Edição 480 | 07 Março 2016

Previdência como política, não como matemática

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João Vitor Santos

Evandro José Morello defende o que chama de sistema protetivo. Para ele, a questão não é o quanto se arrecada e o quanto se paga, é pensar em políticas que de fato impactam a vida

A discussão em torno das equiparações — igualar idade mínima para aposentadoria de homens e mulheres e igualar o trabalhador rural ao urbano —, que se configura na proposta de reforma da Previdência, pode ter efeitos catastróficos do ponto de vista social. No campo, e especialmente nas mulheres do campo, o impacto pode ser ainda maior. “É importante ter um sistema hoje que foque a proteção do grupo familiar. A Previdência Social Rural não visa apenas à proteção do indivíduo, mas do conjunto familiar que está no exercício da atividade rural”, avalia o assessor jurídico da Confederação dos Trabalhadores na Agricultura – Contag, Evandro José Morello.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Morello analisa os impactos dessa proposta no campo. Entretanto, antes de elencar argumentos que pesem pró ou contra a reforma, ele convida a uma reflexão. “Não podemos pensar a Previdência Social apenas na relação do que se arrecada e do que se paga, não é meramente uma conta. É preciso pensar a Previdência Social enquanto política de Estado, olhando todo um sistema protetivo e refletindo como isso impacta na vida das pessoas”, explica. Nessa perspectiva, os argumentos de déficit se esvaziam. A ideia é pensar em formas de assegurar a permanência das famílias no campo em condições dignas de vida produtiva. “Interessa para nós, hoje, ter gente no campo produzindo alimentos? Em que condições queremos manter um pacto social para que tenhamos famílias no campo em condições de produzir alimentos saudáveis para abastecer nossa mesa? É um debate que precisamos estar cruzando nessa ideia da reforma da Previdência”, provoca.

Morello também recupera a história para entender o processo que levou até uma política de proteção previdenciária mínima para as famílias de agricultores. “O sistema de proteção de trabalhadores no Brasil começou em 1924, mas os trabalhadores rurais só conseguiram ter um sistema mínimo de proteção a partir da década de 1970”. 

Evandro José Morello é assessor jurídico da Contag. Está na entidade há 17 anos e há 20 anos trabalha com o tema da Previdência Rural. Graduado pela Faculdade de Direito de Colatina, no Espírito Santo, é mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília – CEUB.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como analisa as conquistas dos trabalhadores rurais acerca da Previdência Social pós-Constituição de 1988?

Evandro José Morello - É preciso avaliar o impacto da Previdência Rural considerando como era o subsistema que tínhamos antes de 1988, estruturado no que chamamos de Pró-Rural/Funrural, e o que foi depois com a inclusão dos trabalhadores rurais no Regime Geral da Previdência. Ter um sistema, uma política previdenciária, para os trabalhadores rurais é algo pouco comum. Poucos países estruturaram seus sistemas protetivos como o Brasil, tendo um foco diferenciado de cobertura social para esse público específico da área rural. Tanto é que o modelo brasileiro é até hoje estudado como uma política importante para países quando se pensa a seguridade social como proteção para a coletividade da sociedade.

No caso específico das vantagens, a inclusão dos trabalhadores rurais no Regime Geral ocorre com todo um arcabouço de discussões que se deu na Constituinte de 88 e que tratamos até hoje como Constituição Cidadã. Assim, os trabalhadores rurais conseguiram alcançar essa igualdade de tratamento em matéria previdenciária e com isso passaram a ter o direito de receber salário mínimo, abandonando a distinção que havia anteriormente quanto ao arrimo de família — quando era vinculada apenas ao homem. No caso da mulher, só lhe era possível alcançar uma proteção social pela antiga Renda Mensal Vitalícia e isso quando chegasse aos 70 anos. 

