Edição 480 | 07 Março 2016

Ponte para o passado

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Ricardo Machado

Ao analisar as propostas de reformulação das regras previdenciárias, Guilherme Delgado considera as mudanças um verdadeiro retrocesso

“Ora, ao fazer ‘tábula rasa’ do direito previdenciário e da estrutura real do mercado de trabalho, a proposta ora em cogitação caracteriza uma autêntica ‘ponte para o passado’”, critica Guilherme Delgado em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Ao fazer uma análise minuciosa das implicações econômicas que estão em jogo no debate da reforma previdenciária, o economista considera impossível tratar da questão sem tocar no sistema tributário. “O Ministério da Fazenda tem tratado a questão das finanças previdenciárias como questão de ‘macroeconomia de curto prazo’, agravando a situação previdenciária e obviamente não resolvendo a situação macro”, avalia.

O objetivo derradeiro das reformas, analisa Guilherme Delgado, é fazer o país voltar a gerar superávit primário para agradar as agências internacionais de risco. “Aqui entre nós, hoje, o sistema financeiro tem os seus próprios sacerdotes, áulicos e burocratas; submete o governo e municia os meios de comunicação com operações de despiste e diversão, para impor ao fim de muita manipulação ideológica os seus interesses, como se fossem de ‘salvação da pátria’”, pondera. “Convém lembrar que a reforma da Previdência nos termos propostos é apenas o começo do declínio da ‘Ordem Social Constitucional’ de 1988, empurrando o país para uma verdadeira “Ponte para o Passado””, complementa. 

Guilherme Delgado é doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Trabalhou durante 31 anos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como está se desenhando a reforma da Previdência, que deve ser enviada pelo Executivo ao Congresso ainda neste semestre?

Guilherme Delgado - Até o presente momento o governo federal não explicitou o teor da reforma da Previdência que pretende propor ao Congresso, mas fez ver que o fará em abril e indiretamente sugere, pelas falas do Ministro da Fazenda, que pretende responder às demandas expressas pelo sistema financeiro, na linha do “ajuste fiscal” das despesas obrigatórias do Orçamento. Mas são os áulicos do sistema aqueles que mais didaticamente explicitam o teor da reforma solicitada: as repetidas entrevistas do ex-ministro Delfin Neto,  o programa econômico do PMDB (‘Uma Ponte para o Futuro’) e várias declarações do Ministro Nelson Barbosa.  Desse campo, entremeado por muitas outras ‘análises’ do sistema previdenciário, de parte dos economistas conservadores, autodenominados especialistas em assuntos fiscais, emergem duas propostas principais:

a) a desvinculação do salário mínimo do piso previdenciário, sendo que o vínculo é previsto na Constituição Federal (Art. 201, parágrafo 2º);

b) a eliminação das diferenças de gênero e de trabalho rural urbano para efeito da aposentadoria por idade na Previdência Social (RGPS), diferenças essas previstas no Art. 201, parágrafo 7, item 2, tornando única a idade de aposentadoria aos 65 anos.

Há outras restrições em cogitação, como seja, por exemplo, impedir a acumulação de aposentadoria e pensão nas situações de risco previdenciário cumulativo, mas por ora vou me centrar na análise dessas duas primeiras teses, em resposta às questões que vêm em sequência.

 

IHU On-Line – Como o senhor avalia a reforma que está sendo proposta?

