Edição 477 | 16 Novembro 2015

Amor e destino: antídotos para o positivismo da lei

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Márcia Junges e João Vitor Santos

Em seu livro, Adilson Felicio Feiler retoma Hegel e Nietzsche para pensar uma ética cristã costurada por esses dois conceitos
Hegel e Nietzsche: A ética cristã concebida pelo amor e o destino. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2015

O filósofo e professor Adilson Felicio Feiler reflete sobre o cristianismo. Para isso, busca nas críticas de Hegel e Nietzsche outro olhar sobre esse “ser cristão”. Para ele, entre os autores, há diferenças nas formas como apreendem e criticam o cristianismo enquanto lei e moral. “Enquanto Hegel a faz com certa propriedade, mergulhando no interno da esfera do Cristianismo, Nietzsche realiza esta crítica com um tom um tanto caricato e ressentido”, esclarece. Revisitando ambos os autores, Feiler sustenta que “é através deste Cristianismo, estabelecido numa prática, uma instituição para além de toda a instituição, que Hegel e Nietzsche consideram possível se viver neste mundo moderno”.

Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Feiler também revela de que forma as ideias de amor e destino operam como dispositivo para compreender esse caminho trilhado pelos autores. Para ele, os conceitos funcionam como chave de leitura que ameniza a dureza da lei. “O amor é a disposição pela qual nos colocamos diante da vida que se apresenta, muitas vezes, na sua mais dura realidade. A ética da Lebensfülle acolhe o todo com amor, tal como o Jesus histórico, razão pela qual a prática de vida que ele inaugura leva a acolhida do todo com disposição alegre e jubilosa”, explica.

Adilson Felicio Feiler possui graduação em Filosofia pela Fundação Educacional de Brusque - Febe e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - Faje e pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR. É mestre em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos e doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS. Vem atuando como pesquisador visitante na Georgetown University. É professor na Unisinos, trabalhando com os temas: Nietzsche, Hegel, moral, ética e Cristianismo.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a centralidade dos conceitos de amor e destino em sua pesquisa?

Adilson Felicio Feiler - Os conceitos de amor e destino são centrais em minha pesquisa sobre a ética cristã no período do Romantismo alemão porque apontam para uma ética que é reconciliação e que está sempre voltada ao porvir. O amor não evoca um sentimentalismo, mas um movimento de oposição àquilo que divide, portanto de reconciliação. O destino não é um determinismo fatalista, mas abertura, porvir. Por isso, amor e destino constituem antídotos para procurar sanar aquele estranhamento e positivismo da lei. Do amor, a lei ganha em unidade, contra o formalismo próprio do centramento na parte e do destino em abertura, contra o determinismo e o fechamento. O amor e o destino reforçam o aspecto organicista da vida que é plenitude, abertura, Lebensfülle , expressão que tanto Hegel  no Espírito do Cristianismo e seu destino e Nietzsche  na Gaia Ciência utilizam. 

Pelo amor que une as partes divididas e formalizadas e pelo destino que abre o dogmatizado e inerte, a vida é acolhida em sua plenitude e com tudo o que dela demanda, amor fati, acolhida jubilosa ao destino, ao fatum. O amor é, portanto, a disposição pela qual nos colocamos diante da vida que se apresenta, muitas vezes, na sua mais dura realidade. A ética da Lebensfülle acolhe o todo com amor, tal como o Jesus histórico, razão pela qual a prática de vida que ele inaugura leva a acolhida do todo com disposição alegre e jubilosa.

 

IHU On-Line - Que aproximações são possíveis de serem estabelecidas entre Hegel e Nietzsche, tomando em consideração O Espírito do Cristianismo e seu destino e O Anticristo ?

Adilson Felicio Feiler - Jürgen Habermas  diz que se Nietzsche tivesse conhecido este escrito da juventude de Hegel (O Espírito do Cristianismo e seu Destino), certamente teria concordado com Hegel, porque neste escrito são antecipadas muitas das críticas de Nietzsche ao Cristianismo. Wilhelm Dilthey , inclusive, chega a afirmar que este é um dos escritos mais belos de Hegel, por respirar o romantismo alemão, e, deste movimento, O Espírito do Cristianismo e seu Destino acentua principalmente o organicismo vital. Falamos de escrito e não obra porque Hegel não teve a intenção de publicá-lo, contendo no mesmo, inclusive, inúmeros cortes, erros e partes obscuras. Contudo, os germens dos temas principais da filosofia hegeliana já repousam neste escrito de uma forma não sistêmica.

