Edição 481 | 21 Março 2016

A opção que não transformou e que perdeu o fôlego

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João Vitor Santos | Tradução Henrique Dênis Lucas

Raúl Zibechi acredita que a opção por formas de governo sem conflito, sentando à mesa com direita e com movimentos populares, não trouxe verdadeiras mudanças e, agora, chega ao esgotamento

Não há como fazer uma omelete sem quebrar os ovos. É mais ou menos na lógica desse ditado que Raúl Zibechi reflete sobre o que acontece com o governo — dito — progressista e de esquerda no Brasil. “Minha impressão é que se optou por uma forma de governo sem conflitos, nem com a direita, nem com os setores populares”, diz. Para ele, não é uma exclusividade brasileira, mas algo recorrente na América Latina que não levou a profundas transformações sociais. “Ante os ricos, apresenta-se como aquele que pode apaziguar os de baixo. E ante os de baixo, apresenta-se como o grande beneficiário com diversas políticas sociais. Quando esse cenário é dissolvido, os governantes não sabem como se manter”, analisa, ao destacar o que ocorre quando o modelo chega a um limite.

Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Zibechi olha desde a realidade do Brasil que transborda para a América do Sul. Nessa lógica conciliadora, o que há é uma inclusão pelo consumo que, ao invés de romper com o capital, alimenta-se dele. De acordo com o entrevistado, é importante perceber isso para entender por que este é um ciclo que chega ao fim. Uma das causas que levam ao esgotamento, segundo ele, “é que os preços das commodities caíram. Isto é importante, pois a chave para o ‘milagre’ do modelo político-econômico progressista foi que os altos preços de exportação permitiram um grande excedente que tornou possível a melhora da situação dos mais pobres, sem tocar nos privilégios dos mais ricos. Isto acabou. Com o agravante de que os grandes beneficiários desse ‘milagre’ foram os bancos, o setor financeiro”.

Raúl Zibechi é escritor, jornalista e pensador-ativista uruguaio, dedicado ao trabalho com movimentos sociais na América Latina. Foi membro da Frente Revolucionária Student - FER, grupo de estudantes ligados ao Movimento de Libertação Nacional - Tupamaros. Em meados dos anos 1980, começou a publicar artigos em revistas e jornais de esquerda (Página Aberta, Egin, Libertação) e meios de comunicação da América Latina (Pagina/12, Argentina, e Mate Amargo, Uruguai). Foi editor do semanário Brecha e ganhou o Prêmio de Jornalismo José Martí por sua análise do movimento social argentino que levou à insurreição de dezembro de 2001. Entre suas publicações mais recentes, estão Latiendo Resistencia. Mundos Nuevos y Guerras de Despojo (Oaxaca: El Rebozo, 2015), Descolonizar el pensamiento crítico y las prácticas emancipatorias (Quimantú, 2014 y Desdeabajo, 2015) e Preservar y compartir. Bienes comunes y movimientos sociales (Buenos Aires: Mardulce, 2013).

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Que leitura é possível fazer da situação atual dos governos progressistas na América Latina de hoje? O que aconteceu em 2016 para estarem tão diferentes, se são os mesmos governos de 2014?

Raúl Zibechi - É evidente que algo está chegando ao seu fim. Podemos discutir as causas, seja a ofensiva de direita e dos meios de comunicação, como dizem os governos, ou seja a possibilidade de ter terminado um ciclo político e econômico, como dizemos aqueles que têm um posicionamento crítico. Mas o que está claro é que um período está se concluindo. Hoje, ainda que continuem existindo governos progressistas, o modo de governar é considerado conservador, como fica muito claro no Brasil.

Existem três principais diferenças em comparação a 2014 ou 2013. Uma delas é que os preços das commodities caíram. Isto é importante, pois a chave para o "milagre" do modelo político-econômico progressista foi que os altos preços de exportação permitiram um grande excedente que tornou possível a melhora da situação dos mais pobres, sem tocar nos privilégios dos mais ricos. Isto acabou. Com o agravante de que os grandes beneficiários desse "milagre" foram os bancos, o setor financeiro.

A situação dos pobres melhorou, não por mudanças estruturais, mas através do consumo, ou seja, continuam pobres, mas capazes de consumir, não integrados como cidadãos com direitos, mas como consumidores. Mas agora eles estão em dívida com os bancos, que é o setor que recebe o maior benefício nesta crise.