Todos esses avanços colocaram essa questão protetiva da área rural num outro patamar. Podemos destacar não só meramente a questão da melhor distribuição de renda, mas também a questão da renda econômica e social da família, da economia dos municípios — porque o benefício é um sistema de distribuição de recursos que o Estado faz sem intermediários, vai diretamente para o beneficiário, o que potencializou a economia dos municípios, e já há estudos que mostram isso. A Fundação Instituto de Pesquisa Econômicas – Fipe, inclusive, fez um estudo, por volta de 2008, em que constata que esse montante de recursos, em algumas cidades, superou o montante de recursos do Fundo de Participação dos Municípios. São análises que precisamos fazer não olhando apenas para a vida individual do sujeito que é beneficiado, mas sim para toda uma coletividade.

Benefício e segurança familiar

Há alguns estudos, como do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, mostrando o impacto que esse benefício da Previdência Rural tem para a família. É como se fosse considerado um seguro para as famílias que não têm, por exemplo, outros recursos para se manter em episódios de seca ou inundação. Quem acaba dando o suporte para esse núcleo é o membro que recebe o benefício de aposentadoria ou pensão.

Além disso, muitas vezes esse recurso não é empregado somente para compra de alimento ou medicamentos para o beneficiário. Quando há alguma sobra de recurso, acaba sendo usado na produção através da compra de insumos. Há um conjunto de aspectos que foram e continuam sendo importantes se olharmos a Previdência Social não como uma política técnica securitária, quando eu só devo receber na proporção daquilo que pago. É preciso olhar todo o contexto e pensar também na produção de alimentos. Ou seja, é ver a Previdência como uma questão de fundamental estratégia para a sociedade brasileira, possibilitando que seja mantido o trabalho dos agricultores no campo.

A vida no campo antes da Previdência Rural

O sistema de proteção de trabalhadores no Brasil começou em 1924, mas os trabalhadores rurais só conseguiram ter um sistema mínimo de proteção — em termos previdenciários e trabalhistas — a partir da década de 1970. Inclusive a Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT , de 1943, não foi aplicada aos trabalhadores rurais. Passamos um período crônico de nossa história com um tratamento muito desigual do ponto de vista das políticas públicas destinadas à população do campo. Só em 1973 se tem uma lei específica para regular as relações de trabalho no campo.

Em 1971 havia sido criado um sistema de pagamento mínimo de benefício aos trabalhadores rurais de um modo geral, não fazendo a distinção específica se era da agricultura familiar ou se era empregado rural. Era um sistema que unificava todo mundo que vendia sua força de trabalho ou trabalhava por conta própria. Era auxílio na pensão por morte, auxílio-doença e uma aposentadoria que era equivalente — ainda antes de 1988 — a meio salário mínimo. E ainda só era pago ao arrimo de família, ou seja, o benefício não era direcionado ao grupo familiar, só um membro da família tinha direito.

Era uma espécie de benefício assistencial, que poderíamos até chamar de precário, mas que foi muito importante para dar início a um patamar mínimo de proteção para uma grande parcela da população que, até então, estava excluída de qualquer sistema protetivo. O vínculo da pessoa com o sistema não se dava por uma regra de contribuição mensal, embora existisse uma fonte de contribuição prevista sobre a venda da produção rural. O vínculo, a proteção, se dava pelo exercício da atividade rural. Essa é uma grande distinção que temos de outros sistemas de proteção, pois, mesmo depois de 1988, esse critério de acesso aos benefícios foi mantido no Regime Geral da Previdência para os trabalhadores rurais. O direito de um trabalhador rural em acessar um benefício não se dá pela necessidade da contribuição que ele precisa fazer sobre a venda da produção ou qualquer tipo de contribuição individual, mas sim pelo simples fato de ele provar que continua no campo e exercendo atividade.

 

IHU On-Line - De que forma a proposta de reforma da Previdência posta em discussão pelo governo ameaça essas conquistas?

Evandro José Morello - Historicamente, antes e depois de 1988, o sistema de proteção previdenciária da área rural nunca foi pensado para ser autossuficiente naquilo que tratamos entre a arrecadação e pagamento de benefícios. Isso porque sempre há uma necessidade de estabelecer fontes de contribuição complementares para dar conta de cobrir os benefícios sociais. É aí que está o pacto social, o pacto de solidariedade da sociedade brasileira para garantir a proteção. 

