Edição 477 | 16 Novembro 2015

Do apagamento à visibilidade – Os negros, a imprensa e a luta política

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Leslie Chaves e Ricardo Machado

José Antônio dos Santos analisa a história dos negros em perspectiva com os meios de comunicação criados por eles próprios

Do caminho entre a libertação formal na escravatura, com a abolição de 1888, ao (re)começo da construção social e política, o papel dos negros na construção de meios de comunicação foi fundamental para a consolidação da própria cultura. Na contramão da ladainha que defendia que os negros eram incapazes de acompanhar o conhecimento produzido nas universidades, eles criaram seus próprios meios. “Os meios de comunicação têm papéis fundamentais em todas essas questões, por isso a população negra sempre tomou a iniciativa de participar das discussões e criar seus próprios canais de representação política e cultural, para fazer um contradiscurso que afirme a sua inteligência e civilidade”, pondera José Antônio dos Santos, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Os modestos, mas significativos, avanços ocorridos a partir de 1888 e 1891, com a Constituição Republicana, abriram maiores possibilidades de alfabetização, inserção social e organização política, ainda que os negros tenham continuado marginalizados. Esta minúscula brecha, porém, permitiu que os negros que trabalhavam como gráficos e revisores nos grandes jornais construíssem seus próprios informativos. “No pós-abolição, a publicação de jornais constituiu-se como um espaço público de reivindicação de direitos à moradia, educação, acesso ao mercado de trabalho e para a denúncia de arbitrariedades policiais cometidas contra a população negra. A invasão de bailes e casas de batuque, a perseguição nas ruas, a proibição de procissões religiosas e carnavalescas eram temas correntes na imprensa negra”, recorda o professor. “A história da imprensa negra no Brasil e, particularmente, no Rio Grande do Sul tem nos revelado o completo desconhecimento dessa rica fonte de pesquisa que foi deixada ao largo pelos historiadores”, complementa.

José Antônio dos Santos é graduado em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, realizou mestrado em História Social na Universidade Federal Fluminense – UFF e doutorado em História das Sociedades Ibéricas e Americanas na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS. Atualmente é professor e pesquisador da história e da cultura negra no Brasil Republicano e da diáspora africana nas Américas. É editor da Revista da Extensão da UFRGS e membro do Conselho de Acompanhamento e Avaliação do Programa de Educação Tutorial dessa mesma Universidade.

 

Confira a entrevista. 

 

IHU On-Line – Qual a importância da representação do negro, tanto a partir das demandas de interesse dessa população quanto a partir da presença e participação, nos meios de comunicação?

José Antônio dos Santos - A representação equitativa da população negra nos meios de comunicação no Brasil, conforme a sua importância histórico-social e expressão populacional, assim como os aspectos positivos dessa representação, ainda são muito inferiores aos diversos papéis que os negros e negras desempenharam na nossa história. Os meios de comunicação são absolutamente hegemonizados pela representação eurocêntrica — o homem branco heterossexual se mantém no topo da cadeia reprodutiva de estereótipos e imaginários sociais. Aqueles que foram a base evolutiva econômica e cultural dos processos de ocupação territorial, urbanização, industrialização e desenvolvimento, são ainda sub-representados nos meios de comunicação. Este quadro se mantém, em alguns casos, por atitudes deliberadas de chefes de redações, jornalistas e outros profissionais em manter o status quo dos privilégios adquiridos ao longo do tempo, em muitas outras situações, por completo desconhecimento e desinteresse em buscar informações atualizadas da participação dos negros nesses processos. Recentemente, quando, pela primeira vez desde a abolição, houve uma discussão nacional sobre as desigualdades raciais no acesso à educação superior (o debate sobre as políticas de ações afirmativas ou cotas), tivemos a oportunidade de acompanhar o discurso de uma parte significativa da opinião pública que foi embasado em argumentos do final do século XIX. Ou seja, se aproximavam muito daqueles que defendiam a escravidão, pautada no argumento da incapacidade dos negros em administrar suas próprias vidas, repetindo a ladainha das dificuldades que teriam para acompanhar o conhecimento produzido nas universidades. Os meios de comunicação têm papéis fundamentais em todas essas questões, por isso a população negra sempre tomou a iniciativa de participar das discussões e criar seus próprios canais de representação política e cultural, para fazer um contradiscurso que afirme a sua inteligência e civilidade.

