Edição 477 | 16 Novembro 2015

Quando a chaga vem do silenciamento

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João Vitor Santos

Carla Bottega discute a saúde mental de trabalhadores e trabalhadoras que, pela lógica atual do mundo profissional, são silenciados e oprimidos pela necessidade de mais produção com menos relações

Existe uma velha máxima que diz que a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. A frase pode ser transposta para o mundo do trabalho, uma vez que este pode tanto enobrecer o ser humano como torná-lo doente. O desafio de melhorar o ambiente e a relação com o trabalho, preservando a saúde física, é grande. Porém, o desafio com relação à saúde mental é imenso. Carla Bottega, do Laboratório de Psicodinâmica do Trabalho da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, reconhece que a preservação da saúde mental do trabalhador não é sempre tratada da mesma forma que a preservação da dita saúde física. “É preciso atenção e constante atualização com o que acontece no cotidiano da vida, no real do trabalho, pois o sofrimento no trabalho tem levado as pessoas à retração, ao silenciamento, e se não há espaço para a fala, significa que também não há espaço para a escuta”, alerta.

Na entrevista, concedia por e-mail à IHU On-Line, Carla analisa os fatores que levam homens e mulheres ao adoecimento em decorrência de suas atividades profissionais. Entre eles, os principais são o individualismo e a competitividade do novo mundo corporativo. “O adoecimento tem demonstrado que as estratégias coletivas de defesa, que possuem papel de extrema importância de resistência aos efeitos nocivos da organização do trabalho, estão perdendo espaço para o individualismo e a solidão”, destaca.  A consequência, segundo a pesquisadora, é que “na medida em que não há espaço para uma construção do sentido do sofrimento nas relações sociais, surge o desânimo, a decepção e, até mesmo, o desespero. Trabalhadores e trabalhadoras, apesar de doentes, não querem se afastar de seus postos de trabalho pelo medo da substituição imediata por outro profissional e pelo estigma que ainda permanece em relação ao adoecimento mental”, completa. Assim, mesmo doentes, seguem em seus postos, cada vez produzindo menos e se afundando num ciclo de adoecimento.

Carla Garcia Bottega é psicóloga, doutora e mestre em Psicologia Social e Institucional. É docente na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS. Ainda integra o Laboratório de Psicodinâmica do Trabalho da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Atua em temáticas da Saúde Mental e Trabalho, Prevenção e Humanização em Saúde, temas que estão presentes nos debates do Ciclo de Estudos: Saúde e segurança no trabalho na região do Vale do Rio dos Sinos, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em parceria com o Sindicato dos Metalúrgicos de São Leopoldo. Saiba mais em http://bit.ly/1Mn1War.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line- Em que medida o trabalho (e as relações de e com o trabalho) impacta na saúde mental do indivíduo? 

Carla Garcia Bottega - Entendo o trabalho como constituidor da identidade e articulador entre a esfera social e a vida privada do trabalhador. Nesse sentido, o trabalho permite promover saúde mental, mas não sem o confronto com a organização do trabalho, que pode gerar prazer, mas também sofrimento e adoecimento. A partir do que tenho estudado, escutado e vivenciado com trabalhadores, as mudanças operadas na realidade do trabalho têm sido as de ordem mais perversas e perturbadoras com impactos significativos na vida dos trabalhadores. São situações geradoras de elevado nível de sofrimento e por vezes adoecimento, sendo que os trabalhadores sempre buscam criar estratégias para lidar com esse sofrimento e continuar trabalhando. Mas o que ocorre, por força da atual organização do trabalho, é que o trabalhador tende a um processo doloroso de confronto com seus colegas, e consigo mesmo, relegando sua condição de trabalho a um plano escondido, recalcado e silencioso.

São visíveis as intensas modificações que o trabalho sofreu nas últimas quatro décadas: diminuições no número de empregos, aumento de serviços, precarização dos contratos e flexibilização de leis trabalhistas, entre outras mudanças. Ao mesmo tempo, como referência social, tem sido questionado, ressignificado, criticado e resgatado por alguns teóricos. Uns chegam a colocar em xeque a centralidade do trabalho, mas é visível o aumento da sua exploração. Todas essas transformações influenciam, direta ou indiretamente, a sociedade, seja o trabalhador empregado ou sem emprego e suas famílias, e impactam diretamente na subjetividade do trabalhador. 