A segunda diferença é que as direitas estão em uma ofensiva muito potente. Os neoconservadores apostam na guerra, e nesse sentido, os eventos na Ucrânia (Euromaidan e a queda do presidente Yanukovych ) demonstram a decisão de ir à guerra: contra a Rússia para derrubar Putin , contra a China para conter sua ascensão, contra todos os governos que não se adequarem a seus interesses, ou seja, ao capital financeiro que está devastando a vida no planeta.

A terceira mudança é a reativação dos movimentos populares e o nascimento de novos movimentos. Junho de 2013 é um divisor de águas no Brasil, uma grande mudança que deve ser interpretada como um grito contra a desigualdade que, como sabemos agora, não se moveu, mas continuou a se aprofundar. O "consenso lulista" , como diz André Singer , só poderia ser mantido diante da passividade dos setores populares. É por isso que os eventos de junho deixaram o Partido dos Trabalhadores - PT e a Central Única dos Trabalhadores - CUT paralisados. Eles não souberam como reagir, permitindo que a direita se aproveitasse daquela paralisia.


IHU On-Line - Como entender a opção de governos progressistas pelo modelo econômico com base nas regras do sistema financeiro global? Quais são os limites desse modelo e como esse modelo pôs em xeque princípios ontológicos da esquerda?

Raúl Zibechi - Minha impressão é que se optou por uma forma de governo sem conflitos, nem com a direita nem com os setores populares. Esse progressismo, considerando o Brasil, o Uruguai e a Argentina, evita conflitos porque precisa posicionar-se acima das classes, como árbitro dos interesses das mesmas. Ante os ricos, apresenta-se como aquele que pode apaziguar os de baixo. E ante os de baixo, apresenta- se como o grande beneficiário com diversas políticas sociais. Quando esse cenário é dissolvido, os governantes não sabem como se manter, reagindo defensivamente.

O PT e a CUT poderiam ter ido às ruas protestar junto com o Movimento Passe Livre - MPL  e se colocar à frente das mobilizações. Afinal, foram milhões de pessoas que saíram para protestar por coisas legítimas. Quando CUT e PT saíram, já era tarde demais para defender o governo. Perdeu-se a maior energia de massas desde o fim da ditadura. Naquele momento perdeu-se a possibilidade de se conectar com a força social capaz de enfrentar os conflitos que inevitavelmente surgiriam, contra aquele 1% dos mais ricos.

Compreender uma nova realidade

Há de se entender que os desafios impostos pelas classes dominantes à população dominada, neste período, possuem características diferentes das tradicionais. Eles querem a eliminação dos que vêm de baixo, o que os zapatistas chamam de Quarta Guerra Mundial, uma guerra contra o povo para apropriação dos bens comuns.

Para enfrentar esta nova realidade, as velhas organizações e a velha maneira de se fazer política não se aplicam mais. Como enfrentar o juiz Moro  e os meios de comunicação? Para que isso aconteça, está faltando uma enorme energia social coletiva, capaz de fazer rachar este "domínio de espectro completo", como chamou Ana Ester Ceceña . A dominação capitalista não se reduz mais às oito horas em que o trabalhador produzia valores excedentes na fábrica, agora o domínio é macro e micro, simultaneamente de caráter militar e imaterial. Mas o aspecto militar segue sendo decisivo e cada vez maior.


IHU On-Line - Por que, no auge da crise de 2000, os governos progressistas latinos foram capazes de diminuir a fome, mas não conseguiram diminuir — e no caso do Brasil até aumentou — a desigualdade social?

Raúl Zibechi - Não se pode combater a desigualdade sem lutar contra os ricos. Se observarmos a forma como a pobreza foi combatida, na mesma lógica do Banco Mundial, veremos que foi com medidas técnicas. A pobreza foi despolitizada e considerada como um assunto de gestão, puramente administrativo. E isto funcionou por alguns anos. Mas não é possível lutar contra a riqueza com a mesma lógica. Existe uma coisa chamada luta de classes, que o PT esqueceu ou nunca levou em consideração. Sem lutar, sem recuperar os meios de produção e de câmbio apropriados pela burguesia (a terra, em primeiro lugar) não há diminuição na desigualdade, nas atuais condições do Brasil e dos países da América Latina.

