Edição 480 | 07 Março 2016

A insistente imposição da agenda dos derrotados

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Ricardo Machado

“A questão do déficit público no Brasil são os juros, e não a Previdência”, sustenta Amir Khair, ao analisar o projeto de reforma previdenciária

Declarações, manchetes, especulações. O governo federal ainda não anunciou oficialmente sua posição com relação à reforma previdenciária que deve encaminhar ao Congresso. Mas o burburinho em tempos de recessão econômica é de que o vilão das contas públicas seria a Previdência, quando o que os números mostram é algo bem diferente. “Como vamos começar a pensar na reforma da Previdência se o governo está queimando dinheiro com juros 21 vezes mais do que aquilo que ele quer atingir, que são os benefícios previdenciários?”, provoca Amir Khair, em entrevista por telefone à IHU On-Line. O economista é direto ao fazer a crítica. “A questão do déficit público no Brasil são os juros, e não a Previdência”, ressalta.

“Uma coisa é o governo chegar para a imprensa e dizer que as ‘contas vão estourar’, mas eles não apresentam o valor. Outra coisa é dizer que as contas da Previdência vão estourar em ‘tal valor’”, pondera o economista. Para o entrevistado, o tema da Previdência Social é muito caro à sociedade e, portanto, não pode ser tratado com essa leviandade. “Esse é um assunto que interessa a toda a população, porque vai mexer com os direitos de toda a nação, então se o governo está dizendo que vai estourar, prove. Provar significa mandar uma planilha? Não. Provar significa colocar as premissas e entregar a planilha com todos os cálculos e checar tecnicamente se a planilha está corretamente feita”, propõe. 

Amir Khair é economista e mestre em Finanças Públicas pela Fundação Getulio Vargas – FGV, de São Paulo. Foi secretário municipal de Finanças na gestão da prefeita Luiza Erundina na capital paulista (1989-1992). É consultor nas áreas fiscal, orçamentária e tributária.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como o senhor avalia a reforma previdenciária na atual conjuntura? Por que a idade mínima é injustificável?

Amir Khair – Em primeiro lugar, quando se fala de reforma da Previdência, tem que se considerar uma série de questões anteriores que não estão sendo discutidas. O governo fala que as pessoas estão vivendo mais, que há um número de aposentados crescente e que cresce o tempo de vida deles, o que chamamos de sobrevida, após a aposentadoria. No entanto querem reduzir os benefícios previdenciários, que são as aposentadorias e pensões concedidas. Quando se compara o ano de 2014 com 2015, em valores atuais, houve um crescimento desses benefícios em R$ 6 bilhões, o que corresponde a 1,4% acima da inflação. Ao observar a conta de juros, com a mesma base de referência, 2014-2015, ela cresceu R$ 130 bilhões, ou seja, o aumento é 21 vezes maior que os benefícios previdenciários. Então vem a pergunta: como vamos começar a pensar a reforma da Previdência se o governo está queimando dinheiro com juros 21 vezes mais do que aquilo que ele quer atingir, que são os benefícios previdenciários? 

Os benefícios previdenciários atendem as camadas de classe média e a população de menor renda, que usam a aposentadoria quando estão mais idosos. Já os juros atendem os estratos superiores da economia, que são aqueles que aplicam em juros do governo, ou seja, cerca de 150 mil famílias, ao passo que na Previdência Social são milhões de pessoas. 

Idade mínima

Com relação à idade mínima, é uma grande enganação à sociedade no seguinte sentido: no Brasil, diferente do que ocorre na Europa, no Japão e nos Estados Unidos, existe uma coisa chamada “fator previdenciário”. Não se pode ter idade mínima e fator previdenciário. Ocorre o seguinte: quando uma pessoa tem fator previdenciário, no caso de um homem, a contribuição para obter a aposentadoria é de 35 anos, e quando se solicita essa aposentadoria com pouca idade o valor a receber é da ordem da metade do valor total em caso de cumprimento do fator previdenciário. Quando o sujeito chega aos 50 anos é expulso do mercado de trabalho, não porque quis sair, mas porque foi demitido; ele é substituído por uma pessoa de menos idade com salário menor. Essa pessoa que perde o emprego tem uma dificuldade imensa de retornar ao mercado de trabalho e quando volta, normalmente, não recebe o salário que ganhava.