 

IHU On-Line - Quais as principais causas de sofrimento e transtornos psíquicos relacionados ao trabalho? O que causa sofrimento no trabalho hoje e em que medida o mundo capitalista da atualidade, da lógica do consumo e do descartável impacta nesse sofrimento?

Carla Garcia Bottega - A ampliação das vivências de sofrimento psíquico e, muitas vezes, o adoecimento, em maior escala do que há pelo menos 20 anos, têm demonstrado que as estratégias coletivas de defesa, que possuem papel de extrema importância de resistência aos efeitos nocivos da organização do trabalho, estão perdendo espaço para o individualismo e a solidão. No enfrentamento às adversidades, presentes no trabalho, e às condições de vida desestabilizantes, os trabalhadores têm de resistir e novamente estabilizar o que se desorganiza. A partir da habilidade, da inteligência e astúcia, os trabalhadores constroem estratégias defensivas, que permitem a permanência da normalidade.

Mas o que ocorre é que a solidariedade e cooperação tão necessárias ao enfrentamento cotidiano do trabalho, como recursos coletivos para a manutenção da saúde, estão desaparecendo. Para que realmente se possa desenvolver o “viver junto”, é preciso atenção e respeito ao outro, o que tem sido substituído pela competição exacerbada e banalização do sofrimento alheio a partir das mudanças, evoluções e variantes dos modelos de gestão.

Concordo com Margarida Barreto  e Roberto Heloani , que apontam que as funções de recursos humanos, ou os subsistemas de Recursos Humanos que foram se desenvolvendo ao longo do tempo, como avaliação de desempenho, remuneração e carreiras, além de outros, sempre fizeram parte do controle sobre o trabalhador e apropriação de sua subjetividade. Principalmente visando o aumento da produtividade e o modo de operar o trabalho. Ao mesmo tempo, essas funções têm sido “disseminadas” a todos os gestores e não apenas a um setor específico de RH nas empresas.

O que se busca, nestes modelos, são melhores condições para o aumento da produtividade e que os trabalhadores, além de participarem, o façam de acordo com as orientações, com as prescrições dos gestores e que estão contidas nos manuais de Recursos Humanos. Apesar de solicitarem a participação coletiva, os subsistemas de recursos humanos propõem que as ações sejam individualizadas, o que demonstra as contradições internas destas políticas.

Lógica generalista e individualismo

É importante e necessário o processo de planejamento, de organização e de racionalização da produção. E estas preocupações são justas na medida em que melhoram a vida das pessoas e as relações, inclusive no trabalho. Mas o que ocorre é que a lógica gerencialista, originada na área privada, tem avançado nos setores públicos e na vida da sociedade. Tudo na atualidade tem a ver com práticas gerencialistas, e invadiu a vida dos sujeitos controlando as relações sociais.

Na prática clínica e de observação, verifica-se que não existem espaços abertos e democráticos nos locais de trabalho. Ao contrário, estão presentes condições para a emergência do individualismo, dos comportamentos desleais, intrigas e traições. Ou seja, a possibilidade de fazer sofrer e da injustiça entre os pares. Como não é possível construir uma perspectiva de futuro, a perspectiva atual está marcada por ansiedade, angústia e um sentimento de vazio de sentido. O estímulo ao individualismo exacerbado não permite a construção de vínculos, sejam eles na comunidade ou no trabalho.

As pessoas deixam de utilizar os espaços públicos, seja para realizarem discussão do seu trabalho ou de qualquer outra questão que diga respeito às suas vidas. Se não há espaço para uma construção do sentido do sofrimento nas relações sociais, surge o desânimo, a decepção e, consequentemente, o desespero. A transformação do sofrimento passa pelo uso da palavra, em um espaço público de discussão. 

Patologias da solidão

Em pesquisa que realizei recentemente para minha tese — “Clínica do Trabalho no Sistema Único de Saúde: Linha de cuidado em saúde mental do trabalhador e da trabalhadora” — com entrevistas com trabalhadores e trabalhadoras pude verificar que as situações de adoecimento foram aquelas provenientes da exposição a vivências de violência. Estas geraram consequentemente depressões, estado de pânico e fobias, angústias, estresse e tentativa de suicídio, entre outras. Que podem ser denominadas patologias da solidão, patologias sociais e do silêncio.

