no nosso país, sejam as organizações de esquerda ou mesmo o modo de fazer política recorrente, ela precisaria não procurar um sujeito histórico e ou social para se assentar, mas sim um fluxo, a escala de paixões positivas em escala coletiva. A Nova Direita, que tem tendências mais conservadoras do que liberais, faz exatamente isso se amparando nas paixões tristes: a indignação com a violência, com a crise econômica, as frustrações pela vida insuportável nas metrópoles, as neuroses causadas por uma vida afetivamente (até mesmo sexualmente) desértica etc. A Nova Direita, embora não tenha um plano funcional ainda, sabe como surfar nessa onda: ela não procura um sujeito histórico, uma essencialidade, uma identidade. As esquerdas anseiam em procurar algo sólido, quem sabe uma tábua de salvação, para se amparar justamente porque não aceitam que houve um naufrágio e o que elas têm de fazer agora é nadar, pois só há água em volta.


IHU On-Line - Como é possível compreender a ideia de fim de ciclo da esquerda latino-americana? Como se insere o Brasil nesse contexto?

Hugo Albuquerque - As experiências de esquerda surgidas na América Latina na oposição ao Neoliberalismo nos anos 1990, que se tornaram os governos populares dos anos 2000, se estruturaram em dois polos que, eventualmente, podem entrar em curto-circuito: como o cruzamento de uma multiplicidade multitudinária e uma direção vertical, personalista e carismática, com uma estrutura burocrática de fundo. 

No poder, houve um primeiro momento de ganhos socioeconômicos, mas um segundo momento de crise e esgotamento. Por quê? Por um fator interno que vira dois: a primeira com a liderança vertical que se desconecta da base horizontal pelos vícios do poder; a outra, econômica, que foi a incapacidade de pensar uma nova economia, sustentável, criativa e colaborativa, fazendo esses governos caírem na fórmula do Capitalismo de Estado gerindo uma produção do valor ligada ao extrativismo mineral (e também dos hidrocarbonetos). 

Há o fator externo: com a eleição do simpático Obama, os países passaram a enfrentar uma oposição mais forte dos EUA, sobretudo porque ele trabalha no diapasão de diminuir o preço desses produtos primários, sobretudo do petróleo, para bancar a recuperação da economia americana. Isso acerta em cheio os governos latino-americanos, que passaram a apostar no ganho rápido e fácil via extrativismo. Não é uma questão objetiva, de preços mais altos ou mais baixos das “commodities”, mas de como esses governos erraram em atrelarem suas economias a tais preços, que são variáveis, afinal de contas, pouco ou nada controlam! Em vez disso, eles poderiam ter valorizado sua verdadeira riqueza: as sociedades mais fortes e pujantes que eles ajudaram a produzir, as quais poderiam ser a base de um novo modo de vida.


IHU On-Line - Gostaria que o senhor explicasse o que é a “ascensão da classe sem nome”. Que personagens são esses e qual o seu papel na última década no cenário político do Brasil?

Hugo Albuquerque - A Ascensão Selvagem da Classe sem Nome corresponde à minha hipótese para o processo de transformação da composição de classe no Brasil ocorrido no governo Lula. “Classe sem Nome” corresponde à nova classe surgida do empoderamento das minorias na última década, o que equivale não a uma classe antagônica, mas a uma anticlasse: um complexo multitudinário feito de trabalhadores, mulheres, negros, homossexuais etc. que passaram a se sentir autorizados a desejar e romperam com qualquer esquematismo de classe, seja o brasileiro tradicional – fortemente assentado em nossa tradição escravagista e colonial – ou qualquer outro que se possa projetar, tanto por concepções liberais quanto socialistas. Tal processo de avanço é uma “ascensão selvagem”, porque não é marcado por uma sistemática civilizada ou civilizatória, mas ao contrário: está liberta de imediato das amarras obrigacionais, estamentais e estatutárias e avança de forma pouco rogada, o que causa escândalo na elite e nas classes médias tradicionais — que consistem não apenas em um conceito socioeconômico, mas também possuem um claro recorte racial e de gênero em nosso país. 