O problema é que o orçamento dessas pessoas fica muito apertado, com isso deixam de pagar as contribuições da Previdência Social, não alcançam o tempo de contribuição preenchido e não conseguem chegar à idade mínima, perdendo o direito à aposentadoria. Essa é a questão de fundo que perpassa a idade mínima. 

Nos Estados Unidos e na Europa há uma rede de proteção social que não existe aqui. Lá a idade mínima funciona porque as pessoas ou não são expulsas do mercado de trabalho ou, se forem, têm uma retaguarda de proteção social que no Brasil não tem. Então idade mínima de 65 anos para o homem, e querem fazer a mulher se aposentar na mesma idade, será um problema cruel para a população. As pessoas não optam por se aposentar precocemente, elas são forçadas a se aposentar.

 

IHU On-Line – Tecnicamente, como o tema está sendo tratado em Brasília? Que estudos têm fundamentado os pontos trazidos pelo governo?

Amir Khair – Não existe nenhuma projeção oficial do governo que mostre como as contas da Previdência ficariam daqui a 20, 30, 40 ou 50 anos. A Lei de Responsabilidade Fiscal exige que sejam apresentadas as premissas e a memória de cálculo utilizadas. É importante que se explique isso, porque uma coisa é o governo chegar para a imprensa e dizer que as “contas vão estourar”, mas eles não apresentam o valor. Outra coisa é dizer que as “contas da Previdência vão estourar em ‘tal valor’”. Esse é um assunto que interessa a toda a população, porque vai mexer com os direitos de toda a nação, então se o governo está dizendo que vai estourar, prove. Provar significa mandar uma planilha? Não. Provar significa colocar as premissas e entregar a planilha com todos os cálculos e checar tecnicamente se a planilha está corretamente feita. O governo não tem isso, e nunca teve. A responsabilidade pública de quem quer mexer em algo que interessa a milhões de pessoas exige que as razões sejam comprovadas detalhadamente, como a Lei de Responsabilidade Fiscal exige.

 

IHU On-Line – No que se baseia o modelo de reforma proposto pelo governo?

Amir Khair – A Previdência Social é algo que atinge todo o corpo social em um regime de compartilhamento. Trata-se de um modelo no qual quem ganha mais ajuda quem ganha menos. A ideia não é capitalizar e as pessoas receberem aposentadoria de acordo com o que pagaram. É um regime contributivo e solidário. É diferente daquilo que foi colocado no Chile, por exemplo, em que a pessoa se aposentaria pelo valor recolhido.

No Brasil é o modelo solidário, mas há, nesse sistema, falta de solidariedade. Isso ocorre porque as pessoas que ganham acima do teto da contribuição pagam o valor limitado a isso, e não os 11% do salário real. Então uma pessoa que ganha R$ 20 mil está pagando 5% ou 6% do valor do salário com o recolhimento. Já uma pessoa que ganha até R$ 4 mil ou R$ 5 mil está pagando 11%. Então o sistema no Brasil é fortemente regressivo, o que não é bom.

 

IHU On-Line - Como o atual projeto de reforma se relaciona com a concentração de renda?

Amir Khair – O projeto como está se desenhando não mexe, por si próprio, na concentração de renda. Ele tem um impacto indireto sobre a vida das pessoas e os ganhos com a aposentadoria. Como a aposentadoria é um rendimento que interessa às camadas médias e baixas da população, qualquer retirada de direitos é uma piora nos rendimentos dessa pessoa. Consequentemente isso tem impacto nas rendas das pessoas. 


IHU On-Line – O que está por trás da estratégia de o governo focar na Previdência como “solução” para os problemas das contas públicas? Afinal, o que está em jogo é um projeto político-econômico ou civilizacional?