Neste sentido, são comuns casos de assédio moral fazendo parte de ações de violência psicológica que tomam proporções maiores do que atos isolados ou de acontecimento esparso. A exposição a situações vexatórias, xingamentos e maus tratos se tornaram cotidianas, estabelecendo perseguições ao sujeito em foco. A violência psicológica tem origem em uma relação de abuso de poder, como ameaça ou ainda omissão nas relações de trabalho. Busca neutralizar o trabalhador, ou um grupo, no sentido de controle de ações principalmente inibindo questionamentos.

Com modelos de gestão tão coercitivos e punitivos, os espaços de reunião e encontro se reduziram à passagem de informação, cobranças coletivas ou de exposição individual dos trabalhadores, sendo mais um palco para evidenciar atos violentos. Ocorre que, no quadro dos novos modelos gerenciais, o reconhecimento pelo trabalho bem feito não é um valor a ser considerado, mesmo que algum movimento neste sentido seja feito pela organização, é fugaz e nem sempre verdadeiro, na medida em que visa aumento de produtividade e lucro. 

Os novos modelos de gestão, adotados por grande parte das empresas e até mesmo instituições públicas, favoreceram a intensificação dos sentimentos de insegurança, desesperança, medos e autoexigências. Tudo isso acaba impondo aos trabalhadores um nível mais elevado de sujeição diante de práticas gerenciais que exploram e violentam.

 

IHU On-Line - Como ocorre a banalização do sofrimento no trabalho? Hoje, as doenças mentais e transtornos psíquicos têm o mesmo “status” das demais doenças relacionadas ao trabalho ou ainda são negligenciadas e tratadas como tabus?

Carla Garcia Bottega - O sofrimento ético proveniente do trabalho pode mobilizar o sujeito a agir individual ou coletivamente em relação à violência e injustiça ou pode ser negado, com a banalização inclusive do sofrimento alheio. Na medida em que os trabalhadores não possuem espaço coletivo para falarem sobre o seu trabalho, se não são reconhecidos como aqueles que podem intervir na organização de suas práticas cotidianas, são levados a um embotamento pessoal. Isso é traduzido pelo silêncio, já que não há o que dizer. São levados a desacreditarem da sua potência, como transformadores das adversidades, que sofrem e vivem.

Ao mesmo tempo, são induzidos na crença que seu sofrimento é da ordem do individual e, por essa razão, não tem espaço no ambiente coletivo. Acabam não conseguindo compartilhar, com outros trabalhadores, os sentimentos e vivências semelhantes. Como consequências, o individualismo e a competição no trabalho são saídas para esse sujeito que silencia e não divide as adversidades vividas com outros trabalhadores.

Mesmo com este movimento social pela competição exacerbada, os trabalhadores que acreditam na mobilização coletiva buscam seus pares para a discussão, mas, como não encontram parceiros, na maioria das vezes, acabam por também silenciar gradativamente. Os sujeitos não encontram solidariedade para suportar as dificuldades coletivamente, já que a falta da solidariedade está também no espaço público. Dessa forma desacreditam que estão certos, em suas reivindicações, e muitas vezes chegarão ao adoecimento, por descrença em si mesmos.

Nas entrevistas que realizei, ficam evidentes nos relatos dos trabalhadores as tentativas — das chefias e/ou profissionais de saúde da empresa — de que seu sofrimento e sintomatologia sejam atribuídos a questões particulares, individuais, histórias pregressas de adoecimento. Assim, acabam buscando afastar cada vez mais qualquer relação com a situação de trabalho, a execução das tarefas ou vivências traumáticas ocorridas no ambiente laboral. Em resumo, a responsabilidade pelo cuidado é apenas do trabalhador, assim como a culpa de não ter se cuidado, caso algo aconteça. 

 

IHU On-Line - Qual o perfil do trabalhador que hoje tem sua saúde mental mais ameaçada? Quais as atividades mais expostas e que lógica comum interliga essas atividades?

