Edição 480 | 07 Março 2016

Previdência, o bode expiatório da crise econômica

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Ricardo Machado

Para o historiador e político Raul Pont, as discussões em torno da Previdência Social são apenas um desvio de foco das questões mais de fundo da economia, as taxas de juros

A recessão econômica que, desde 2015, se intensificou no Brasil tem provocado impactos também na área social. Neste cenário, a Previdência aparece como o “bode expiatório” que salvará as contas públicas. “Nesse momento a discussão do sistema previdenciário está capitaneada pela mídia monopolizada e pelos grandes bancos, o setor financeiro que hegemoniza o capitalismo brasileiro, fazendo todo um alarde em torno da Previdência ao mesmo tempo que escondem a despesa orçamentária em torno dos custos da despesa com juros da dívida”, critica Raul Pont, em entrevista por telefone à IHU On-Line.

A questão da seguridade social tem servido como uma cortina de fumaça às questões de fundo da economia nacional, que é o gasto com os juros bancários. “Um erro grande que foi feito no governo Dilma foi a desoneração da folha para favorecer as empresas, pois não reverteu em investimento, tampouco em recuperação de empregos ou alta na atividade econômica”, aponta o entrevistado. “As pessoas que precisam da Previdência são as mesmas que trabalharam a vida inteira, quem não precisa é quem vive de renda, tem patrimônio e vive de receitas da especulação financeira. Não devemos tocar nos direitos previdenciários, temos que mexer nas taxas de juros, nas desonerações das commodities etc.”, complementa.

Raul Pont é graduado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e pós-graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Foi deputado estadual constituinte (1987-1990), deputado federal (1991-1992) e deputado estadual (2003-2015). É autor, entre outros livros, de Democracia, Participação, Cidadania – Uma visão de esquerda (Porto Alegre: Editora Palmarinca, 2000), The Porto Alegre Alternative – Direct Democracy in action (Londres: Editora Pluto Press, 2004) e La democrazia partecipativa (Roma: Edizione Alegre, 2005).

 

Confira e entrevista.

 

IHU On-Line - O Brasil realmente precisa de uma reforma no sistema previdenciário? De que tipo?

Raul Pont – O Regime Geral da Previdência passou por uma reforma recentemente e foram modificados alguns critérios, estabelecendo a regra do 85/95 para mulheres e homens, na soma entre tempo de vida e trabalho. Há também a complementação para um processo futuro e a ampliação dessa regra ficará em 90/100, em função de crescimento e melhorias das condições de vida das pessoas. No regime geral, pela dominância absoluta, claramente majoritária de pessoas que recebem em torno de um salário mínimo, não há razão nenhuma para outras reformas.

Distorções

Nós temos distorções grandes nos regimes próprios estaduais. Os regimes próprios do setor público são extremamente desiguais e injustos, trazendo privilégios inaceitáveis, e estes têm de ser alterados. Se o governo federal quer ajudar, ele poderia, por exemplo, estimular ou estender a previdência complementar, que já existe para servidores federais, para os regimes próprios estaduais. Isso melhoraria bastante o controle do sistema, diminuiria custos administrativos e de gestão.

Sistema único

Devemos caminhar para um sistema único; mesmo que se mantenham os regimes próprios estaduais, que eles tenham as mesmas características, as mesmas regras do Regime Geral da Previdência. Estas medidas são necessárias e podem ser feitas.


IHU On-Line - Como analisa a proposta de reforma da Previdência que vem sendo discutida no âmbito federal? Em que medida essa proposta atende a lógica do cenário de ajuste fiscal, de uma política econômica ortodoxa?