Progressistas no poder?

Entretanto, os progressistas chegam ao governo e se acomodam com os privilégios, fazem alianças com aquele 1% dos mais ricos e desistem da luta. As empresas de construção são um bom exemplo. O caso de Kátia Abreu , entre muitos outros, demonstram essas alianças. E não somente no Brasil. É o caso da Venezuela, onde surgiu uma burguesia bolivariana (boliburguesia) que controla as alavancas do poder e que enriqueceu graças às receitas do petróleo.

Frente a isto, devemos perguntar: não aconteceu algo semelhante com as grandes revoluções russa e chinesa? Como podemos definir esse grupo que controla o partido, o Estado e as grandes empresas estatais e privadas? É uma burocracia ou uma nova classe? Estes deveriam ser os debates centrais neste período.


IHU On-Line - Como compreender a “nova direita” da América Latina? Quais são suas bases sociais?

Raúl Zibechi - Há uma nova direita mundial, inspirada nos neoconservadores estadunidenses que apostam na guerra para evitar a perda de poder. É uma direita que vem justamente no momento em que ocorre o declínio da superpotência, procurando reverter isso. Uma direita classista e militarista que aposta na resolução de conflitos sem nenhum tipo de mediação, através da violência de classe.

Para explicar por que os governos progressistas têm o apoio das massas, há de se entender as mudanças produzidas pelo neoliberalismo, por um lado, e pelo consumismo, do outro. O neoliberalismo liquidou as antigas classes médias, gerando uma camada de novos ricos ou aspirantes a ricos; mas um setor majoritário daquela classe média, que já não consegue mais se sustentar, entra em decadência. Isso está ligado à crise do socialismo, ao triunfo cultural do capital financeiro que faz todo mundo querer ser rico, quando apenas uma minoria consegue. Agora os da camada de cima não são 10%, como Marx  disse há mais de um século. Mais ou menos 30% da população têm interesses políticos e culturais em sustentar o sistema, e esta é a base social mínima das direitas.

Por outro lado, o consumismo despolitiza, anula as heterogeneidades e diferenças de classe, fazendo com que todos queiram parecer-se com os ricos. Isso contribui para uma derrota cultural e é parte da mesma, como diz Pasolini . Sem cultura diferenciada, não podemos nem sonhar em construir uma sociedade diferente. O progressismo tem promovido ativamente o consumismo. Um desastre estratégico, pois anula a capacidade das camadas mais pobres de se tornarem classe.


IHU On-Line - Qual a alternativa para a esquerda latino-americana antes de sucumbir à volta da direita ao poder? Como compreender que, insistindo nesse mesmo modelo progressista, nem direita e nem esquerda darão conta das necessidades atuais?

Raúl Zibechi - Creio que devemos analisar a partir de uma perspectiva histórica, de longo prazo. O que falhou no socialismo verdadeiro foi a pretensão de governar milhões, de governar os outros e levá-los — por convicção ou à força — para uma sociedade socialista. É o fracasso do Iluminismo, das luzes. Desta forma, para um terço da humanidade é imposto um sério e profundo equilíbrio dessas experiências em que eles se envolveram. Isso não é pouca coisa.

Mas a esquerda quer encontrar atalhos para continuar no mesmo caminho. O socialismo do século XXI não muda essa realidade, pois segue ainda com a ideia de uma sociedade centrada no Estado, em governar os outros, o que pressuporia "saber" o que as pessoas querem. Temos de nos perguntar quais são as alternativas, mas não apenas as alternativas econômicas, como geralmente acontece.

O que podemos ver, através do zapatismo , de alguns movimentos indígenas, como os Mapuche , e de outros movimentos pequenos, é que devemos renunciar a governar outros e motivar as pessoas para que se autogovernem. Esta é a utopia que necessitamos, que está relacionada à teologia da libertação, do jovem Marx e de Lenin , em 1917. Nossa militância é para que os povos, as pessoas comuns, se autogovernem. Precisamos mostrar que é possível, por meio de práticas na saúde, na educação, nas fábricas autogeridas... Contra isso, a esquerda se propõe apenas a mudar de governos. Mas todo o resto permanece o mesmo. Obviamente que para autogovernar-se é necessário que uma outra cultura política seja criada, ancorada na autonomia. Aí está uma diferença fenomenal: sem alterar a cultura política, só poderemos esperar encontrar bons governantes que, em poucos anos, se desviam.