A tese de Hegel, neste escrito, é a de que o Cristianismo, fundado por Jesus, está ligado ao seu espírito; ou seja, diz respeito àquilo que verdadeiramente faz parte dele. Contudo, o legado de Jesus efetuado pelos seus seguidores conduziu ao seu estranhamento, pelo positivismo legal que foi se instaurando. Esta crítica de Hegel a um Cristianismo estranhado vem ao encontro das críticas de Nietzsche de uma falsificação do Cristianismo. É que aquela prática cristã, relativa à vida de seu fundador, foi crucificada juntamente com Jesus. Assim, em torno ao espírito (Hegel) e prática (Nietzsche) temos uma chave de aproximação entre O Espírito do Cristianismo e seu Destino e O Anticristo.

 

IHU On-Line - Por que o ethos cristão enquanto um telos é o ponto de convergência dessa aproximação?

Adilson Felicio Feiler - Porque o ethos cristão é o que, de fato, distingue o Cristianismo enquanto uma prática de vida; é o espírito cristão, a sua dimensão crística, e não um conjunto de dogmas, regras e mandamentos. E é esta dimensão crística, o Cristianismo como práxis, o que aproxima as críticas de Hegel e de Nietzsche a uma forma pela qual o Cristianismo tem sido vivido.

A defesa do Cristianismo singular, em Hegel e Nietzsche, se apresenta com um único telos: a maximização da vida, Lebenshöhepunkte . O ethos cristão que se depreende da aproximação das concepções hegeliana e nietzschiana entre amor e destino, normatividade e organicidade, o amor como movimento de reconciliação destinado a estar sempre em movimento, aberto em momentos de desconstrução e criação, é a vida que, na sua diferença, se afirma como plenitude: Lebensfülle. A vida em sua plenitude se traduz em potência, força aberta a criar pontos sempre mais culminantes: Lebenshöhepunke. Por isso, é evidente que Nietzsche teve como alvo de seus ataques o Hegel do sistema e não o Hegel da juventude, pois não o conheceu e, com esse último, há um projeto comum: o de crítica à moral em nome da afirmação do ethos cristão como reconciliação no amor, destinado à fatalidade da vida que se abre a sua plenitude e culminância.

IHU On-Line - Quais são as diferenças fundamentais de ambos os autores em seus posicionamentos acerca do Cristianismo?

Adilson Felicio Feiler - O que difere basicamente Hegel e Nietzsche, com respeito às críticas ao Cristianismo como lei e como moral, reside na maneira como cada um realiza a crítica. Enquanto Hegel a faz com uma certa propriedade, mergulhando no interno da esfera do Cristianismo, Nietzsche realiza esta crítica com um tom um tanto caricato e ressentido, de modo que suas críticas, embora no essencial sejam convincentes, tornam-se muitas vezes mal entendidas por deixar transparecer elementos de cunho pessoal. Isto torna a crítica um tanto tendenciosa.

É sabido, de acordo com inúmeros biógrafos de Nietzsche, que sua educação na fé foi bastante repressora e pietista , de modo que a imagem do Deus cristão que ele assimilou no seio da família foi a de um Deus severo e castigador, muito mais pronto a ditar normas e leis do que conduzir a uma prática de vida que conduz à liberdade. Essa imagem lamentável do Cristianismo que Nietzsche herdou foi a causa, em grande parte, de suas críticas terem sido tão vorazes. O que incorre, em muitos pontos, em uma grande injustiça, pois muitas vezes parece reduzir o Cristianismo, como um todo, ao erro. 

O fato de tanto Hegel como Nietzsche terem sido herdeiros do pietismo protestante, com Hegel na qualidade de seminarista, em Tübingen, e com Nietzsche como filho de pastor, nos faz ver que a crítica que ambos endereçam ao Cristianismo é dirigida a um Cristianismo tipicamente protestante. Hegel chega a apresentar, em uma carta a Schelling , de 2 de novembro de 1888, que preferiria residir numa cidade católica a uma cidade protestante. Isso porque, como na teologia protestante o sacerdócio e as mediações históricas são inexistentes, o Catolicismo preserva tais mediações como importantes para a encarnação de Deus na história, tema tão caro a Hegel.

 

IHU On-Line - Por que as tendências teológicas de Hegel e Nietzsche apontam para um modelo ético que sinaliza para uma abertura da vida?

Adilson Felicio Feiler - Karl Löwith , em sua obra De Hegel a Nietzsche , diz que as críticas ao Cristianismo moral têm em Hegel o seu início e em Nietzsche o seu acabamento. O que motivou tais críticas é justamente a maneira pela qual o Cristianismo tem sido vivido, não como uma prática de vida, mas como uma lei, uma regra, sufocando aquilo que é mais caro ao fundador do Cristianismo, a práxis. Por essa razão, num determinado modelo de Cristianismo tem se supervalorizado a lei e a norma, coibindo aquilo que são as inclinações humanas vitais e impondo prescrições dietéticas.