 

IHU On-Line – Como se dá o surgimento da imprensa negra no contexto de violência e exclusão do sistema escravocrata, onde a maioria da população negra era analfabeta e empobrecida? Que temas abordava e onde se desenvolveu com mais intensidade?

José Antônio dos Santos - Inicialmente, é necessário afirmar que, conforme as pesquisas vêm demonstrando, havia, no final do século XIX, um contingente expressivo de abolicionistas radicais ou reformistas, intelectuais e políticos negros envolvidos na defesa das principais causas da população negra, aqui entendida no amplo espectro que abarcava as(os) africanas(os) escravizadas(os), ex-escravizados(as) e seus descendentes. A abolição da escravidão, em 1888, e a Constituição republicana, de 1891, abriram maiores possibilidades de alfabetização, inserção social, organização política e a criação de meios de comunicação voltados aos interesses e sociabilidades dessa população. Os periódicos escritos e impressos por negros, inicialmente, foram produzidos de forma artesanal, regionalizada e com baixa circulação. A iniciativa se deu a partir da experiência que muitos deles tiveram como gráficos e revisores nos grandes jornais do período. Uma vez que eles não se viam representados nos jornais diários, criaram os seus com objetivos diversos, mas, principalmente, para divulgar seus interesses e notícias específicas de suas comunidades: festas de aniversário, nascimento, casamentos, bailes, jogos de futebol, enfermidades e óbitos. Também eram recorrentes na imprensa negra as denúncias contra o racismo e o preconceito reinantes no país: escolas que não recebiam alunos negros, a proibição do ingresso em cafés, confeitarias, teatros, hotéis e cinemas, dentre outras tantas situações cotidianas. A manutenção e a distribuição dos jornais se davam pelo pagamento de anúncios, mensalidades, semestralidades e pela distribuição e leitura em locais públicos, o que tornava o acesso bastante ampliado, inclusive àqueles(as) que não sabiam ler. Em geral, os jornalistas e redatores negros eram reconhecidos em suas comunidades onde assumiam papéis de lideranças, ocupando cargos em sociedades esportivas, culturais e beneficentes. As mulheres negras também tiveram participação fundamental na criação e manutenção dos jornais, algumas como redatoras de colunas ou simples leitoras, a maioria como participante ou organizadora de festas, bailes e quermesses para arrecadar recursos para os jornais. 

 

IHU On-Line - Qual é a importância de os afro-brasileiros assumirem o protagonismo no debate das demandas de seus interesses a partir da construção de espaços como a imprensa negra? 

José Antônio dos Santos - No pós-abolição, a publicação de jornais constituiu-se como um espaço público de reivindicação de direitos à moradia, educação, acesso ao mercado de trabalho, e para a denúncia de arbitrariedades policiais cometidas contra a população negra. A invasão de bailes e casas de batuque, a perseguição nas ruas, a proibição de procissões religiosas e carnavalescas eram temas correntes na imprensa negra. Os negros passaram a assumir lugares de maior protagonismo nos diversos espaços da sociedade quando do início da publicação dos seus próprios jornais. O que foi uma forma de enfrentamento ao processo de marginalização e guetização pelo qual passou a maioria dessa população desde o final da escravidão, que levou à criação de meios de comunicação e representação daqueles que se viram jogados à própria sorte. Diversas estratégias de integração e ascensão social foram criadas e divulgadas nos jornais, desde a busca do acesso à educação por meio da criação de escolas, o apadrinhamento, a partidarização, a confissão religiosa, o envolvimento nos movimentos sociais, como o movimento operário, por exemplo. Muitos dos intelectuais negros buscaram essas alternativas e tornaram públicas aos demais, demonstrando a necessidade de serem reconhecidos como construtores do país, e do respeito público às suas idiossincrasias culturais e religiosas. 

 

IHU On-Line – Em um de seus trabalhos o senhor afirma que a imprensa negra, ao longo de sua trajetória, ressignificou as categorias “raça” e “negro” e serviu de base até para a manutenção dos jornais. Como se dá esse processo? Que novas concepções são construídas?

José Antônio dos Santos - As categorias que identificavam os povos em termos de cor e raça, até, principalmente, o início do século XX, serviram para hierarquizar a humanidade em civilizados-incivilizados, desenvolvidos-primitivos, e para transformar alguns em senhores e outros em escravizados.