IHU On-Line - Quais os limites da inclusão social via consumo? Como encarar de fato as reformas estruturais?

Raúl Zibechi - A inclusão por meio do consumo favorece e fortalece o capital financeiro, que é o que tem capacidade de emprestar aos consumidores dinheiro com taxas de juros que superam a inflação. Estamos diante de uma das modalidades de acumulação por espoliação, mencionando David Harvey . Este seria um olhar geral, ou se preferir, a partir do topo do modelo.

Entretanto, se analisarmos o modelo de baixo para cima, a partir dos setores populares que são "incluídos" através do consumo, o panorama é diferente. Eles devem trabalhar para os bancos. Eles têm trabalho precário e mal pago. São cidadãos de segunda classe quando embarcam no ônibus, quando vão ao Sistema Único de Saúde - SUS, para as escolas; mas consomem porque lhes é dito que esta é a maneira de se integrar na sociedade. Por isso eu acho que a integração através do consumo promove ideias e comportamentos conservadores, de pequenos proprietários. Desse modo, eles não podem se converter em sujeitos coletivos, pois somente é possível chegar a este lugar através da luta, enquanto o consumo torna iguais os que são diferentes, mas uma igualdade ilusória, diante das vitrines.

Utopia reacionária que enfraquece o trabalhador

Vou dizer de uma forma brutal: a integração através do consumo é uma utopia reacionária que enfraquece o povo trabalhador. Note que a inclusão financeira é uma das políticas mais importantes do Banco Mundial, que é o verdadeiro think tank  das esquerdas que perderam capacidade de pensamento próprio.

Na história das esquerdas, creio que nas revoluções russa, chinesa e cubana, por exemplo, o problema nunca foi a pobreza, mas a riqueza, a concentração de riquezas. Inclusive para a social-democracia nas primeiras décadas do século XX até a década de 60, o problema nunca foi a pobreza, mas a riqueza. Quem colocou a pobreza em primeiro lugar foi o Banco Mundial, após a derrota dos Estados Unidos no Vietnã, pelas mãos de McNamara , um dos principais expoentes do sistema. E agora repetem como papagaios que o grande mérito do progressismo foi ter reduzido a pobreza. Esta é uma capitulação política frente ao 1%.

 

IHU On-Line - Em que medida é possível afirmar que o socialismo do século XXI e as velhas lutas sucumbiram a um velho modelo político para se perpetuar no poder?

Raúl Zibechi - Esta é uma questão mais complexa. Como eu disse antes, para mim o eixo do modelo político anterior, já decrépito, consistia em mudar o mundo de cima para baixo, através do Estado. O legado do progressismo é a convicção de que o mundo não pode ser alterado a partir do topo, mas através da luta, o conflito encontra classes, gêneros, etnias, raças, gerações, e assim por diante. Não é concedendo uma percentagem das quotas a estudantes negros que será democratizada toda a questão racial no Brasil. Estamos diante de um genocídio do povo negro confirmado por todos os dados, desde o "Mapa da Violência"  até a campanha "Reaja ou será morta, reaja ou será morto" .

O poder que seduz

Agora, quando alguém chega ao poder é muito difícil que o solte. O caso de Che  é maravilhoso, mas é a exceção que confirma a regra. O mais comum na esquerda é que tudo seja feito para obter ou para permanecer no poder, porque há uma ilusão criada, desde a revolução russa (quem sabe até antes), de que a chave para mudança é a sua conquista. Claro que esses governantes muitas vezes chegaram ao poder para não mudar nada, mas para estarem sentados confortavelmente nas poltronas. Mas esta já é uma questão ética.


IHU On-Line - Qual é o papel dos coletivos e dos movimentos sociais de hoje que atuam em países da América Latina e no mundo? Que tensões eles provocam nos modelos atuais de governança?