Tanto Hegel como Nietzsche se insurgem contra tal situação, abrindo uma perspectiva de vivência cristã que valoriza a vida naquilo que lhe é mais característico: as manifestações orgânicas e pulsionais. A vida entendida nesta perspectiva é potência, é uma inclinação, uma disposição ativa para a abertura ao fazer, ao criar. Nessa potencialidade a vida se abre para a acolhida da diversidade. Neste sentido, as diferenças ocupam um lugar privilegiado. Estas diferenças tendem a atingir a cada instante um ponto máximo de potência, porém não é apenas um ponto mais diverso, mas pontos culminantes de potência, que é vida, daí a fórmula por mim elaborada de que a vida é uma manifestação de um máximo de potência: Lebenshöhepunkte. Esta fórmula foi possível mediante os conceitos de Lebensfülle em Hegel e Nietzsche e de Macht-Höhepunkte  de Nietzsche.

Desse modo, a vida que, em si, é potência, atinge um máximo de potência a cada instante. Portanto, cada instante é uma plenitude, pois é o ser humano completo que está implicado e, em sua completude, está aberto ao criar, reinventando a vida e permitindo a ela que manifeste o máximo que pode oferecer. Tanto Hegel como Nietzsche pactuam desta compreensão da vida por serem tributários do pensamento de Heráclito, para quem tudo está em constante movimento.

 

IHU On-Line - Como a crítica de Nietzsche a Hegel perpassa sua investigação?

Adilson Felicio Feiler - A crítica de Hegel a Nietzsche perpassa a minha investigação pela compreensão que ambos têm do Cristianismo, com suas ênfases às dimensões de totalidade e de plenitude, para além do dualismo e do racionalismo positivista instaurado pelo iluminismo. Nietzsche critica o Hegel do sistema, e não o de seus textos da juventude, já que destes não teve conhecimento. Não adentro nas críticas de Hegel a Nietzsche por não tomar nenhum texto do seu período sistemático maduro. Mas o que faço é mostrar semelhanças, aproximações e distanciamentos delineados pelos textos da juventude de Hegel, o que não é igualar o pensamento de ambos. A crítica de Hegel e Nietzsche à moral cristã em nome da afirmação de um ethos cristão singular mostra o seu otimismo para com o Cristianismo. 

O Cristianismo tal como viveu seu fundador não é só possível, mas até necessário por ter reconciliado Deus ao mundo para além de uma institucionalização e ter concretizado o amor ao assumir a vida até seus pontos culminantes. Num mundo pós-niilista, o Cristianismo continua existindo na forma de atitude e disposição do coração e se concretiza como uma prática. É através deste Cristianismo, estabelecido numa prática, uma instituição para além de toda a instituição, que Hegel e Nietzsche consideram possível de se viver neste mundo moderno, pois promove a liberdade pela intensificação da potência que marca cada instante da vida: Lebenshöhepunkte. A cada instante, os valores que se depreendem da maximização da vida assumem uma forma representada por uma categoria diferente: na descrição fenomenológica como força, organicidade pulsional, Leistungsfähigkeit , na crítica lógica como diferença, Vielfältigkeit , e na atualização política como relacionalidade e reconhecimento social, Gegenseitigkeit .

É na reciprocidade que acontece nas relações sociais o lugar do reconhecimento de uma sempre nova Leistungsfähigkeit, que é intensificação da potência. De uma sempre nova Leistungsfähigkeit se constitui a Lebenshöhepunkte, um movimento de plenitude do qual demandam valores não deontológicos, com uma normatividade fraca, como práxis, aplicáveis às diferentes circunstâncias que permeiam o mundo em constantes transformações. Tais valores remontam àqueles do Cristianismo da prática de Jesus.■

 

Referências

HEGEL, G. W. F. Der Geist des Christentums und sein Schicksal (1798/1800): Der Geist des Judentums, Der Geist des Christentums. In: HEGEL, G. W. F. Frühe Schriften. Frankfurt: Suhrkamp Taschenbuch, 1994. Werk 1, p. 317-418. (Suhrkamp Taschenbuch Wissenschaft, 601).

______. O espírito do cristianismo e seu destino. Revista Opinião Filosófica, Porto Alegre, n. 2, v. 1, p. 190-191, jul./dez. 2010. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2011.

NIETZSCHE, F. W. Der Antichrist. In: COLLI, von Giorgio; MONTINARI, Mazzino (Herausgegeben). Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. München: Taschenbuch Verlag de Gruyter, 1999. Bd. 6. 

______. Nachgelassene fragmente: herbst 1887 bis märz 1888. In: COLLI, von Giorgio; MONTINARI, Mazzino (Herausgegeben). Achte Abteilung. Berlin: Walter de Gruyter, 1970. Bd. 2.

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