Como sabemos, a modernidade nasceu intimamente associada à intolerância e à negação das diversidades culturais e étnicas, servindo como justificativas para toda sorte de exploração e genocídio. Nesse sentido, os termos “raça” e “negro” foram usados por cientistas, intelectuais e políticos para classificar grupos humanos diversos, como os africanos, de forma absolutamente homogênea, preconceituosa e estereotipada. Quando os intelectuais negros começaram a intervir nesse processo, p. ex., W.E.B. Du Bois  nos EUA, fizeram críticas contundentes ao pensamento social de matriz europeia e buscaram a unidade de todos os afrodescendentes na diáspora. No Brasil, também a imprensa negra buscou tornar positivas algumas características que identificavam os negros como oriundos do processo escravagista. A cor da pele não deu ao negro a possibilidade de fugir de sua origem africana; mesmo quando obteve educação e dinheiro, ou “subiu na vida”, teve de enfrentar o estigma de ser descendente de escravizados. Sem o trabalho educativo da importância dos escravizados na história do país, com o desconhecimento das culturas e civilizações africanas, ninguém se identificaria com os termos — “raça” e “negro” — que remetem a aspectos genéticos de “inferioridade” e a um “lugar primitivo” (África). Quanto mais conhecemos a história do continente africano, mais aprendemos que isso tudo foi invenção dos colonizadores, cientistas e intelectuais europeus. Talvez, em virtude disso, tenhamos atualmente a maioria da população brasileira identificada como negra e o termo raça sendo usado de forma positiva como sinônimo de afrodescendente. Os jovens negros e negras usam com orgulho, cada vez mais, turbantes, roupas coloridas e cabelos soltos, são afirmações de uma negritude que singrou os mares, cruzou o tempo, e se mantém viva.

 

IHU On-Line – Durante a trajetória histórica da imprensa negra brasileira houve uma articulação com a imprensa negra ou outras organizações de outros países? De que maneira? 

José Antônio dos Santos - Os jornais da imprensa negra do Rio Grande do Sul eram trocados com os “coirmãos”, expressão que usavam, de todo o Brasil. As fronteiras eram superadas no lombo das mulas, navios, ferrovias e estradas, nas malas dos viajantes, intelectuais e trabalhadores os jornais viajavam, e eram espalhados por todos os lugares. Há registros, nesses periódicos, de artigos preocupados com o genocídio e a exploração colonial no continente africano e de casos de linchamentos de negros nos Estados Unidos. O principal e ainda atuante jornal da imprensa negra norte-americana, o Chicago Defender, muitas vezes teve como referência e parceiro de diálogo a nossa imprensa, nomeadamente, os jornais de São Paulo. No nosso caso, o racismo deles parecia mais cruel, afinal, nos Estados Unidos os negros eram mortos e segregados, enquanto vivíamos na “democracia racial”. Para a imprensa negra norte-americana, o Brasil era visto como o paraíso da harmonia e igualdade racial, imagem que se esfacelava tão logo eles chegavam ao nosso país. Enfim, os jornais, com suas imagens e palavras, sempre carregam consigo a representação parcial de uma realidade.

 

IHU On-Line – O que a trajetória da imprensa negra pode revelar sobre o contexto sócio-histórico do negro no Brasil?

José Antônio dos Santos - A história da imprensa negra no Brasil e, particularmente, no Rio Grande do Sul tem nos revelado o completo desconhecimento dessa rica fonte de pesquisa que foi deixada ao largo pelos historiadores. Ainda hoje, os jornais escritos por negros no Estado são desconhecidos dos jornalistas, os cursos de graduação em jornalismo, assim como os principais livros e manuais sobre a história da imprensa desconhecem essas publicações. Os cursos de história do Brasil, em boa parte, ainda não enfocam a participação dos intelectuais negros na construção do pensamento social e cultural brasileiro, estamos presos ao imaginário do negro açoitado no tronco ou escondido na mata. Há um universo a ser descortinado, no mundo rural e nas cidades, temos pouco espaço imaginativo para pensar as outras formas de integração dos negros, homens e mulheres, à sociedade brasileira. Ainda carecemos de pesquisas sobre os intelectuais, operários, lideranças, médicos, jornalistas, engenheiros e políticos negros que construíram o país e foram deixados de lado na nossa história. A imprensa negra, conjugada com outras fontes de pesquisa, pode nos ajudar a descobrir esse passado, contribuir para a construção de identidades e reforçar a autoestima dos jovens negros. 

 

IHU On-Line – A imprensa em geral e a imprensa negra contribuíram para os processos de legitimação do 20 de Novembro como data substitutiva ao 13 de Maio? De que maneira?

José Antônio dos Santos - A imprensa negra, nos primórdios, quando publicava fotos e biografias das principais lideranças negras contra a escravidão — Luiz Gama,  José do Patrocínio,  Aurélio Veríssimo de Bittencourt,  André Rebouças  — demonstrava quanto havia sido importante a mobilização dos escravizados e seus descendentes naquele processo que levou à abolição. Embora houvesse alguns jornalistas que louvassem a Princesa Isabel,  afinal, foi ela quem assinou o documento que extinguiu o cativeiro e, como se sabia na época, tinha manifestas intenções abolicionistas, muitos articulistas daquela imprensa também recuperavam o protagonismo negro e denunciavam a situação em que se encontrava a maioria dos negros. Portanto, muitos intelectuais daquele período tinham consciência do papel fundamental que a população negra havia desempenhado para a conquista da abolição. A liberdade de todos os escravizados foi um passo fundamental para a construção da nação brasileira, mas foi apenas o primeiro, eram necessários muitos outros. Nesse sentido, o Dia Nacional da Consciência Negra, ou 20 de Novembro, foi outra conquista necessária, que resultou de demandas contemporâneas do Movimento Negro. Havia a necessidade de romper com o período anterior e registrar uma data para chamar a atenção da sociedade para as necessidades e capacidades da população que se originou daquele processo, que, embora, relegada à margem pelo Estado nacional é o principal contingente populacional do país e exige atenção. Não podemos esquecer que, antes de Zumbi dos Palmares,  não tínhamos nenhum herói negro no panteão nacional e nenhuma data que pudéssemos chamar de nossa. A imprensa, de um modo geral, é fundamental para a legitimação de reivindicações e garantia de conquistas. Atualmente, tudo passa pela aprovação ou reprovação da mídia, termo que abarca todas as formas de comunicação de massa. Então, desde que o Grupo Palmares, em Porto Alegre, em 1971, propôs o dia 20 de Novembro no meio negro da cidade, também teve artigo publicado por Oliveira Silveira,  no principal jornal do estado, no ano seguinte. Logo eles buscaram a criação dos seus periódicos, como foi o caso do jornal Tição, criado no final daquela década, que hoje é tido como primordial para o Movimento Negro brasileiro contemporâneo. 

 

IHU On-Line - De que forma o senhor avalia a imprensa negra hoje, sobretudo após o advento da internet e mais recentemente das redes sociais? Que papel ela desempenha no contexto contemporâneo da internet que oferece mais potencialidades de comunicação tanto para a militância quanto para o racismo?

José Antônio dos Santos - O termo imprensa negra, ao que tudo indica, foi criado pelos jornalistas negros envolvidos com a fundação e manutenção dos primeiros periódicos que tinham como alvo essa população. Ainda usamos esse termo para definir e agrupar todas as mídias que se dirigem para esse agrupamento populacional ou estão envolvidas em temáticas, questões e reivindicações que lhe dizem respeito. Com a internet e as redes sociais, mas também com o ingresso de maior número de negros e negras às universidades, e o crescimento da classe média negra, houve um processo crescente de acesso às novas formas de comunicação, o que se transformou em mecanismos de divulgação de atividades, meios de reivindicação e mobilização social e denúncias públicas de casos de racismos e preconceitos no Brasil e no mundo. Sem dúvida, vivemos um tempo exuberante em termos de acesso à informação e conhecimentos, e a população negra em geral, mas, especialmente, os intelectuais e militantes negros, têm feito farto e apropriado uso dessas novas mídias na defesa dos seus interesses. As desigualdades, o racismo e o preconceito se mantêm, mesmo com todo o aporte tecnológico, conhecimento apenas não muda as pessoas que criam e comandam as máquinas. O que pode fazer a diferença no futuro é a punição para casos de racismo na rede (internet), por exemplo, e a educação para o respeito daqueles(as) que são diferentes, mas também o uso que fazemos da tecnologia para divulgar outras histórias do negro no Brasil, na África e na diáspora.

 

José Antônio dos Santos

Sou um negro intelectual envolvido nas principais questões da humanidade.

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