Raúl Zibechi - Creio que os movimentos sociais estão muito fracos, em grande parte, pela relação que tiveram com os governos progressistas. Mas estou convencido de que a energia criativa, a energia coletiva capaz de mudar o mundo, está no que eu chamo de "pessoas comuns organizadas em movimentos". Se pensarmos no junho de 2013, no Brasil, mas também no dezembro de 2010, em Buenos Aires, quando houve a ocupação do parque Indoamericano por milhares de famílias sem-teto, na marcha em defesa do  TIPNIS, na Bolívia, no recente levantamento indígena no Equador, e assim por diante, podemos concluir que os movimentos ainda estão lá: enfraquecidos, mas em atividade, mostrando os limites do progressismo.

Uma das grandes conquistas dos movimentos tem sido mostrar que o modelo extrativista (monoculturas, mineração a céu aberto, especulação imobiliária e megaconstruções de infraestrutura) é um modelo predatório do meio ambiente, que expulsa os mais pobres de seus territórios urbanos e rurais, que destrói o vínculo social, que nos torna mais dependentes dos preços das matérias-primas que são decididos nas bolsas de valores, como a de Chicago.

Além de tudo, é um modelo que ameaça a nossa independência como nações. Tudo isso foi mostrado pelos movimentos sociais: no Brasil, o Movimento dos Sem Terra - MST em relação ao agronegócio, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto - MTST e os Comitês da Copa em relação à especulação urbana. Sem os movimentos, o modelo não teria quem questionasse suas diretrizes ou as vozes seriam muito fracas.


IHU On-Line – Os atuais governos progressistas são capazes de interpretar o que dizem e demonstram os novos movimentos sociais sobre os limites do atual modelo de representatividade?

Raúl Zibechi - Não. Eles insistem na democracia parlamentar, porque não podem imaginar outra figura que não seja a da representação. Mas há algo mais sutil: a impressão de que a grande maioria dos quadros políticos do PT e da esquerda latino-americana perdeu contato com os movimentos, com os militantes críticos. Ou eles não os veem ou não os escutam, e muitos os temem, com medo de uma aproximação. Podemos imaginar um diálogo entre Zé Dirceu  e um militante do Movimento Passe Livre ou um dos ocupantes das escolas paulistas com 15 anos de idade?


IHU On-Line - Quais os limites dessa perspectiva de ajuste fiscal como estratégia para superar a crise econômica? Como o questionamento ao modelo extrativista pode iluminar e trazer outras perspectivas ao debate sobre superação de crise?

Raúl Zibechi - Utilizar mecanismos do sistema para superar a crise é um erro, porque aprofunda a lógica capitalista. O Brasil não vive uma crise econômica, mas uma crise política que se manifesta na economia. Como a escritora espanhola Almudena Grandes  disse, "o que chamamos de crise foi uma guerra entre potências econômicas contra os cidadãos que somos e que perdemos".

Não se pode sair desta crise sem extenuar o capital financeiro, porque este capital é o que está segurando o modelo extrativista que não é um modelo produtivo, mas especulativo. Um dos grandes problemas do progressismo é que ele deixou de chamar as coisas pelo seu nome: fala-se de pós-neoliberalismo, mas o extrativismo nos prende ao modelo neoliberal, dominado pela especulação financeira. 

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Raúl Zibechi - Sim. Constato com grande tristeza a crise do pensamento crítico. Com certeza, como assinala Arturo Escobar , há um florescimento de pensamentos fora das academias e das catedrais da velha esquerda. Os intelectuais mais conhecidos, consagrados pelos partidos e universidades, ou seja, aqueles do sexo masculino, brancos, mais velhos, classificaram o poder do Estado, com a notável exceção de Chico de Oliveira .

Entretanto, na parte de baixo, aparece uma camada de homens e mulheres, índios, mestiços, negros, camponeses, trabalhadores, que estão levantando suas vozes, são pessoas intimamente ligadas às lutas de seus povos. Elas e eles são o relevo, porque quando uma geração é classificada, sempre aparecem vozes que antes estavam submersas, vozes que nem sempre escrevem livros, mas encarnam o pensamento coletivo que surge muitas vezes nos fornos, nas cozinhas e nos quilombos, e não costumam se expressar por meio de teorias, mas através de danças e celebrações nos espaços próprios daqueles que vêm de baixo. ■

 

Leia mais...

- América Latina: as bases sociais da nova direita. Artigo de Raúl Zibechi publicado por Outras Palavras e reproduzido pelas Notícias do Dia de 24-02-2016, do sítio do IHU.

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