Um trabalhador do campo, muitas vezes, vende sua produção somente uma vez no ano e não é possível exigir que pague contribuições mensais. Exigir isso dele significa excluí-lo de qualquer sistema protetivo. Vejamos o exemplo de determinada commodity, como a soja: em geral, há apenas uma safra no ano. Sendo assim, dificilmente se conseguiria dar proteção para uma família de produtores de soja, caso fosse exigido que todo mês fizesse uma contribuição. E mais: exigir uma contribuição equiparada à de trabalhadores urbanos, que é uma contribuição vinculada à renda que se obtém mensalmente, seria inviável porque o trabalhador rural não tem essa garantia de salário.

Proteção e inclusão

O sistema de seguridade social brasileiro, criado a partir de 1988, foi determinante para garantir inclusão e proteção do trabalhador rural. O sistema tem em sua base algumas diretrizes que são fundamentais, como a de dar tratamento equitativo a sujeitos tanto do ponto de vista da contribuição quanto de acesso a benefícios. Assim, se criou em nosso sistema de seguridade uma base ampla de financiamento, a qual permite que se apurem fontes de receita diversas para cobrir as despesas específicas das três políticas que temos no sistema de seguridade: a saúde, a assistência social e a previdência social. E, do ponto de vista da contribuição do trabalhador rural, há uma incidência sobre a venda da produção.

Uma verdadeira reforma

Que impacto tem uma proposta de reforma hoje? Aprimorar o sistema de seguridade social, aprimorar a gestão, a receita e a forma de arrecadação são questões centrais a serem discutidas com a sociedade. Temos muitos problemas de dívidas hoje que já são créditos constituídos em favor do sistema de seguridade, que ainda são sonegados e não pagos. Há dívidas que vêm rolando há muito tempo, e ainda temos um problema de renúncias fiscais das contribuições sociais destinadas à seguridade social de muitos setores. Essas questões são muito fortes e é o que precisa ser debatido.

O Governo, por exemplo, fez uma política de desoneração da folha de pagamento a partir de 2011 que trouxe impacto enorme nas contas da seguridade social, houve uma perda de receita e não conseguiu repor e nem exigiu contrapartida do setor patronal que recebeu o benefício. Tivemos algumas outras questões que ocorreram nos últimos anos e impactaram fortemente no custeio e financiamento do sistema de seguridade social.

Agora, entretanto, naquilo que a proposta de reforma traz — lembrando que ainda são cogitações e que não temos ainda uma proposta fechada — a respeito de estabelecer idade mínima uniformizada para homens e mulheres, trabalhadores urbanos e rurais, ao invés de resolver o problema, talvez crie até um problema social maior ainda. Porque é muito difícil dar um tratamento igualitário, sobretudo em idades de aposentadoria, quando analisa uma diversidade de situações hoje.

Para se ter ideia, uma pessoa que está no campo hoje não começa a trabalhar com 18 ou 20 anos, mas muito mais cedo. O trabalhador rural, chamado de segurado especial, não tem acesso a nenhum tipo de aposentadoria sobre tempo de contribuição. A única aposentadoria é a por idade. Hoje, uma mulher trabalha em torno de 39 anos e um homem 44 anos. É possível considerar que a expectativa de vida está aumentando, mas com que qualidade de vida as pessoas realmente estão vivendo? Isso são questões que precisam ser melhor analisadas. Nós temos alguns questionamentos nesse debate, porque as regras destinadas aos trabalhadores rurais hoje fazem com que as pessoas alcancem os benefícios já em condições muito frágeis de sua capacidade produtiva, de dar continuidade à sua subsistência. Por isso entendemos que esse debate de equidade não seria oportuno, sobretudo na idade mínima para aposentadoria.

 

IHU On-Line - Como entender as questões de fundo nessa intenção de “reformar” a aposentaria especial para trabalhadores rurais?