Devir

Tal processo é um devir, é um movimento intensivo e transformador, não é um movimento ideal ou tampouco mecânico. Tanto que os setores esclarecidos buscaram a todo modo nomeá-lo, o que equivale a um processo de redução por definição: nova classe média, classe C, classe média trabalhadora. E por quê? Porque dar um nome permite que algo ou alguém seja objeto de uma ordem ou um regime normativo. O processo de nomeação é antes de descritivo, prescritivo. Pode parecer chocante, e até indigno, falar que essa “classe” é “sem nome”, mas é justamente por não o ter que ela pode ser livre, ou consideravelmente mais livre, do que os grupos que a compõem eram antes ou podem ser no futuro. Um exemplo é o filme “Que Horas Ela Volta?”, no qual a filha da empregada doméstica não se comporta como a mãe perante os patrões, ela simplesmente está fora do complexo de paixões tristes que faz sua mãe se comportar de maneira submissa — e isso causa medo e escândalo, embora seja muito sutil, pois o senhor só pode sê-lo caso o escravo se comporte perante ele como tal.

Ironicamente, o projeto petista, que pariu esse fenômeno, procurou, sobretudo em Dilma, enquadrá-lo, nomeá-lo e submetê-lo — quem sabe na forma de “uma nova classe média”. Por quê? O meu palpite é que Dilma precisa desesperadamente da ordem, de uma gramática pobre e aritmética, para conseguir entender e fazer as coisas. E não só aqui como em várias outras ocasiões percebe-se que ela foi incapaz de lidar com o desejo coletivamente considerado. A classe sem nome é um ser angelical, mas é um ser desejante. Dilma se comporta diante dela como se fosse o Dr. Frankenstein perseguindo o monstro que ele criou: o problema não está em ter criado vida, mas vida desejante, vida não sujeita imediatamente à sua vontade e aos seus desígnios. Tal desarranjo é, infelizmente, um velho problema da tradição socialista: não se adaptar às transformações que ela própria dá origem — coisa que Marx  já alertava até pela natureza de seu pensamento, mas que foi ignorado ou mal-entendido por muitos de seus discípulos e adeptos.

Mas o ato de Dilma abriu um flanco importante não para que ela, mas para que a Direita consiga enquadrar a Classe Nome, fazendo-a perder o ânimo e se resignando na exata mesma ordem de sempre: “aprendendo a lição”, isto é, voltando de cabeça baixa para a senzala. Acaso não somos a sociedade na qual é de bom tom “saber o seu lugar”? 

 

IHU On-Line - Quais transformações – avanços e recuos – são possíveis projetar para a próxima década?

Hugo Albuquerque - A vontade da Direita, por força das necessidades do Capital, é recapitalizar essa riqueza (objetiva, mas sobretudo afetiva) para alimentar não só o capitalismo global como, sobretudo, para que nossa elite sobreviva à atual conjuntura. Em português claro: querem (e vão tentar!) arrancar o que foi conquistado nos últimos anos. A transferência de renda e o combate às desigualdades no nosso país foi apenas razoável do ponto de vista objetivo, muito menor do que ocorreu na Argentina no mesmo período, mas ele foi muito relevante do ponto de vista desejante: em um país com a tradição do Brasil, as pessoas passarem a se ver como gente, a pararem de se comportar como se fossem escravas, é um grande avanço. Mas o grande plano, expresso em excrescências como a Agenda Brasil  é o oposto: restaurar a velha ordem. 

Agora, vejamos as revoltas estudantis de São Paulo contra o fechamento de escolas, em um movimento determinado pelo governo Alckmin:  elas provam algumas coisas importantes e que em sua contraposição, formam um paradoxo; (1) por um lado, a Classe sem Nome não dispõe de instituições políticas capazes de dar conta do tranco a priori, nem tem uma reserva capaz de resistir com força a políticas de “ajuste” que correspondem a tal processo de inverter o processo de inclusão e diminuição gradual das desigualdades, mas (2) existe sim a capacidade de ação coletiva quando as coisas ultrapassam um certo limite (como, no caso em questão, aumentar a precarização da Educação Pública), ao menos uma potência de resistência e de resposta diante do descalabro. 