Amir Khair – Esse projeto serve para desviar a atenção do grande problema fiscal que o Brasil tem há décadas, que é a alta taxa de juros cobradas no mercado em relação aos títulos do governo. Uma taxa alta, completamente fora dos padrões internacionais, que faz com que o Brasil tenha gastado R$ 501 bilhões com juros no ano passado e neste ano deve chegar a R$ 650 bilhões. Então, o governo não quer mexer na questão dos juros, porque isso interessa às camadas altas da população e aos bancos, que são os que mais lucram com essas taxas. Este governo, como os anteriores, não olha para a questão dos juros. A questão do déficit público no Brasil são os juros, e não a Previdência. 

 

IHU On-Line – Por que parece impossível discutirmos Previdência Social sem discutirmos conjuntamente a política econômica e, sobretudo, a política de juros?

Amir Khair – O debate quente é o da política de juros. Discutir a Previdência com a população assustada com as novas regras que estão por vir, exigindo idade mínima, leva a uma piora nas contas da Previdência, porque as pessoas se assustam e correm para se aposentar no regime atual, o que faz as despesas previdenciárias darem um salto. Isso é um golpe do governo com relação ao problema fiscal do Brasil, porque, em vez de resolver, agrava em curto e médio prazos. O que temos de tratar são estas questões, porque nunca saberemos como será o longo prazo. No caso da Previdência, temos que ver como a demografia vai variando em relação a todos os estratos, e não apenas aos idosos. O número de pessoas jovens com menos de 20 anos está diminuindo em termos absolutos, o que, consequentemente, reduzirá as despesas com essa camada da população.


IHU On-Line – Como entender a estratégia do governo, ainda com o ministro Guido Mantega, de desonerar a folha salarial de grandes empresas e, ao mesmo tempo, reduzir os direitos previdenciários dos trabalhadores?

Amir Khair – Foi o ministro Mantega  quem fez essa política suicida de desonerar a cota patronal, que era a principal receita da Previdência Social — 20% sobre a folha de pagamento das empresas —, algo bem superior ao que é recolhido dos trabalhadores, cujo máximo é 11%. 

Agora se paga de 1% a 1,5% do faturamento. Com isso a Previdência Social começou a receber menos dinheiro, mas o governo dizia que estaria compensando pelo Tesouro Nacional a Previdência, o que na realidade não ocorreu. Então as receitas da Previdência começaram a cair. 

Tanto é que saiu no jornal O Estado de SP uma matéria dizendo que essas desonerações, por decisões do governo, estariam reduzindo pela metade o déficit de 2015, que serviu de pretexto para as pessoas argumentarem que as contas da Previdência eram explosivas. Se fosse realmente tirado o efeito dessas desonerações que agrediram a Previdência Social, roubando recursos, a Previdência não estaria com os problemas de déficit conforme são apresentados hoje. 

 

IHU On-Line – Que panorama está se desenhando com relação à questão previdenciária a partir dos movimentos do governo?

Amir Khair – A fórmula 85/95 votada no Congresso a cada ano aumenta um pouco, até chegar à fórmula 90/100, isso prevendo um envelhecimento maior da população. Esta fórmula é mais inteligente que a da idade mínima e menos injusta, porque é possível se aposentar antes de atingir essa soma, mesmo tendo a incidência do fator previdenciário, que, embora reduza o salário, não deixa o trabalhador em uma situação de total insegurança.

 

IHU On-Line – Na avaliação do senhor, por que há um certo silêncio da sociedade civil em torno do tema? 

Amir Khair – Na realidade está havendo um movimento por meio das centrais sindicais e do PT, que se opuseram radicalmente a qualquer medida na Previdência Social. Isso tende a crescer à medida que o governo teima em tirar direitos dos trabalhadores.

 

IHU On-Line – Quando o senhor fala em governo, se refere a quem?

Amir Khair – À Dilma Rousseff  e a Nelson Barbosa,  ministro da Fazenda. É uma agenda retrógrada, que joga o país para trás, que agride a questão fiscal, faz com que ela se agrave. É uma agenda de derrotados. ■

 

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- O medo do “fantasma da inflação” paralisa a economia brasileira. Entrevista especial com Amir Khair publicada nas Notícias do Dia, de 02-09-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

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