Carla Garcia Bottega - Nas entrevistas, a relação de importância para com o trabalho, dedicação, interesse em permanecer trabalhando esteve presente em todas as falas. Mesmo aqueles que foram assediados ou estão afastados por longos períodos, todos falam da importância do trabalho em suas vidas. As histórias de extrema dedicação ao trabalho, de “vestir a camiseta” da instituição são as mais comuns nos casos de adoecimento. Os relatos demonstram que muitos trabalhadores largavam tudo em função do trabalho, inclusive família, filhos e os cuidados com a saúde.

Nos aspectos de dedicação ao trabalho, os relatos são afetivos e carregados de sentimentos, estes muitas vezes ambivalentes devido ao sofrimento, mas a relação de pertencimento ao trabalho sempre está presente. Sabe-se que as pessoas trabalham para contribuir com o seu local específico de trabalho, mas também com a sociedade, dando sua contribuição social. Porém, o que ocorre atualmente é que esta retribuição simbólica ou moral está cada vez mais esvaziada, mais sem sentido. Há uma supervalorização da retribuição material, e, por mais que esta seja importante, não é suficiente para alimentar o pertencimento e engajamento do trabalhador ao seu trabalho. 

Trabalhadores mais expostos

Alguns autores e pesquisas apontam que os trabalhadores da saúde, educação e segurança estariam mais expostos ou vulneráveis ao adoecimento em função de seu contato com outro sujeito que também sofre, somando-se a isso as pressões provenientes da organização do trabalho. Em minha prática clínica, e para a tese, tive contato com trabalhadores e trabalhadoras das áreas do comércio, educação, segurança patrimonial, indústria e saúde. Independente dos que estão trabalhando atualmente, todos já estiveram afastados anteriormente por motivos de saúde por longos períodos. Mesmo que o motivo do adoecimento seja relacionado ao trabalho, e a ambivalência sobre este adoecer esteja presente nos relatos de seus sentimentos, todos têm uma relação de pertencimento com o trabalho de extrema dedicação. 

Outro aspecto importante é que o ciclo de adoecimento é visível, manifesto pela permanência no trabalho mesmo em casos de adoecimento e com licenças saúde indicadas em avaliação médica, mas não utilizadas. O medo de se afastar do trabalho é uma constante, pelos sentimentos de inutilidade e descarte exacerbados pelo discurso gerencial de fácil substituição. Esses trabalhadores, em sua maioria afastados das atividades laborais, relatam profundo sofrimento e situações de adoecimento relacionadas ao seu trabalho. Alguns, chegando ao desespero e desesperança de mudanças em suas vidas, fizeram tentativas de suicídio. É possível afirmar que o trabalho para este grupo tem se constituído mais como fonte de sofrimento e consequente adoecimento, na medida em que a permanência nos espaços laborais chegou ao insuportável. 

 

IHU On-Line - Como conceber ações de proteção à saúde mental ao trabalhador? Que tipo de política pública deve e precisa ser desenvolvida para assegurar a saúde mental do trabalhador e qual o papel das organizações privadas (as empresas) e entidades de classe (sindicatos) nesse processo?

Carla Garcia Bottega - É importante compreender que a prescrição para a execução do trabalho se tornou mais rígida, ao mesmo tempo que diminuíram as explicações ou esclarecimentos de como realizá-lo. As cobranças e exigências provenientes de chefias foram ficando mais rudes, severas, e nem sempre claras, aumentando as situações de punições e advertências por questões/erros que não foram explicitadas para o trabalhador. Somadas às mudanças citadas no gerenciamento, acrescentam-se a sobrecarga de trabalho, novas formas de controle, bem como processos de avaliação de desempenho individualizado; nesse sentido, como não é possível avaliar o trabalho apenas por seu resultado e de forma individualizada, os trabalhadores desenvolvem sentimentos de desconfiança e injustiça. É possível verificar o quanto as mensagens da gestão são paradoxais, de dupla linguagem, confundindo até mesmo as chefias imediatas que também estão subordinadas à hierarquia com relação semelhante. 