Guilherme Delgado - Os conceitos de piso previdenciário e idade de aposentadoria diferenciada foram incluídos na Constituição de 1988 para atender demandas legítimas do mundo do trabalho. À época do regime militar, o governo do General Médici  chegou a instituir legalmente um benefício mínimo de meio salário mínimo para o Funrural, mas nem este piso era respeitado, porque os critérios administrativos de reajuste dos benefícios previdenciários e do salário mínimo eram diversos e ambos sempre estiveram atrasados em relação à inflação. Em consequência, tanto o salário mínimo quanto o piso dos benefícios caíam profundamente e eram utilizados como mecanismos preferenciais dos inúmeros ‘ajustes fiscais’ praticados pelos Ministérios da Fazenda e do Planejamento dos governos militares — lembrar que o salário mínimo e o piso do Funrural do final de 1991, quando entram em vigor as novas regras constitucionais (Leis de Custeio e benefícios da Previdência) correspondiam respectivamente a 44 e 22 dólares. Tampouco a essa época existiam diferenças de idade entre o trabalho rural e urbano, até porque a Previdência Rural somente se inicia com a Constituição de 1988. Portanto, reconhecendo o regime de economia familiar como relação de trabalho a ser incluída na Previdência Social, reconhece-se também que as jornadas de trabalho aí praticadas por todos os membros da família caracterizam uma situação de risco previdenciário muito mais forte, como também dos assalariados rurais. Isso porque concede uma antecipação de cinco anos à aposentadoria por idade. Mas mesmo sem o caráter de direito constitucionalizado, ainda assim, no regime militar a Previdência Social diferenciou entre homem e mulher no sistema urbano do INSS, regra que advém do reconhecimento no direito trabalhista das diferenças reais de jornada de trabalho entre homens e mulheres no Brasil.

Tábula rasa

Ora, ao fazer ‘tábula rasa’ do direito previdenciário e da estrutura real do mercado de trabalho, a proposta ora em cogitação caracteriza uma autêntica ‘ponte para o passado’. Mira os atuais 70% dos benefícios mensais pagos pelo INSS (21,8 milhões de benefícios de salário mínimo), do total de 32,6 milhões, em relação aos quais pretende captar recursos subtraídos às necessidades básicas de ‘órfãos e viúvas’ para atender interesses explícitos do sistema financeiro (gerar superávit primário). E isto seria obtido de imediato, pela desconstitucionalização do piso, que afetaria também os aposentados e pensionistas da linha da extrema pobreza (Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS ). Observe o leitor a gravidade dessa proposta — sem o piso constitucional, todos os 21,8 milhões de benefícios do sistema previdenciário da seguridade social podem ser imediatamente reduzidos ao novo piso que autoridade de plantão venha instituir.

A outra tese — a nivelação pelo alto da idade de aposentadoria, que é de 65 anos para os homens do setor urbano — também faz ‘tábula rasa’ dos vários determinantes do sistema previdenciário — o direito previdenciário, a estrutura em evolução do mercado de trabalho, a evolução da estrutura demográfica, para se fixar no sistema de financiamento previdenciário, com viés de ajuste fiscal conjuntural. Mas essa questão merece ser melhor analisada em sentido de longo prazo, que é aquele que pertinentemente diz respeito à Previdência Social.

 

IHU On-Line – Quais são as reais necessidades de uma reforma previdenciária? O que precisa ser ajustado?

Guilherme Delgado - Esta pergunta é muito importante. O sistema previdenciário do chamado Regime Geral de Previdência Social, gerido pelo INSS, passou por um ciclo de forte inclusão do mundo do trabalho no seguro social, que vai praticamente de 2000 a 2013, esmaecendo já em 2014 e revertendo fortemente em 2015. Entre 2000 e 2010, período coberto pelos dois últimos Censos Demográficos, observa-se incremento significativo dos segurados (inclui ‘contribuintes’ mais segurados rurais não apurados no primeiro conceito do IBGE) da Previdência Pública, que vai de 38,7 milhões para 58,3 milhões de trabalhadores. Considerando mais três anos de forte crescimento do emprego formal (2011-2013), os sistemas de Previdência Pública terão encerrado o ciclo de inclusão em 2014 com seguramente 2/3 de uma População Economicamente Ativa de 103 milhões de trabalhadores incluídos no seguro social, comparativamente a uma situação de baixa inclusão, de cerca de 50% da PEA no ano 2000. 