Movimentos e repressão

A partir daí, existe a tensão dos movimentos nas ruas e a repressão de Estado. Essa será uma tônica. Existe uma reorganização Neoliberal já em curso no segundo governo de Dilma, e não se sabe a razão dessa fantástica capitulação, mas sabemos como funciona o que agora é o grande consenso da política brasileira: reverter, mediante asfixia econômica, as mudanças diretas ou colaterais dos últimos anos. E que haverá tensão. Mas os governos puramente neoliberais, como vemos em São Paulo, Paraná e Goiás, não estão conseguindo, como era de supor, realizar esse movimento de restauração pacificamente, então o que vemos são revoltas mais ou menos organizadas sendo reprimidas pela política com muita dureza; apanham professores, estudantes, torcidas organizadas que ousam protestar etc. 

O Neoliberalismo tupiniquim tem um projeto de poder, ou quem sabe até um bom roteiro para o golpe. Então ele vai apelar para a repressão ao passo que, literalmente, deprime as pessoas, sobretudo o que eu chamo de Classe sem Nome — que volta a ter nome, vira o pobre, a puta, o bicha, o preto —, só que tanto uma coisa quanto a outra tem limites. Mesmo Thatcher  precisou encontrar um jeito, via popularização das finanças, sem gerar um impulso positivo, mesmo que falso, o abismo está logo ali.

Composição

A tentativa bisonha de composição de Dilma com a direita ou um eventual governo Aécio  estarão diante dessa armadilha. E isso pode inclinar o Brasil numa direção fascista ou justificar uma saída bufa e tragicômica da extrema-direita ou da direita populista apoiada pelo grande capital nacional e até o capital internacional: mas sobretudo uma saída que não tenha maiores dores na consciência de reprimir para valer e não tenha compromisso algum com a Ordem de 1988, mesmo ponderando suas enormes limitações. Podemos, com efeito, ter algo mais violento do que a Ditadura Militar se não nos cuidarmos. Basta ver que Aécio e Alckmin foram hostilizados na manifestação do dia 13 de Março. Já Bolsonaro foi ovacionado.


IHU On-Line - De que forma a lógica financeirista do capital, bem ao estilo neoliberal, se associa a um governo dito de esquerda, como o do PT? Qual o peso dessa associação no que podemos chamar de “crise da esquerda”?

Hugo Albuquerque - É preciso diferenciar o Neoliberalismo do tipo de Capitalismo no qual estamos inseridos. Tanto o Capitalismo fordista e de Estado quanto o Socialismo Burocrático faliram, mas só o Capitalismo conseguiu transmutar para outra coisa. Nós conhecemos essa “outra coisa” pelo nome de "Neoliberalismo", o que é reducionista: o Neoliberalismo é apenas uma arte de governo que se adéqua ao Capitalismo Cognitivo, para usar aqui uma terminologia Negri-Hardtiana,  isto é, um regime fundado na exploração sistemática do valor da produção, mas cuja formação do valor correspondendo a conceitos e abstrações — o velho exemplo de que a marca de um óculos vale mais do que óculos em si. As próprias “finanças” e a “mídia” entram aí, uma vez que são elementos imateriais, ou melhor, abstratos. Não é que não haja mais agricultura, exploração do solo ou indústria, mas sim que aquilo que organiza a produção de um modo geral é a produção cognitiva — de marcas, mas também de conceitos como design ou projetos ou a própria questão da comunicação. Pois bem, nem o PT nem nenhuma experiência do nosso tempo conseguiu acabar com isso. Por que não? Por falta de imaginação, de análise, mas também pelo singelo motivo que é ilusório supor que alguém pode sair imediatamente disso. 