Evandro José Morello - A nossa Constituição previu situações de trabalho em estados que chamamos degradantes, que são os casos de periculosidade, insalubridade e penosidade. As duas primeiras circunstâncias têm toda regulamentação e normatização legal. Já a questão da penosidade nunca foi regulamentada. No meio rural, o trabalho incessante e exposto às adversidades do clima pode ser considerado como uma situação penosa. Mas não temos nada que defina ou conceitue, indicando como se deva olhar o exercício desse trabalho para diversos tipos de políticas, seja para caráter indenizatório ou mesmo para proteção social. 

Esse é um vácuo que temos ainda na legislação e que precisa ser tratado. Entretanto, na legislação do que chamamos de aposentadoria especial, e olhando a figura do segurado, entendemos que a mudança de regra naquilo que venha suprimir ou restringir as regras de acesso pode causar um efeito contrário ao que se pensa. Entendemos que é possível sim aprimorar política, mas há várias questões que precisam ser analisadas.

Equiparações

Quando se trata de aposentadoria especial pelas regras atuais, o único ponto que tem de diferente do urbano para o rural é a idade de aposentadoria. Enquanto, no caso do trabalhador urbano, o homem se aposenta aos 65 anos de idade e a mulher aos 60, no trabalho rural o homem se aposenta aos 60 e a mulher aos 55 anos. No entanto, não há aposentadoria por tempo de contribuição para o rural. E os dados mostram que a maior parte dos trabalhadores urbanos hoje não se aposenta por idade, e sim por tempo de contribuição. Alcançam os 30 ou 35 anos de tempo de contribuição antes da idade mínima exigida, que seria de 60 ou 65 anos. O trabalhador rural já não tem essa opção de se aposentar pelo tempo de contribuição, vai se aposentar somente pela idade.

E quando fazemos um comparativo, vemos que a média de aposentadoria da mulher trabalhadora rural é de 57 anos e a do homem é 59. Na área urbana, a idade de aposentadoria fica em torno de 55 anos para mulher e 58 para os homens. E ainda há, no caso dos trabalhadores rurais, a questão da dificuldade de ter de provar o tempo de vida laboral. Embora se saiba que trabalham praticamente toda a vida, poucos conseguem comprovar legalmente esse período de trabalho. 

Se hoje o governo fosse mudar as regras para aumentar a idade da aposentadoria sem um critério basilar, e ainda unificar a idade para homens e mulheres, seria desigual. Imagine uma mulher trabalhar uma vida toda e se aposentar aos 65 anos de idade, ou mesmo um homem? O benefício talvez chegue numa situação de vida muito deplorável dessa pessoa. A capacidade de trabalho no campo hoje está no limite dos 57 anos, dado o trabalho extenuante. Necessariamente discutir a idade de aposentadoria não exigiria a questão da regulamentação do trabalho penoso. Não é essa a questão de fundo, mas mereceria haver um debate para discutir o que é o trabalho penoso no nosso país, isso precisaria sim.

 

IHU On-Line - A emergência de abordar essa questão da regulamentação do trabalho penoso é maior do que mexer na idade mínima para aposentadoria?

Evandro José Morello - Provavelmente. Basta pegar o exemplo de um cortador de cana. Como trabalham por safra, apenas entre 27 e 30% das pessoas conseguem ter um vínculo permanente. A grande mão de obra, que representa em torno de três milhões de assalariados, trabalha de forma sazonal, nas safras. Quando se formaliza o contrato dessas pessoas, o máximo que se consegue é em torno de quatro meses de vínculo empregatício. Esse trabalhador dificilmente vai conseguir atingir uma aposentadoria por tempo de contribuição nessas condições de comprovar o vínculo de contribuições mensais. Onde que ele cai? No Direito Protetivo, no acesso à aposentadoria por idade.

Para um trabalhador no corte da cana, saber que vai se aposentar aos 65 anos é muito difícil. Encontrar um trabalhador do corte da cana em condições de atuar na lavoura aos 65 anos é muito raro. Antes disso ele já está extenuado, numa condição deplorável da condição humana de trabalho. Mexer na idade, equiparando urbano e rural, é mudar uma regra em que as pessoas não vão mais conseguir acessar um benefício.