Desafios

Apenas este fato previdenciário seria suficiente para se pensar a longo prazo numa reforma do sistema, começando no presente, tendo em vista assegurar que toda essa população nova afluente ao sistema pudesse gozar dos direitos pelos benefícios que a Previdência garante às situações definidas como de riscos incapacitantes ao trabalho (idade avançada, invalidez, viuvez, maternidade, reclusão, acidente e doença, acrescido no caso brasileiro do ‘tempo de contribuição’, ora em processo de virtual extinção). Ora, o Regime Geral de Previdência Social - RGPS, que é a parte principal da Previdência Pública, contando sozinho com no mínimo 60 milhões de segurados ativos, apresenta um ‘bom’ problema pela frente — uma demanda crescente por benefícios, incrementada por dois fatores: 

1- o ‘boom’ da inclusão previdenciária de segurados ativos do período 2000-2013;

2- o aumento de longevidade da população trabalhadora nessas duas últimas décadas, que deve prosseguir nas próximas, ainda que a taxas decrescentes.

Observe que encerrado ou esmaecido o ciclo de inclusão de segurados novos, o sistema perde alguma receita de contribuição desses novos segurados e em contrapartida se verá com demandas crescentes por benefícios em maturação da massa de trabalhadores incluída no período de ‘boom’. Ademais, toda a população ativa do sistema (segurados), como a inativa (beneficiários), permanecem mais tempo no desfrute dos benefícios previdenciários. E para atender toda população trabalhadora já incluída no sistema ou a ser incluída, considerando-se apenas os fatores de incremento mencionados, seria preciso provisionar a Previdência com um Fundo de Reserva, previsto no Art. 250 da Constituição Federal. 

Finalmente, há ainda 1/3 da População Economicamente Ativa - PEA, algo ao redor de 34 milhões de trabalhadores, fora do sistema previdenciário do RGPS. E para nele ingressar teria que contar com as condições especiais de subvenção de alíquota contributiva, a exemplo dos Segurados Especiais rurais, das Donas de Casa, do Microempreendedor Individual e da Microempresa.

Universalização

Em síntese, a reforma da Previdência que viabilize a universalização do direito social na Previdência Social, ou pelo menos a sanção dos direitos adquiridos dos segurados já incluídos no sistema, requer uma minirreforma tributária, de caráter progressivo, para construir o Fundo de Reserva do RGPS, conforme previsto no Art. 250 da Constituição Federal. Nada a ver com as teses em circulação no campo conservador, fortemente repercutidas pela mídia.


IHU On-Line – O governo afirma que há um ‘déficit’ nas contas previdenciárias. Em sentido contrário, diversos pesquisadores afirmam que há um ‘superávit’ no fundo da seguridade social (Orçamento da Seguridade Social), desde que os Arts. 194 e 195 da Constituição sejam cumpridos. Como o senhor avalia a situação?

Guilherme Delgado - Vou tentar simplificar a resposta, até mesmo porque acho o Orçamento da Seguridade Social um avanço significativo, mas ainda insuficiente, não apenas pelas desvinculações a que foi submetido, mas também porque segue a regra tributária brasileira de dependência de bases tributárias que crescem e decrescem com o ciclo econômico (massa salarial e faturamento das empresas, por exemplo). A despesa com benefícios previdenciária não é pró-cíclica. Ela é estritamente crescente ou monotonicamente ascendente numa série de mais de 30 anos, e tende a se acelerar no longo prazo. Daí que, em situações de reversão cíclica, como é o caso do ano de 2015 e também em 2016, tem-se um problema peculiar no sistema previdenciário — a receita de contribuições (vinculada à massa salarial dos contribuintes) cai em termos reais 4,8%, enquanto a despesa com o pagamento de benefícios apresenta incremento real de 1,7%, puxada fundamentalmente pelo incremento físico do número de benefícios. 

Essa diferença, que deverá em 2015 ascender a 1,5% do PIB, demanda a provisão de tributos do Orçamento da Seguridade Social, cujas bases fiscais também estão em queda. Somente o que não está em queda nesta fase do ciclo econômico são as grandes fortunas e os ganhos financeiros vinculados à Dívida Pública. Por isso é que defendo o Fundo de Reserva como via contracíclica para suprir as necessidades de financiamento do sistema previdenciário, financiado evidentemente por tributos progressivos. E como Fundo, ele deve ser aplicado no investimento real. Fico por aqui para não me alongar no detalhe. 