Economia

A minha crítica não é que o PT não fez um milagre para em 12 anos ter saído disso, mas que ele fez o caminho para se afundar mais ainda. Ele reprimarizou a economia para ficar nessa história de extrativismo mineral, monocultura agropecuária etc., que é a soleira do Capitalismo Cognitivo. Ele aceitou esse lugar na divisão global trabalho — e pior, precificou boa parte da economia nisso. Há dois momentos em que o PT, contudo, flerta com o Neoliberalismo: medianamente, logo com a entrada de Lula durante o período de Palocci  na Fazenda (janeiro de 2003 a março de 2006) e depois, de maneira mais ampla, com Dilma no segundo mandato (janeiro de 2015 até agora). Mas é precisamente esse segundo período que precisamos olhar. No meio tempo disso, houve uma tentativa de superar o Neoliberalismo via política desenvolvimentista de Estado, o que aparentemente não é capaz de mudar o problema que não é o acessório (o Neoliberalismo como poderia ser também o Neoconservadorismo), mas o substantivo (o Capitalismo Cognitivo). 

De todo modo, Dilma governa no segundo mandato fazendo exatamente o oposto do que apregoava na campanha. O que levou a isso, salvo que se prove o contrário, foi um tipo de movimento de composição de forças. Dilma sentiu que sua vitória foi uma espécie de derrota moral — o que é um equívoco, presidentes americanos são eleitos com margens normalmente muito pequenas, nem por isso deixam de governar — e ela resolveu, inclusive sob os conselhos de Lula, fazer uma espécie de conciliação nacional. Mas deu com os burros n’água, pois ela tinha total razão na campanha: a política econômica que os dois principais adversários dela propunham não era viável. E Dilma descobriu aplicando. Porque a combinação de uma agenda neoliberal, de entrega de tudo para os agentes de mercado e para os bancos, com uma economia fechada no extrativismo, em tempos de crise, só pode dar errado. E pior que o efeito psicológico disso para ela e seus eleitores é enorme: prometeu uma coisa e entregou o inverso, mas a partir daí, o que já não ia tão bem, deu errado. Muito errado. 

 

IHU On-Line - Em que momento a esquerda brasileira, em especial do PT, se torna inábil para entender os movimentos sociais, em específico os da Metrópole?

Hugo Albuquerque - As esquerdas brasileiras nunca entenderam a nova função que as metrópoles passaram a ter. Jamais. Para tanto, seria preciso compreender as modificações pelas quais o Capitalismo passou dos anos 1970 em diante no máximo alguns sintomas evidentes são compreendidos. Nesse sentido, os próprios movimentos sociais perdem um pouco do bonde da História, por igualmente desentenderem as novas dinâmicas produtivas, ao mesmo tempo que, ainda por cima, são deixados de lado pelo PT — que adere à narrativa de burocratas de Estado e suas planilhas que nada explicam. Quando isso aconteceu? Em parte, com Lula no governo, criando o dualismo “Governo” e “Partido” — mas o segundo polo englobava os demais elementos, desde os movimentos sociais às ONG’s etc. — e, em parte, com Dilma e sua estratégia que se assenta na função transcendente da tecnocracia de Estado, mais especificamente àquela fração correspondente à Administração Pública, ao Executivo Federal. 

A partir daí os movimentos sociais passaram a ser vistos como um elemento irracional e inconstante. Não chega a ser como para o PSDB e para a direita brasileira de um modo geral, para os quais os movimentos são inimigos no sentido schmittiano,  mas agora ocorre uma dada incompreensão que levou o governo a ora desconsiderar os movimentos, ora reprimi-los — forrando a cama para Direita a partir de 2013, quando o PT fortaleceu o aparato repressor do Estado, o mesmo que hoje, ironicamente, está se voltando contra ele. Isso não é incomum na história das esquerdas. A social-democracia alemã nos anos 1920 cometeu um erro muito parecido. Eu já tinha dito há pouco mais de dois anos e, infelizmente, de lá para cá isso tem se confirmado com uma rapidez impressionante. E Junho de 2013 foi um Maio de 1968 brasileiro num contexto que não é bem de guerra, mas estava longe de ser de bem-estar. Eu alertei para esses riscos há dois anos também, sem querer ser Cassandra...


IHU On-Line - O que o atual momento político do Brasil revela — e atualiza — sobre a velha lógica dualística da Casa Grande X Senzala? Em que medida o PT segue fazendo a leitura do momento político de hoje através dessa dualidade?