A compreensão do que se vive atualmente no mundo do trabalho precisa ser discutida entre gestores e trabalhadores, resgatando espaços coletivos de planejamento, negociação e gestão. Os sindicatos e espaços de representação têm um papel importante neste aspecto. Alguns sindicatos possuem acompanhamento jurídico, médico e psicológico, e este tem sido o único espaço de acolhimento para alguns trabalhadores.

Alternativas

Nesse sentido, coloco como sugestão da minha tese para composição no Sistema Único de Saúde - SUS a construção de uma Linha de Cuidado em Saúde Mental do Trabalhador que possa pensar ações de cuidado entre os profissionais, usuários e serviços que priorizem o momento de vida do usuário e possam ser resolutivas visando à promoção de saúde. A partir da escuta atenta, enquanto tecnologia leve, o acolhimento no serviço e a possibilidade de cuidado integral ao sujeito em sofrimento podem garantir qualidade e resolutividade. 

É necessário investimento na relação clínica e esse investimento precisa ser tanto do usuário quanto do profissional de saúde, assim como o serviço de saúde precisa se mostrar acolhedor ao atendimento. Aquele que busca atendimento está fragilizado em sua condição de “ser” e busca estabelecer minimamente um estado anterior ao da doença. Mas, para isso, é preciso que os profissionais da saúde incluam na entrevista inicial dos usuários a questão do trabalho. Um simples questionamento voltado para a atividade de trabalho realizada pode abrir caminhos diversos daqueles em que fosse apenas investigada a sintomatologia manifesta. Por isso na Linha de Cuidado são construídos e pactuados, com os envolvidos, movimentos para ações que sejam mais resolutivas acompanhadas com a responsabilização da equipe e serviço. Isso pode ser expresso em um projeto terapêutico que coletivamente traçado pode vir a ser dinâmico e flexível o suficiente às situações apresentadas.

Clínica na Linha de Cuidado

A clínica, expressa na Linha de Cuidado, é uma clínica de suporte e acompanhamento que pressupõe a criação de vínculo e confiança entre usuário e profissional da saúde. Importante ressaltar que, por ser uma clínica que no seu cotidiano traz expressões de sofrimento/adoecimento de grande complexidade, é preciso que a equipe e outros serviços deem suporte na discussão da operacionalidade dos casos e como apoio aos profissionais que fazem o atendimento. Essa clínica pode ser tanto em caráter individual, inicialmente, quanto de forma coletiva, na medida em que os grupos oferecem importante suporte para os participantes que reconhecem nos pares situações semelhantes às suas. O grupo resgata o caráter coletivo que não se encontra nos espaços de trabalho.

As linhas de cuidado estão presentes na legislação recente, em saúde do trabalhador, mas apenas em diretrizes amplas, sem desenvolvimento. Em outras políticas de saúde, como a de saúde mental, da mulher, da criança e do adolescente, por exemplo, já foram constituídas linhas de cuidado que têm sua efetividade.

 

IHU On-Line - Como avalia a legislação trabalhista brasileira acerca da proteção de saúde mental do trabalhador? E como Sistema Único de Saúde – SUS e Previdência Social vêm desempenhando esse papel de acolhida/proteção ao trabalhador que tem sua saúde mental ameaçada?

Carla Garcia Bottega - Apesar de saber e reconhecer o esforço de pesquisadores e clínicos do trabalho na construção de conhecimento nesta área, há necessidade de propor novas possibilidades e de sistematizar o que já vem sendo realizado no campo da saúde mental. Entendo que ocorreram avanços importantes nos últimos anos no desenvolvimento do campo da saúde mental do trabalhador, principalmente com a compreensão proposta pela Clínica Psicodinâmica do Trabalho, desenvolvida por Dejours . Por outro lado, é grande a dificuldade para a investigação e para o acompanhamento dos trabalhadores com sofrimento mental relacionado ao trabalho.

Consideram-se, ainda, as dificuldades no estabelecimento do nexo com o trabalho e no diagnóstico de adoecimento psíquico relacionado ao trabalho, pois mesmo que este tipo de adoecimento apresente alta prevalência entre os agravos que acometem a população de trabalhadores, sua identificação, diagnóstico e registro frequentemente deixam de ser realizados pela rede de serviços de saúde pública e privada. Apesar da ampliação multidisciplinar nos atendimentos do SUS, na maioria das vezes os profissionais não conseguem estabelecer a relação entre saúde mental e trabalho, já que carecem de ferramentas orientadoras para investigação e atendimentos.