Veja que não estou usando as noções de ‘déficit’ ou ‘superávit’, muito menos o jargão ultraconservador de ‘rombo’, todos cheios de armadilhas e insuficiências quando tratam da Previdência de caráter tripartite — trabalhadores, empregadores e Estado. Mas é preciso mencionar as necessidades de financiamento de longo prazo do sistema, e mesmo as de curto prazo, como as da conjuntura atual, que, pela reversão cíclica, requer provisão de um tributo específico — no caso a CPMF. 

 

IHU On-Line – Como entende a estratégia do governo de desonerar a folha salarial de grandes empresas e reduzir direitos previdenciários do trabalhador?

Guilherme Delgado - As desonerações da contribuição patronal postas em prática no primeiro governo Dilma, aceleradas em 2014 e revertidas no final de 2015 compõem aquilo que dizíamos na ocasião — ‘uma quadratura do círculo’. Pioraram o quadro das receitas previdenciárias, cadentes antes mesmo da reversão do ciclo econômico no final de 2014. E tanto na ocasião quanto agora o Ministério da Fazenda tem tratado a questão das finanças previdenciárias como questão de ‘macroeconomia de curto prazo’, agravando a situação previdenciária e obviamente não resolvendo a situação macro.

 

IHU On-Line – De que maneira a reforma previdenciária está diretamente ligada a uma reforma tributária?

Guilherme Delgado - Desde a Constituição de 1988, a Previdência Social integra o sistema de Seguridade Social, tanto porque incorpora os princípios universalizantes desse sistema, quanto porque depende dos meios orçamentários que suprem a diferença das receitas e despesas (receitas de contribuições–despesas com benefícios). Observe-se que o Orçamento da Seguridade supre o sistema de Saúde, da Assistência Social, do Seguro Desemprego e financia também essa diferença de recursos mencionada na Previdência Social, para viabilizar a inclusão previdenciária de várias categorias sociais sem suficiente capacidade contributiva. 

O peso desse aporte é relativamente pequeno, se considerado o tamanho do RGPS (cerca de 60 milhões de segurados atuais e o volume dos benefícios que paga mensalmente — ao redor de 28 milhões). Nos últimos sete anos (2008-2014), essa referida diferença, que a mídia costuma chamar de ‘déficit’ ou ‘rombo’, variou de um máximo de 1,7% do PIB em 2008 para um mínimo de 0,85% em 2011, situando-se numa média próxima a 1,2%, com a despesa situada na faixa dos 7 pontos percentuais do PIB e a receita de contribuições na faixa de 6 pontos. Mas para o futuro essa proporção deve aumentar, pelas razões que apresentamos nas questões precedentes; e imediatamente na conjuntura adversa do presente há necessidade de provisão de recursos para pagamento dos benefícios correntes, para o que se faz necessário o aporte dos recursos ora propostos pela CPMF. 

Sem sentido

O que não faz sentido, a meu juízo, é cortar direitos básicos e renunciar a uma bem-sucedida operação de geração de igualdade social que o sistema do RGPS vem realizando no Brasil. Não se produzem melhorias na distribuição da renda social sem mexer no sistema tributário, para torná-lo mais progressivo sobre rendas e patrimônios elevados, vinculando-os às várias destinações da seguridade social, hoje fortemente atrofiadas. Mas o tema da reforma tributária geral é mais amplo e não cabe aqui tratá-lo, mas sim dos princípios tributários que precisariam orientar uma futura reforma, condizente com a ideia de justiça distributiva que está clara nos princípios normativos da seguridade social, mas ainda não no seu Orçamento.

 

IHU On-Line – Quais são os principais problemas da proposta da idade mínima?