Hugo Albuquerque - Há uma relação entre Casa Grande (o espaço de glória e aclamação, o lócus econômico propriamente dito no qual habitam os senhores e seus protegidos) e a Senzala (o espaço de danação) semelhante ao que há entre o sagrado e o profano no Barroco. Essa polaridade ajuda bastante a explicar o Brasil. São duas coisas aparentemente contraditórias que, contudo, compõem um mesmo plano ambivalente. A saída disso é a fuga desse espaço. Seja a constituição do lócus comum da Vila ou da cidade ou a saída radical para o Quilombo — e a cidade, hoje o espaço urbano, sempre esteve estrangulado no Brasil, seja pela Casa Grande ou suas projeções pós-modernas como os Condomínios; assim como a favela é parcialmente o quilombo, sem ignorar que ainda existem quilombos no Brasil. O PT sempre teve dificuldade — o que é um problema brasileiro, mas também da experiência socialista — em entender que a saída para os trabalhadores é precisamente se libertarem do trabalho em si mesmo e não o tornar bonitinho. No caso do Brasil, no qual a noção de trabalho está permeada por reminiscências da escravidão, do passado colonial, do autoritarismo, essa falha se acentua. Um pouco do fenômeno da Ascensão Selvagem é isso: o desligamento, em escala coletiva, do dispositivo desejante que permitia essa polaridade. Mas a Casa Grande está reagindo e, convenhamos, foi muito hábil ao apostar todas as suas fichas. Como disse, haverá um esforço enorme para fazer a senzala voltar a funcionar como tal.

 

IHU On-Line - Como interpreta os últimos acontecimentos da operação Lava Jato? De que forma é possível compreender os interesses que estão em jogo?

Hugo Albuquerque - A Lava Jato é uma operação da ordem da Glasnost  na antiga União Soviética ou da Operação Mãos Limpas  na Itália: são movimentos justiceiros, comandados por frações da burocracia de Estado que, diante de uma crise grave institucional, usam de seus cargos para salvarem o seu quinhão que é autorreferente: se manterem onde estão a qualquer custo. A finalidade da burocracia é simplesmente ficar onde está, isso sempre consiste em um gesto débil e vazio que precisa ser preenchido por outros interesses naturalmente de outros setores. Na União Soviética, isso resultou no fim do país e na eleição de um ser tragicômico como Iéltsin,  que levou o país a um Capitalismo árido e violentíssimo; já na Itália, deu na ópera bufa comandada por Berlusconi.  

No caso dos últimos eventos, goste-se ou não de Lula, o fato é que houve uma inequívoca arbitrariedade na condução coercitiva do ex-presidente. Como a antológica denúncia dos promotores que confundiram Engels  com Hegel  também é um absurdo na forma e no conteúdo. Não estou dizendo que Lula não possa ser investigado, mas ele, como qualquer cidadão, deve ser investigado com isenção, não é possível surgirem juízes ou promotores com teses políticas prontas.

Cereja do bolo

Isso tudo, aliás, é só a cereja do bolo de uma série de erros na operação, seja de prisões arbitrárias, usos indevidos do mecanismo da delação premiada, dentre outros. Muitos amigos meus argumentam que diante das omissões — e também ações! — do governo petista em relação aos direitos e garantias constitucionais nos últimos tempos, não seria o caso de “se solidarizar” com Lula. Mas não é um caso de solidariedade, nem de deixar de criticar o PT por isso, mas sim de não permitir que esse tipo de relação de poder se desenvolva na nossa sociedade, seja contra quem for ou venha não importa de quem. 

Lula

É preciso frisar que no caso de Lula existe uma singularidade da Lava Jato em relação à Glasnost ou à Operação Mãos Limpas que é o fato de, para realizar seu fim, ser necessário destruir uma figura política ainda proeminente, coisa que não havia nem na União Soviética, nem da Itália dos anos 1980. E quem duvida da politização da Lava Jato, por favor, me encontre uma explicação plausível para tantos políticos da oposição, citados tantas e tantas vezes em depoimentos, não terem sido sequer investigados. Em suma, o Direito está sendo transgredido na Lava Jato em todas as direções, seja na sua não aplicação para alguns ou na sua aplicação draconiana para outros. A Lava Jato, vista no cômputo geral, é marcada por uma clara violação da Isonomia, isto é, a Igualdade perante a Lei, o que é o desperdício de uma grande oportunidade histórica. Aplicasse o Direito de maneira precisa e proporcional, sendo ainda igual com todos, a Lava Jato poderia estar cumprindo um papel importante, mas é ingênuo supor que ela poderia existir nesses termos. 