A Política Nacional da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora recentemente regulamentada (Portaria Nº 1.823, de 23 de agosto de 2012), conforme determinação do Ministério da Saúde deve ser articulada à Política e ao Plano Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador - PNSST, em todo o âmbito do SUS, além do Ministério do Trabalho e Emprego e da Previdência Social. Busca desconstruir que o processo de adoecimento seja responsabilidade do trabalhador e não dos modelos de desenvolvimento e/ou processos produtivos, o que pode ser verificado no acréscimo do princípio da precaução, além dos princípios gerais do SUS. Também reforça ações já existentes desenvolvidas em muitos municípios, compreendendo a necessidade da articulação intersetorial e das atribuições nas três esferas de governo: federal, estadual e municipal.

Desafios à política

Há uma busca de articulação de diversas ações em saúde do trabalhador, mas a política enquanto tal é ainda muito recente. Não se tem serviços que atendam especificamente à saúde mental dos que estão em sofrimento e adoecimento psíquico pelo trabalho, a não ser em algumas ações desenvolvidas pelos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador - Cerest.

Previdência Social

No contato que tive com trabalhadores e trabalhadoras, a avaliação do serviço prestado pela Previdência Social foi uma constante. Um aspecto comum a todos que comentaram sobre o serviço é que este precisa ser mais humanizado, ágil e levar em consideração os laudos/atestados e a fala do trabalhador. A desconfiança sentida nas avaliações periciais, além da maratona para atendimentos e comprovação do adoecimento, deixa cada vez mais fragilizado o trabalhador que já está em sofrimento.

SUS

Quanto às vivências de atendimento na rede de serviços do SUS, as situações são variadas. Daqueles que buscaram atendimento psicoterápico em Centros de Atenção Psicossocial - Caps ou encaminhamento via Unidade Básica de Saúde - UBS disseram não ter conseguido ou se sentido acolhidos. Também é importante registrar que alguns, por estarem em momento de extrema fragilidade, ou mesmo pela falta de entendimento do que estão vivenciando, sequer conseguiram buscar algum tipo mais específico de atendimento em saúde mental. 

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Carla Garcia Bottega - Apesar do quadro do mundo do trabalho na atualidade não ser dos mais animadores, a prática tem demonstrado que a possibilidade de escuta ao que é vivido no trabalho traz mudanças para a vida dos trabalhadores. A promoção de espaços coletivos de discussão, em pesquisas e intervenções, a pedido dos trabalhadores e de algumas instituições tem modificado a realidade do trabalho. Os passos dados ainda são curtos e pequenos, pelo cuidado necessário para com os trabalhadores e em relação às modulações provenientes da organização do trabalho. 

É preciso atenção e constante atualização com o que acontece no cotidiano da vida, no real do trabalho, pois o sofrimento no trabalho tem levado as pessoas à retração, ao silenciamento, e se não há espaço para a fala, significa que também não há espaço para a escuta. O que facilmente se lê como “descomprometimento ou desmobilização” no trabalho tem sido consequência do silenciamento dos trabalhadores sobre o seu próprio trabalho.

Na medida em que não há espaço para uma construção do sentido do sofrimento, nas relações sociais, surge o desânimo, a decepção e, até mesmo, o desespero. Trabalhadores e trabalhadoras, apesar de doentes, não querem se afastar de seus postos de trabalho pelo medo da substituição imediata por outro profissional e pelo estigma que ainda permanece em relação ao adoecimento mental. Mesmo doentes, as pessoas trabalham. E esta questão na lentidão dos encaminhamentos, dos atendimentos, na passagem por diversos profissionais, ou mesmo a espera por uma solução, debilita ainda mais este trabalhador que continua a sofrer mesmo após ser afastado.

Como diz Dejours, as pessoas não querem fazer mal suas atividades, querem fazer um trabalho bem feito, mas muitas vezes são forçadas a realizá-lo mal pelas pressões da organização do trabalho. Também porque não querem e mesmo não podem se sentir descartáveis, como apenas mais uma peça da engrenagem. ■

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