Guilherme Delgado - Essa questão está meio embaralhada no debate público. Uma coisa é a idade mínima para a ‘Aposentadoria por Tempo de Contribuição’, ainda regida pela capciosa Lei do Fator Previdenciário, mas atualmente (final de 2015) submetida a uma regra alternativa — regra 85-95 (soma de idade e tempo de contribuição), e nessa mesma norma — uma regra de transição até 2026, quando valeria integralmente as somas 95-100. Isto é iniciativa do ano passado do governo Dilma, já aprovada no Congresso para resolver a confusão parlamentar, comandada pelo Presidente da Câmara. Diz respeito exclusivamente à ‘Aposentadoria por Tempo de Contribuição’, mantém os diferenciais de gênero e absolutamente não afeta a Previdência Rural, que não tem “Aposentadoria por Tempo de Contribuição”, nem é afetada pela Lei do Fator Previdenciário.

Outra coisa é a idade única da “Aposentadoria por Idade’, que como destacamos na questão inicial, faz ‘tábula rasa’ das diferenças de jornadas de trabalho de homem e mulher e de atividades nos setores rural e urbano. Essas diferenças têm fundamentos previdenciários. Numa discussão séria de Previdência Social, essas diferenças atuais (65 e 60 no setor urbano e 55 e 60 no setor rural) poderiam ser confrontadas com a evolução das tendências demográficas a médio prazo e pactuados outros diferenciais de idade. Mas nunca se oferecer de bandeja sua eliminação para uma idade única (65 anos), com propósitos exclusivos de ‘ajuste fiscal’.


IHU On-Line – De que maneira as mulheres, sobretudo as camponesas, devem ser impactadas pela reforma previdenciária caso se confirme a idade mínima unificada? Que conflitos constitucionais estão em jogo?

Guilherme Delgado - Vou responder no condicional porque não acredito que essa reforma passe no Congresso, no formato ora cogitado. Mas seria toda a Previdência Rural duplamente prejudicada — pela eliminação do piso vinculado ao salário mínimo e pela imposição da idade única. Mas as mulheres seriam mais prejudicadas. Em razão da maior longevidade que o homem, da obtenção mais cedo do benefício por idade, da acumulação de pensões, como também do acesso ao benefício-maternidade, as mulheres acessam cerca de 2/3 dos benefícios da Previdência Rural. O conflito constitucional em jogo é claramente o artigo 201, parágrafo 7, item 2 da Constituição Federal, como já citado na primeira questão, que para ser removido ou modificado requer reforma constitucional. O ‘quórum’ qualificado de reforma à Constituição é de 3/5 na Câmara e no Senado, a tramitação é lenta e especificamente a regra de idade única somente teria efeito para as novas aposentadorias. Não haveria, portanto, efeitos fiscais de curto prazo, obsessão dos promotores do ‘ajuste fiscal’.


IHU On-Line – Como foi o encontro do Programa Justiça Econômica, realizado no final de fevereiro, em Brasília? Qual tem sido a opinião da sociedade civil em relação à reforma previdenciária? Como está o diálogo com o governo? Que sugestões foram apresentadas?

Guilherme Delgado - O Programa Justiça Econômica é uma iniciativa leiga, de origem na Igreja Católica, com tema de defesa dos direitos sociais. Tratamos da reforma da Previdência em cogitação no nosso encontro de dezembro em Brasília; deveremos fazê-lo novamente agora no final de março e temos expectativa de que as próprias Igrejas cristãs neste ano de Campanha da Fraternidade ecumênica possam tratar deste tema, por sinal muito bíblico — “a proteção dos órfãos e das viúvas” contra tantas tentações idolátricas. 

Com relação às negociações do governo e sociedade civil, há um ‘Fórum’  específico sobre o tema funcionando em Brasília, com divergências radicais sobre essa reforma em cogitação. Diria que o consenso é impraticável nos termos atuais. E se o governo tentar impor solução, perderá ainda mais espaço social e político, enfraquecendo-se de maneira vital. Se houver um mínimo de bom senso, esse projeto será revisto. O outro projeto de reforma de longo prazo, com minirreforma tributária, não está na agenda do governo nem do sistema financeiro. Aparentemente a única coisa que vai ser decidida de imediato pelo Congresso é o destino da CPMF, com destinação, senão exclusiva, preponderante de destinação para o RGPS. Isto atenderia as necessidades fiscais ‘provisórias’ da Previdência Social.