 

IHU On-Line - Quem são os atores desse cenário de operação Lava Jato? Como analisa seus movimentos?

Hugo Albuquerque - Na Lava Jato converge um punitivismo próprio à cultura brasileira — e também às esquerdas brasileiras, salvo raríssimas e honrosas exceções — e arrisco em dizer, próprio da cultural ocidental; isso consiste na ideia que a solução desconhecida de um problema notório só pode ser o castigo de qualquer um. A partir daí se ignoram interesses nacionais e estrangeiros que veem na operação um meio de desmontar a atual forma de gestão da Petrobras e do setor de infraestrutura do Brasil — e junto desses setores, obviamente, a oposição, que vê na oportunidade um meio de voltar ao poder, seja pelas urnas ou não. O primeiro ponto corresponde ao fator subjetivo de legitimação da Lava Jato, o segundo, os fatores objetivos. Desmontando essa fortaleza, esses agentes imaginam poder ocupar esse espaço, pois no mercado, tal e qual na política, não há a menor possibilidade de espaços ficarem “vazios para sempre”. O resultado prático da Lava Jato é um movimento de terra arrasada até que alguém, corretamente ou não, lhe dê fim, lhe freie. Isso pode ocorrer tanto por alguém honesto que obrigue a operação a funcionar devidamente ou por alguém desonesto que faça isso da maneira errada. Do ponto de vista objetivo, o resultado da operação se destina ao desarranjo do sistema político e à abertura de espaço para o nosso Berlusconi ou nosso Yeltsin: só uma figura ao mesmo tempo vinculada com o mercado (isto é, o oligopólio capitalista) e com um carisma quase cômico poderia suprir esse espaço. Mas pode ser que seja algo ou alguém pior. Um Bolsonaro mesmo. Como constituir algo além disso é a questão. O fato é que esse movimento da burocracia brasileira (do Judiciário, mas também do Ministério Público e das polícias) ocupa o lugar do que poderia ter sido uma guinada democratizante em 2013. Ela não veio, pelos vários fatores elencados. O que veio é isso e isso é a violência do nada.

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Hugo Albuquerque - Acho que a manifestação de 13 de março deixa tudo claro: existe uma insatisfação generalizada, mas que é diferente, sempre foi diferente e só poderia ser diferente. Um é daqueles que enxergam nessa situação uma oportunidade de engolir os direitos, fazer um movimento de restauração do velho regime. O outro daqueles que não fazem panelaço e não foram às ruas, mas estão desamparados, talvez estejam pagando mais caro ainda a conta — e há quem queira que eles paguem mais ainda. O único modo de os setores democráticos sobreviverem é conectar com o segundo grupo, encarar seus problemas e operar nas suas demandas. É preciso apresentar soluções e clivar esse enorme movimento, no qual muita gente é levada a agir ou se omitir contra seus próprios interesses objetivos (não seria esse o mistério da política segundo La Boétie,  Spinoza  e tantos outros?). É preciso assumir uma agenda positiva. Sigamos o vaticínio do Adivinho de Julio Cesar de Shakespeare : Acautelai-vos com os Idos de Março — mas sem perder a ofensiva. ■

 

Leia mais...

- "Vivemos um momento constituinte. É preciso pensar, atuar, propor como nunca". Entrevista especial com Hugo Albuquerque nas Notícias do Dia, de 11-11-2013, no sítio do IHU. 

- Brazil nos ame ou nos deixe nesta Copa. Artigo de Hugo Albuquerque publicado nas Notícias do Dia, de 15-01-2014, no sítio do IHU. 

- Os impasses do Brasil entre a multidão e a modernidade. Artigo de Hugo Albuquerque publicado nas Notícias do Dia, de 28-10-2013, no sítio do IHU.

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