IHU On-Line - Como avalia o impacto da possibilidade do fim de condições especiais para aposentadoria de trabalhadores rurais e a paridade na idade de aposentadoria entre homens e mulheres sobre as mulheres do campo?

Evandro José Morello - A mulher do campo seria a mais prejudicada se houver uma proposta de reforma nessa linha. Reitero que é importante ter um sistema hoje que foque a proteção do grupo familiar. A Previdência Social Rural não visa apenas à proteção do indivíduo, mas do conjunto familiar que está no exercício da atividade rural. A importância social desse mecanismo é tremenda. Há uma discussão em torno da dupla jornada da mulher, que é muito mais forte na área rural, em função de todo o cuidado que tem no suporte e na subsistência do grupo familiar e também na condução do trabalho produtivo mesmo do campo, na produção de alimentos.

E a mulher do campo tem um trabalho permanente, é de sol a sol, sete dias por semana. Não há praticamente espaço para lazer, vive-se num trabalho contínuo e permanente. Um sistema de proteção com idades diferenciadas para homens e mulheres se torna importante porque é a condição de sobrevivência do grupo familiar. Discutir essas questões nos leva ao debate da sucessão rural. Hoje, muitos jovens estão deixando o campo e muitos desses jovens são mulheres. Esse é um drama que não sabemos como vai ficar no futuro se as coisas seguirem nesse ritmo que estão indo. Por isso é importante que se tenha um núcleo familiar capaz de se reproduzir no campo e de manter o trabalho contínuo de produção de alimentos.

 

IHU On-Line - Em que medida a reforma previdenciária pode impactar na permanência dos trabalhadores no campo?

Evandro José Morello - Não diria hoje que a aposentadoria com redução de cinco anos é algum estímulo para a pessoa continuar no campo. Não se trata disso. Mas uma igualdade de regras para aposentadoria pode ser um incremento para que mais pessoas procurem uma forma de garantir a proteção social antes de ficarem extenuadas com o trabalho. Para um jovem hoje, por exemplo, seria muito mais estimulante continuar pensando em sair do campo. Uma mulher que fica no campo, sabendo que vai se aposentar só com 65 anos, não conseguirá trabalhar uma vida toda sem ter a certeza, a possibilidade, de chegar aos 65 anos para usufruir da proteção social. Precisamos avaliar muito bem isso. Precisamos olhar os dados que revelam esses números do êxodo rural dos jovens e, até produzir estudos sobre isso, para analisar o impacto que a mudança num sistema de previdência pode causar também nisso. 

Previdência enquanto política de Estado

Não podemos pensar a Previdência Social apenas na relação do que se arrecada e do que se paga, não é meramente uma conta. É preciso pensar a Previdência Social enquanto política de Estado, olhando todo um sistema protetivo e refletindo como isso impacta na vida das pessoas. Interessa para nós, hoje, ter gente no campo produzindo alimentos? É uma discussão que precisamos fazer. Em que condições queremos manter um pacto social para que tenhamos famílias no campo em condições de produzir alimentos saudáveis para abastecer nossa mesa? É um debate que precisamos estar cruzando nessa ideia da reforma da Previdência.

 

IHU On-Line - Desde a perspectiva do campo, que outras reformas são mais essenciais do que a previdenciária?

Evandro José Morello - A reforma tributária seria algo fundamental hoje no país. Essa discussão de reforma da Previdência sempre aparece na história dos sistemas das economias capitalistas no momento em que surge uma crise. E no que se foca? Em cortar gastos sociais. É um debate que se perpetua em outros países e no Brasil também. A discussão hoje que poderia até dar uma resposta e resultados muito mais producentes de interesse de Estado e para a sociedade brasileira é pensar numa reforma tributária, pois temos um sistema de tributação injusto.

Mesmo na questão da seguridade social, e aí estamos discutindo também a previdência, poderia pensar num aprimoramento do próprio processo de arrecadação. Existe hoje muita tecnologia disponível que pode aprimorar essa arrecadação, não deixar para trás dívidas ou sonegações intermináveis que nunca são recebidas. O Estado tem créditos de talvez mais de R$ 400 bilhões em dívidas a receber. Olhar um pouco esse lado ajudaria o Estado a resolver seu problema fiscal e talvez facilitaria um debate mais adequado sobre em que momento é preciso fazer alguns ajustes nas regras de proteção social, inclusive da Previdência.