Raul Pont – Nesse momento a discussão do sistema previdenciário está capitaneada pela mídia monopolizada e pelos grandes bancos, o setor financeiro que hegemoniza o capitalismo brasileiro, que fazem todo um alarde em torno da Previdência, ao mesmo que tempo que escondem a despesa orçamentária em torno dos custos da despesa com juros da dívida. Os números são incontestáveis. O INSS, nos últimos tempos, incorporou inúmeras pessoas, são 28 milhões de beneficiários da Previdência, com um custo previdenciário que fica em torno de 8% do PIB, algo perfeitamente razoável. Em 2015, o gasto com os juros da dívida foi em torno de R$ 500 bilhões e a projeção para este ano é de mais de R$ 600 bilhões, ao passo que o aumento dos gastos com a Previdência, no ano passado, foi de R$ 6 bilhões. O estranho é que se cria todo um alarde em torno de uma variação de R$ 6 bilhões, em um ano atípico, com aumento de desemprego, com alta da taxa de 4,3% em 2013 para 6,9% em 2015, que poderia ser menor caso as pessoas estivessem contribuindo no mercado de trabalho.

Sem apoio

O que estamos defendendo dentro do partido é que fique claro, desde agora, para a presidente Dilma, que o PT não votará a favor da reforma. Pelo menos essa é a posição dos deputados estaduais e federais da bancada do PT no Rio Grande do Sul. É preciso ficar bem esclarecido que não haverá apoio do PT a qualquer medida que restrinja direitos dos trabalhadores. Podemos discutir e concordar com a correção de um ou outro detalhe, mas o que os bancos querem é desatrelar o salário mínimo do piso previdenciário e desonerar ainda mais as áreas de educação e saúde para sobrar mais recursos para o sistema financeiro. 

O problema é o Banco Central

O nosso problema não é a Previdência, é o Banco Central. O Tombini  está a serviço dos bancos e do capital financeiro e é isto que nós precisamos mudar. A gestão do Levy  foi um ano perdido, pois não cumpriu nada do que prometeu e levou o país para o fundo do poço. É necessário forçar o Tombini a produzir uma política que seja de crescimento e geração de empregos no Brasil, retomando as despesas sociais, educacionais e da área da saúde.


IHU On-Line - Como compreender as disparidades entre a argumentação do governo de que há um déficit e a contraposição de pesquisadores que apontam superávit, desde que os artigos 194 e 195 da Constituição sejam cumpridos?

Raul Pont – Concordo com os pesquisadores, no entanto quem mais tem divulgado esta ideia não tem sido o governo, que inclusive se posiciona dizendo que não tem uma posição clara, embora abrace a tese do déficit. Quem mais tem defendido essa posição do déficit são os inimigos do povo, que são os mesmos de sempre: os grandes meios de comunicação, esses colunistas da grande mídia a serviço do capital, os funcionários que são a voz do dono. Essa é a turma que cria uma situação de alarde, colapso etc. Se os recursos previstos na Constituição, de destinar tributos para o financiamento da seguridade social — que não é somente a Previdência, envolve assistência social e Sistema Único de Saúde —, estivessem assegurados, não haveria déficit, isso é o que os números mostram. 

A crise internacional, que o ex-presidente Lula  chamou de marola, mas que impacta o mundo todo, exige que o governo tome medidas para reorganizar o orçamento e estimular o emprego, fazer linhas de crédito, realizar algumas desonerações temporárias, diminuir o recolhimento de impostos da linha branca, com redução do IPI etc. Essas coisas não podem ser permanentes, são feitas para momentos de exceção, e uma vez reequilibrada a estabilidade, essas medidas têm que acabar. Um erro grande que foi feito no governo Dilma foi a desoneração da folha para favorecer as empresas, pois não reverteu em investimento, tampouco em recuperação de empregos ou alta na atividade econômica. Essa política de desonerar 20% da folha em troca de 1,5% do faturamento determinou a queda na arrecadação da Previdência. Esse é um momento de recolocar as coisas no lugar. 

Medidas

Existem muitas medidas a serem tomadas antes de se pensar no problema previdenciário. No Brasil, o sistema é composto entre 70% e 80% de beneficiários que recebem o salário mínimo. Isso tem sido um poderoso instrumento de garantia ao mínimo de qualidade de vida das pessoas, além de ser um instrumento, também, de política econômica. Para muitos municípios, a Previdência é um estímulo ao comércio, à atividade econômica, é um meio circulante que garante movimentação da economia. A Previdência é algo absolutamente necessário e nisso não se pode mexer. 

Todos os especialistas sérios do Brasil, que apontam que não há déficit previdenciário, apontam, também, que não adianta elevar a taxa de juros para combater a inflação, porque não é uma inflação de demanda, não é que as pessoas estejam gastando muito. 


IHU On-Line - O que significa para o trabalhador a criação da Previdência Social do Brasil no contexto da Constituição de 1988? E o que essa ideia de reforma representa para essas conquistas sociais?

Raul Pont – A manutenção da Previdência e o conjunto de benefícios dos segurados — seguro-desemprego, licença-maternidade, entre outros — são direitos alcançados que colocam o país em um patamar de sociedade civilizada que devemos nos orgulhar e defender. Acreditar que as políticas de privatização da Previdência como foram aplicadas no Chile e em outros países implicaram em melhoria à vida dos trabalhadores foi um erro, já que o projeto durou três ou quatro anos. As empresas quebram, os planos privados não prestam contas a ninguém, os donos enriquecem, e as pessoas que precisavam da seguridade garantida ficam apenas com a possibilidade de ir para a frente da Igreja pedir esmolas, de ir para a exclusão absoluta e para a morte.

A Previdência Social é uma conquista da humanidade, um avanço. Quem não reconhece isso é porque é uma pessoa extremamente reacionária e egoísta, sem nenhuma visão de como as coisas ocorrem na sociedade. As pessoas que precisam da Previdência são as mesmas que trabalharam a vida inteira, quem não precisa é quem vive de renda, tem patrimônio e vive de receitas da especulação financeira. Não devemos tocar nos direitos previdenciários, temos que mexer nas taxas de juros, nas desonerações das commodities etc. 

Lei Kandir

A Lei Kandir,  por exemplo, é completamente absurda, pois tira impostos de produtos privados que vão para exportação. Esse tipo de economia baseada na retirada de soja do campo que vai para o porto ou da extração de minério de ferro que segue o mesmo destino é uma atitude completamente estúpida que precisa ser corrigida. A CPMF  é uma excelente forma de conseguir recursos, e deve ser destinada mais à saúde do que à Previdência. O debate em torno da Previdência é desvio de foco. O que os banqueiros querem é tirar o desindexador do salário mínimo e fazer com que o orçamento tenha mais recursos para pagar juros da dívida.

 

IHU On-Line - Mas não seria mais simples cumprir o que prevê a Constituição, em vez de criar mais um imposto, onerando todo mundo?

Raul Pont – O problema é que parte desses impostos foram desonerados e não vão para a Previdência. O Estado tem outras dívidas a cobrar. Se o Estado não consegue cumprir todas as suas obrigações na saúde, na previdência, na educação, na assistência social, com os recursos que tem e, ao mesmo tempo, não pode diminuir um centavo da dívida pública, se a taxa Selic  é diminuída, imediatamente haverá queda nas despesas orçamentárias destinadas ao pagamento dos juros da dívida, forçando os especuladores a colocar o dinheiro em algum investimento produtivo. A CPMF, se for criada, é importante porque é um imposto seletivo que vai atingir, fundamentalmente, a movimentação financeira. Pode-se criar um sistema desse sem incluir o trabalhador que recebe até três salários mínimos, que é a maioria da população.

No Brasil os impostos são majoritária e exageradamente indiretos. Está na hora de começarmos a revertê-los para que se tornem diretos, atingindo as pessoas conforme a capacidade contributiva do cidadão, mas quem paga mesmo é quem não pode. O pobre, o consumidor que chega ao mercado, estando ele empregado ou não, paga igualmente o imposto em relação ao milionário. Por isso que a matriz tributária está errada.   


IHU On-Line - Quais os riscos de se debater — e levar para o Congresso — uma proposta de reforma da Previdência em momentos de crise econômica?

Raul Pont – Os riscos são grandes e estamos tentando convencer a presidenta para que não mande o projeto. É possível que o Estado esteja reagindo a uma pressão que vem da grande mídia e dos teóricos do liberalismo que defendem estas posições de redução de direitos. Defendo que não é necessária uma reforma da Previdência neste momento, mas se tiver que ocorrer então vamos discutir com a sociedade, inclusive a reclamação de que os trabalhadores rurais recebem sem ter contribuído. Essa argumentação, de quem é contrário, deve ser discutida para ver se há alguma forma de contribuição, mas é importante manter a o benefício a estes trabalhadores.

Não dá para se dobrar ao discurso fácil de que todo mundo está vivendo mais e melhor, embora isso tenha uma dimensão verdadeira. Ainda tem o fato de que aos 50 anos as pessoas estão alijadas do mercado de trabalho e vão viver como? Com a rotatividade, o descumprimento das leis trabalhistas, com a falta de comissões de fábricas, com a falta de diálogo entre empresas e candidatos, como lidar como essa ausência de democracia? Como não há nada disso, as empresas simplesmente, de forma ditatorial, demitem e não querem nem saber se os empregados têm família ou não. 

Realidade social

Esses elementos também são parte da realidade social. As pessoas depois dos 50 anos têm uma dificuldade enorme de se manter no mercado. É por isso que pessoas com 55 a 60 anos preferem se aposentar recebendo menos, com a garantia de uma renda mínima, e vão para a informalidade complementar a renda. Essa é a realidade do trabalhador que não tem estabilidade, não tem progressão do emprego, sem garantias de ascensão profissional. Cada vez que alguém é demitido, é um suplício para poderem voltar ao mercado de trabalho.


IHU On-Line - Como essa proposta de reforma vem sendo discutida com a sociedade? Que alternativas existem para desverticalizar as decisões sobre um tema de absoluto interesse social?

Raul Pont – O governo prometeu e o próprio ministro do Trabalho, Miguel Rosseto,  na posse do superintendente do Ministério do Trabalho, em Porto Alegre, no final de fevereiro, reafirmou que não há nenhuma pressa de envio da matéria ao Congresso e que está aberto um canal de discussão com a Central Única dos Trabalhadores - CUT,  com a CTB,  as centrais sindicais que têm posição contrária à mudança. O governo está disposto a criar um processo de debate para aprofundar item por item daquilo que está sendo questionado, como a idade mínima e a contribuição daqueles que adquiriram direitos de receber sem ter contribuído.

O problema é que os bancos e a direita não estão nessa; eles estão fazendo recair nas costas do trabalhador uma garantia para que se tenha mais resultado primário e dinheiro no orçamento para remunerar taxas de juros. Esse é o centro da questão, o resto é conversa fiada. 

 

IHU On-Line - Podemos afirmar que, levando em conta o cenário atual, a Política Social é quem está pagando a conta da Política Econômica?

Raul Pont – Esse é exatamente nosso maior temor. Não queremos que as políticas sociais paguem a conta, que sejam utilizadas como desvio do foco principal. Em um intervalo de apenas um ano, a taxa de juros aumentou em R$ 100 bilhões os recursos que vão para os cofres dos bancos apenas para pagamento dos juros da dívida. Isso representa, praticamente, dois orçamentos do estado do Rio Grande do Sul. Isso é estupidez, isso que precisa ser modificado. ■

 

Leia mais...

- O processo de consolidação programática. Uma análise do sistema partidário gaúcho. Entrevista com Raul Pont publicada na revista IHU On-Line, nº 264, de 30-06-2008.

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