 

IHU On-Line – Que relação há entre a proposta de reforma previdenciária e a questão dos juros da dívida pública?

Guilherme Delgado - A relação explicitamente assumida pelo Ministro da Fazenda Nelson Barbosa e pelos áulicos do sistema financeiro é direta: trata-se de fazer a reforma para gerar ‘superávit primário’ no Orçamento; ou ainda no dizer do Ministro Nelson Barbosa — sinalizar desde logo às agências internacionais classificadora de risco que a medida é feita nessa direção. E como a despesa do RGPS, de pouco mais de 7 pontos percentuais do PIB, não pode ser cortada pelo ajuste fiscal convencional, a ideia simplista é de mudar a Constituição nos pontos mais frágeis, segundo essa visão, idosos e rurais, para gerar o recurso que por definição, o superávit primário, destina-se ao pagamento de juros e outras despesas financeiras. Tecnicamente há muitas outras maneiras de lidar com esse tema, mas a escolhida foi essa. Ela é uma espécie de porteira a ser aberta na “Ordem Social” da Constituição de 1988, a partir da qual viriam outras — desvinculação dos recursos da saúde, desvinculação dos recursos da educação, para citar, juntamente com a Previdência, as três principais que estão explicitamente assumidas no documento econômico do PMDB “Uma Ponte para o Futuro” (pags. 8 e 9). 

 

IHU On-Line – Qual o interesse do sistema financeiro na precarização da Previdência Social pública no Brasil?

Guilherme Delgado - Numa sociedade governada pelos detentores da riqueza financeira, prevalece a ‘ética’ utilitária do egoísmo comportamental. Traduzindo em miúdos, os detentores dos títulos da dívida pública e de outras formas de riqueza submetem a sociedade a uma insanável voracidade pela captura do excedente econômico, mesmo que à custa das maiores privações humanas dos mais débeis na vida social. Isto já não é mais domínio da economia, mas da teologia. Foi assim no tempo de Jesus de Nazaré em relação aos pobres de Israel, espoliados sob a proteção do Templo, da Tetrarquia interna e do Império Romano, tendo ainda uma espúria teologia da retribuição para justificá-lo. Aqui entre nós, hoje, o sistema financeiro tem os seus próprios sacerdotes, áulicos e burocratas; submete o governo e municia os meios de comunicação com operações de despiste e diversão, para impor ao fim de muita manipulação ideológica os seus interesses, como se fossem de "salvação da pátria’. A última barreira que se antepõe a essa estratégia é a ordem constitucional, da qual os sistemas financeiro e midiático independentes tratam de removê-la.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Guilherme Delgado - Convém lembrar que a reforma da Previdência nos termos propostos é apenas o começo do declínio da “Ordem Social Constitucional” de 1988, empurrando o país para uma verdadeira “Ponte para o Passado”. ■ 

 

Leia mais...

- Previsibilidade: a meta política e econômica de 2016. Entrevista especial com Guilherme Delgado publicada nas Notícias do Dia, de 11-01-2016, no sítio do IHU. 

- A disputa que impede a emergência de uma terceira via. Entrevista especial com Guilherme Delgado publicada nas Notícias do Dia, de 01-09-2015, no sítio do IHU. 

- Ajuste fiscal é teologia idolátrica, não é economia. Entrevista especial com Guilherme Delgado publicada nas Notícias do Dia, de 02-06-2015, no sítio do IHU. 

- Brasil precisa romper com a dependência externa de um modelo agroexportador. Entrevista especial com Guilherme Delgado publicada nas Notícias do Dia, de 18-02-2014, no sítio do IHU.

- "Crescimento mais elevado não é viável sem uma inflação mais alta". Entrevista especial com Guilherme Delgado publicada nas Notícias do Dia, de 02-04-2013, no sítio do IHU.

- Guerra cambial: uma disputa entre gigantes. Entrevista com Guilherme Delgado publicada na revista IHU On-Line, Edição 348, de 25-10-2010.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição