Edição 477 | 16 Novembro 2015

Oliveira Silveira: a face poética da luta

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Leslie Chaves

O poeta e ativista que foi um dos fundadores do Grupo Palmares é considerado um dos griôs da cultura e história negra

Griô, aquele sábio que toma para si o papel de preservar e compartilhar com as novas gerações o legado histórico e cultural de uma comunidade, é como alguns pesquisadores identificam Oliveira Silveira. Certamente também é uma das principais imagens que vem na mente dos que tomaram contato com a sua produção literária e, principalmente, dos que o conheceram pessoalmente. 

A aparência doce e o temperamento tranquilo escamoteavam o espírito crítico e combativo que sempre o moveu nas lutas contra as desigualdades raciais e pela valorização da cultura afro-brasileira. Infelizmente, Oliveira Silveira partiu em 2009, em decorrência de um câncer, mas se mantém presente na inestimável contribuição dos seus escritos e na sua atuação junto ao Grupo Palmares, do qual foi um dos fundadores e continuou levando a diante seus objetivos, mesmo depois do término da mobilização em 1978. O Grupo Palmares foi o propositor do 20 de Novembro como data evocativa do Dia da Consciência Negra no Brasil. 

Nascido em 1941 na área rural de Rosário do Sul, cidade do interior do Rio Grande do Sul, Oliveira Silveira era filho de uma mãe negra e de um pai branco. Poeta com uma relevante produção literária e ativista dos movimentos sociais negros, Silveira graduou-se em Letras – Português e Francês pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, lecionando português e literatura no ensino médio. Também foi conselheiro da Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial – Seppir.

Entre 2003 e 2006, o jornalista, professor na Universidade Luterana do Brasil - ULBRA e doutor em Ciências da Comunicação pela Unisinos, Deivison Campos realizava encontros sistemáticos com Oliveira Silveira. As conversas faziam parte de sua pesquisa de campo para a escritura da dissertação de mestrado em História Social, que cursava na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Seu objeto de estudo foi a atuação do Grupo Palmares. Deivison Campos cedeu à IHU On-Line uma dessas conversas com Oliveira Silveira. No encontro, realizado em 04-12-2004, o poeta revelou um pouco do olhar de quem viveu o importante momento de reposicionamento das lutas dos movimentos sociais negros no Brasil. 

 

Confira a seguir a entrevista que Oliveira Silveira concedeu a Deivison Campos e as impressões do pesquisador sobre este encontro.

 

Oliveira Silveira já me aguardava no hall de entrada do Hotel Evereste no Centro de Porto Alegre quando cheguei para entrevista. Recebeu-me com um sorriso tímido e acolhedor, que considero sua marca. Sempre que nos encontrávamos me passava a cópia de algum documento ou texto sobre o 20 e dessa vez não foi diferente. Entregou a cópia de um estatuto que nunca foi aprovado. Era 04 de dezembro de 2004 e estávamos no hotel para uma atividade ainda relativa ao mês da Consciência Negra daquele ano. Aproveitamos uma agenda em comum para mais uma entrevista que aconteceu no bar do térreo do Hotel. 

Antes, conversamos um pouco sobre meu encontro com outros ex-integrantes do grupo. Falou sobre seu interesse pela cultura Angola e seus rastros no estado, além do trabalho que iniciava com os clubes negros. Sua voz era sempre suave e falava de forma lenta e em volume baixo. Enquanto conversávamos, os que chegavam faziam questão de cumprimentá-lo e trocar algumas palavras, tornando as respostas cada vez mais objetivas para atender a todos. 

Os encontros sistemáticos haviam começado um ano antes e seguiriam até 2006. No período, realizava minha pesquisa de mestrado sobre a reorganização do movimento negro depois do golpe militar, a partir do Grupo Palmares e da evocação ao 20 de novembro. Depois disso, seguimos realizando atividades em conjunto. Outras vezes preferia que eu falasse em seu lugar sobre o Grupo Palmares e o 20 de Novembro. Oliveira segue vivo em sua poesia e na luta antirracista.

 

Deivison Campos - Que tipo de informação chegava no Brasil, naquele momento, sobre as questões da Àfrica e a movimentação dos negros no resto das Américas? Que tipo de informação em Porto Alegre se tinha sobre essa movimentação?

Oliveira Silveira - Na década de 1970, quando nós começamos o trabalho com o Grupo Palmares, havia notícias procedentes da Europa sobre socialismo. Da África vinham as ideias da luta pelas independências, Pan-fricanismo , etc. Chegavam informações da Europa e Caribe, porque tem militantes nestas áreas, como o Negritude  de Césare,  lá na França. Dos Estados Unidos vinham as ideias do movimento negro, notícias referentes primeiro a Luther King  e a seguir Black Panters , Poder Negro . 

 

Deivison Campos - Como essas informações chegavam, com a imprensa censurada, etc., quais canais de comunicação foram criados para se ter acesso a essas informações?

Oliveira Silveira - Essas eram justamente as informações que vinham pela imprensa, a não ser as idéias que vinham do socialismo que já vinham de toda a movimentação marxista-socialista. 

 

Deivison Campos - Então havia pouca censura sobre informações que vinham de fora?

Oliveira Silveira - Não é que não houvesse. Seguramente, sim. Mas o problema maior eram as ideias socialistas, que já circulavam por aqui e já acompanhávamos há muito tempo. Sentíamos algumas restrições, tanto é que em nosso trabalho tivemos que recorrer a aquelas liberações da censura para determinadas promoções. 

 

Deivison Campos - Como essas ideias eram discutidas, trabalhadas e até que ponto surgiram ideias e discussões sobre temas mais locais?

Oliveira Silveira - A partir de 1964, na verdade, todo mundo começou a exercer uma autocensura. No trabalha do grupo sempre tínhamos muito cuidado. Eu lembro que nessa época tentamos fazer uma entidade que não tinha caráter político. Era um Centro Rosariense – pessoas vindas de Rosário do Sul – para ficarmos vinculados à cidade. 

Uma das pessoas que apareceu nesse grupo foi com o objetivo de fazer grandes alertas sobre a questão da repressão. Coisas que a principio não preocupavam o grupo. Porque não havia nenhuma ação de caráter subversivo, mas esse cuidado sempre existiu. Procurávamos fazer coisas que não entrassem em choque. Principalmente a partir da criação do Grupo Palmares que é de 1971. No momento em que nós tentávamos fazer o primeiro ato de 20 de novembro, foi necessário pedir uma autorização da censura. Na época, saiu uma nota na Folha da Tarde dizendo Zumbi – A homenagem dos negros do teatro; e o teatro era muito visado. Então, como seria no Clube Náutico Marcílio dias, na Avenida Praia de Belas, o pessoal do clube nos ligou informando que tinha idoso lá e que alguém da Polícia Federal informou que teríamos que pedir essa licença, o que foi feito. Não se tratava de teatro. Apenas o grupo pretendia depois ter um departamento de teatro o que nunca aconteceu. A idéia do ato era o de passar informações às pessoas a respeito de Palmares. Era um ato que não tinha nenhuma apresentação teatral. 

 

Deivison Campos – De que forma se deu o encontro das pessoas que formaram o grupo? Que tipo de experiência essas pessoas traziam e como se unificaram para formar um grupo?

Oliveira Silveira - Nesse momento a gente não sabia determinadas coisas, como, por exemplo, que em São Paulo havia um jornal clandestino, fotocopiado, intitulado A Árvore das Palavras, que saía sem assinatura e caracteriza bem esse período. Aqui em Porto Alegre o que nós fizemos foram reuniões informais. Foi acontecendo ao natural. Aqueles encontros na Rua da Praia, naquela área onde negros se encontravam, se reuniam e então formavam alguns grupinhos para conversas, um desses foi o nosso. 

Ali começávamos a falar sobre as questões negras, surgindo a questão do 13 de maio. O grupo não via motivos para comemorar esta data. Um dos componentes era inclusive um dos grandes adversários do 13 de Maio, chamado Jorge Gonçalves dos Santos. Com aquilo, surgiu a idéia de encontrar outras datas. Foi o trabalho que eu realizei. Estudar um pouco mais de História, rever a história do Brasil e a história do negro. Então, eu cheguei ao 20 de novembro. Especialmente através de uma publicação da Abril Grande Personagens da Nossa História, dedicada a Zumbi. Lá estava a história de Palmares e a morte de Zumbi em 20 de novembro de 1695. Como era um fascículo, não poderia ser tomado como uma fonte muita segura. E eu continuei tentando localizar outras fontes. Cheguei ao Edson Carneiro, que escreveu o livro Quilombo dos Palmares (São Paulo: WMF Martins, 2011, 5ª edição), que confirmava a data e o autor é um pesquisador consagrado. Então não tive dúvida de que poderia ser proposta aquela data como alternativa ao 13 de maio. Até porque, a gente reconhecia, ou entendia que Palmares tinha sido a passagem mais importante, marcante na história do negro do Brasil, por ter durado mais de um século com todas aquelas características que reuniu. 

Para corroborar a data ainda apareceu um livro de Ernesto Ennes, intitulado As Guerras nos Palmares (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938), que eu tinha em casa e não lembrava. O livro transcreve documentos da época das campanhas contra Palmares e aí não tive dúvida. Como não tínhamos a data de nascimento de Zumbi, ou do início de Palmares, nós, por analogia com Tiradentes, adotamos a data da morte de Zumbi. Então, o grupo aceitou e até adotou esse nome, porque foi aí que formalizamos a criação do grupo. Em junho de 1971 o grupo já fez uma programação para aquele ano. Seria uma homenagem ao Luís Gama , isso tudo com a preocupação das datas. A homenagem para o Luiz Gama seria no dia 24 de agosto, que era a data da morte, também, porque a do nascimento já havia passado, era 21 de junho. Então marcamos a homenagem para agosto e depois para o José do Patrocínio  em 9 de outubro e, por fim, 20 de Novembro em homenagem a Palmares. Fizemos o ato vocativo ao 20 de Novembro, no próprio dia 20, um sábado, no clube Náutico Marcílio Dias. 

 

Deivison Campos - Como foi a leitura que a imprensa fez dessa primeira movimentação, parece ter tido acompanhamento interessante das atividades?

Oliveira Silveira - A imprensa foi fundamental nesse sentido porque ajudou a difundir. Desde o primeiro momento, tivemos apoio. Quando passamos a nosso primeiro ato – Luiz Gama – ele foi noticiado no Correio do Povo, o José do Patrocínio também, e o primeiro 20 de Novembro. A gente era meio limitado. Não distribuíamos bem a matéria para imprensa e talvez por isso não tenhamos tido mais apoio e não tenha tido uma repercussão mais forte no início. No ano seguinte, o ato seguinte, se deu através da imprensa. Preparei um material que ocupou sete páginas da Revista ZH, editado pelo Juarez Fonseca, no Jornal Zero Hora. Ele acolheu a ideia e utilizou todo material que preparei. Um histórico sobre Palmares – já aí utilizando o livro do Décio Freitas  – que se somou a bibliografia conhecida. Por que é importante dizer que nós chegamos ao 20 sem conhecer o Décio Freitas e sua obra. O Décio, conhecemos exatamente no dia do primeiro ato. Ele compareceu anonimamente e ao final se apresentou e me presenteou com um exemplar do livro editado no Uruguai. O livro tinha sido editado em agosto, um mês depois da formalização do Grupo Palmares. Então, a partir daí, li o livro e já nessa matéria para ZH, utilizei como fonte de pesquisa, destacando a importância do livro. A matéria também incluiu informações sobre o posicionamento do Grupo Palmares, redigida por Helena Vitória dos Santos Machado. A outra matéria era um poema de Solano Trindade e um conto meu intitulado Zumbi no Morro. Ilustrado pela Maria Lídia Magliane, artista plástica, que também fez a capa da revista ZH [19/11/71].

 

Deivison Campos - Esse momento coincide com o desmantelamento de territórios negros em Porto alegre, processo de periferização da população. Os encontros do centro tinham relação com isso, lugar de encontro de quem vem de longe? 

Oliveira Silveira - Sem dúvidas, acho que o encontro preenchia esta função. Pois o centro da cidade é de todo mundo, todos os habitantes têm direito ao centro. A oportunidade melhor de encontro numa cidade como Porto Alegre. A Colônia Africana já havia sido dissolvida na década de 1950, com o deslocamento para Vila jardim, Bom Jesus, a Ilhota desfeita, com o pessoal sendo enviado para Restinga, o Areal tinha perdido a força como centro carnavalesco. O carnal tinha ido para o centro e sido institucionalizado, passando para a Avenida Borges, depois Avenida João Pessoa. 

Estes pontos continuam existindo hoje, mas estão sempre sendo dissolvidos pela ação do poder público. Não quer dizer que seja só o poder público, mas são medidas que acabam prejudicando. É o caso da esquina Democrática que era sempre um centro de encontro principalmente da juventude nas sextas-feiras, trocando informações sobre festas, etc. então os próprios grupos políticos, movimentos faziam atos exatamente ali. Colocando um poder de som e atrapalhando a comunicação das pessoas. Eu sempre condenei isso. Os atos deviam ser um pouco afastados desse local de reunião porque afinal de contas há sistema de som. 

Outro ponto bastante prejudicado foi na frente da Confeitaria Mateus, na Avenida Borges, porque agora tem estacionamento de microônibus e carro, assim como a própria Rua da Praia que estava livre dos veículos e voltou a ter tráfego. Mas esses pontos sempre existirão, acho que preenchem esta função de agregar as pessoas que estão espalhadas pelas cidades, cada vez em bairros mais distantes. 

 

Deivison Campos – Qual é o valor simbólico do 20 de novembro? Havia uma dimensão disso nos primeiros momentos em que a data foi proposta? 

Oliveira Silveira - Sim, porque seria a alternativa com sentido de ser uma liberdade conquistada, como foi o caso de Palmares, contra uma liberdade doada, que foi a abolição. Palmares tinha um sentido completamente diferente por ser conquistado através da luta, foi uma construção negra. Era esse o sentido. Agora, nós no Grupo Palmares, não tínhamos a intenção de individualizar a questão do 20 de Novembro na figura de Zumbi, embora ressaltássemos toda a importância dele como herói. Nós visávamos mais o coletivo. Colocávamos homenagem aos Palmares – Palmares o momento maior. Era um posicionamento contrário à historiografia oficial, dita oficial, de centralizar tudo na figura de um herói como se fizesse tudo sozinho, quando tem um coletivo trabalhando junto. Então queríamos trabalhar nessa perspectiva. O movimento negro ao aderir ao 20 de novembro fez o caminho contrário e seguiu o caminho oficial, centralizando na figura de Zumbi. Pode até ter sido positivo numa fase de transição para não romper totalmente com o comum, com o que era ensinado nos bancos escolares, mas o fato é que ouve essa individualização que pode ter sido positiva sim, mas nós procuramos o coletivo. De qualquer forma, o fato é que o 20 de novembro se propagou para todo o país. 

 

Deivison Campos - Se discutia a questão da identidade? O que é ser negro? 

Oliveira Silveira - Uma das coisas importantes que aconteceram foi essa afirmação da palavra negro. Usar a palavra negro como coisa positiva, inclusive negando a palavra moreno, muito usada. Isso é uma conquista do movimento negro como um todo. No grupo tínhamos isso também. É algo de muito significativo, essa coisa da aceitação.■

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