Não se nega que em determinados momentos é preciso fazer ajustes de regras de um sistema protetivo, mas o problema é que isso sempre vem dentro de propostas de ajustes fiscais e numa condição que não leva em consideração outras variáveis que o Estado poderia estar trabalhando. É claro, nessas condições mexe também com o capital e não apenas com o direito dos trabalhadores. Entretanto, daria um equilíbrio para fazer a discussão e achar os caminhos. É um pouco do que os movimentos sociais estão tentando fazer, levando para o governo um conjunto de propostas no sentido de destravar a economia e aprimorar o sistema fiscal do Estado.


IHU On-Line - Como a Contag vem participando das discussões acerca da reforma da Previdência? Quais sugestões e propostas alternativas estão sendo apresentadas em relação ao projeto proposto pelo Executivo?

Evandro José Morello - A Contag não está discutindo o tema isoladamente, é uma ação com diversos movimentos sociais e sindicais para acharmos uma resposta coletiva para as questões. Debatemos isso no fórum que foi constituído no final do ano passado para tratar desse tema, no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, e estamos promovendo uma série de atividades com as lideranças de base para orientar e levar informação. É um processo que exige articulação, mobilização e muito diálogo.

Do ponto de vista de proposições, destaco um exemplo de por que precisamos aprimorar sistemas: em 1998, o Congresso aprovou uma Proposta de Emenda à Constituição - PEC estabelecendo a não incidência das contribuições para Seguridade Social sobre a exportação de produtos brasileiros. O que temos hoje na questão prática? As commodities, no Brasil, são produtos que ganham muito mais do mercado externo do que interno. O Estado tem aí uma importante fonte de arrecadação. Mas onde há distorção quando falamos em termos de sistema de previdência, seguridade social e políticas em que o Estado direciona de forma equivocada? Um agricultor familiar que tem seu lote com 25 ou 30 hectares, onde planta soja, por exemplo, vende essa produção para uma cooperativa ou para outro intermediário. Quando vende seu produto, já é feito o desconto da contribuição para a Previdência. Em tese, a responsabilidade de fazer o recolhimento para a Previdência é dessa empresa intermediária. Se o produto for para consumo interno, vai recolher aqui, mas se o produto for exportado, essa contribuição, pela Constituição, deixa de ser obrigatória.

Ou seja, as empresas exportadoras não estão obrigadas a recolher nenhum centavo para seguridade social na venda da produção rural exportada. Quem se beneficia de uma política assim? Algumas poucas empresas que atuam no ramo da exportação. O agricultor paga, coloca o produto dele no mercado, mas na hora de recolher a contribuição isso não é feito pelo exportador. Criou-se uma política de incentivo à exportação às custas da Previdência Social. É o que chamamos de apropriação indébita legalizada. 

Falso debate

Vemos todo um debate na sociedade e nos meios de comunicação dizendo que a Previdência Social é deficitária, que arrecadou X e pagou Y de benefício. Nós questionamos isso porque não faz sentido haver uma distorção normativa tão brutal e não considerar questões como essa das exportações em um debate mais transparente com a sociedade. Por isso falamos que é preciso fazer ajustes, mas ajustes que evitem essa apropriação ou que se faça uma política que pese somente na conta da Previdência Social.


IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Evandro José Morello - Esse é um debate que será intenso nos próximos meses, mas volto a afirmar que o mais importante é produzir esse debate para que entendamos o que é um sistema de proteção social amparado dentro de um pacto social, com princípios de solidariedade. Do contrário, cairemos mais uma vez no erro de discutir uma política olhando apenas para o aspecto individual da situação. Assim, nos perdemos enquanto sociedade na construção de políticas públicas que realmente venham fortalecer nossa democracia. A Previdência Social na área rural se constitui como política essencial nessa discussão. ■

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