Edição 476 | 03 Novembro 2015

A fluidez artística entre as estruturas

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Leslie Chaves e João Vitor Santos

Alexandre Faria destaca a habilidade de Caetano e Gil em perambular entre estilos musicais e posições políticas que se polarizam

Caetano Veloso e Gilberto Gil surgem em um momento de “popularização e massificação no Brasil do projeto estético e político do modernismo literário”, destaca o professor de Literatura Alexandre Faria. Entretanto, entende que o sucesso dos dois pode ser atribuído à habilidade de não se aterem apenas a um estilo ou mesmo a uma posição política única. Ao mesmo tempo que absorviam novidades estéticas, não se colocavam como alternativos, respondendo também a demandas do mercado fonográfico. “Talvez o aspecto que melhor tenha garantido a notoriedade de Caetano e Gil nesse panorama tão rico tenha sido a habilidade que ambos tiveram para entrar e sair das estruturas. A Bossa Nova, o CPC/UNE, a Jovem Guarda/Ieieiê, forças que se polarizavam naquela segunda metade dos anos 1960, foram todas visitadas pelos parceiros baianos, que, no entanto, não se comprometeram com nenhuma delas”, destaca.

Faria reconhece que o trabalho dos artistas é banhado por questões políticas. O que não quer dizer que assumissem a postura dura de resistência. “As canções que envolvem o projeto tropicalista não são absolutamente canções de protesto, embora tenham um espírito de contestação, no plano mais amplo, dos valores e comportamentos da época. Não há, no entanto, uma apreensão coletiva, a ideia de povo, mas a reafirmação de um individualismo em liberdade, o que é, até hoje, potente e necessário frente às ondas de conservadorismo que avançam no Brasil”, explica o professor. Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Faria ainda destaca o domínio e trabalho empregado pelos artistas na composição e interpretação das letras. Eles concebem cada música de forma muitíssimo particular. “A variedade de gêneros musicais em que ambos investem é a prova de uma pesquisa detalhada sobre a melhor maneira de cantar uma letra ou de pôr letra numa canção”.

Alexandre Faria é professor de Literatura no Departamento de Letras – ICHL da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Graduado em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, é mestre em Literatura Brasileira na PUC-Rio. Publicou o livro Literatura de subtração: experiência urbana e literatura contemporânea (Rio de Janeiro: Papel Virtual, 1999), resultante de sua dissertação de mestrado. Em 1998, ingressou no doutorado em Letras, também na PUC-Rio. Desenvolveu pesquisa sobre a representação da identidade nacional na cultura brasileira contemporânea, que resultou na tese “O Brasil presente: construções-ruínas do imaginário nacional contemporâneo”.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual a importância de Caetano e Gil para a formação da cultura brasileira na segunda metade do século XX? Qual é o principal aspecto que lhes dá notoriedade nesse contexto?

Alexandre Faria - Talvez, a melhor maneira de pensar essa questão seja imaginar Caetano e Gil como pessoas certas na hora certa. Mas não foram os únicos no cenário cultural brasileiro dos anos 60, nem na esfera musical. Sem falar nos compositores da 2ª Geração da Bossa Nova, que também despontavam nos festivais, na própria onda tropicalista figuras como Tom Zé , Rogério Duprat , Rogério Duarte , Os mutantes , entre outros, foram importantes na constituição desse contexto a que nos referimos. É um contexto que, em linhas gerais, pode ser pensado como o momento de popularização e massificação no Brasil do projeto estético e político do modernismo literário.

Momento em que artistas ligados à canção popular, ao cinema, ao teatro, à televisão (incipiente naquele momento) desenvolvem suas linguagens a partir do profícuo diálogo com Oswald  e Mário de Andrade , com os romancistas de 30, com Drummond , João Cabral , Guimarães Rosa , Clarice Lispector  e outros autores modernistas. Se a Tropicália  radicalizou programaticamente a aposta na interseção entre as tradições arcaicas e a modernidade industrial na cultura brasileira, este aspecto estará presente, em outra medida, nas diversas produções não tropicalistas do período. Nesse sentido, talvez o aspecto que melhor tenha garantido a notoriedade de Caetano e Gil nesse panorama tão rico tenha sido a habilidade que ambos tiveram para entrar e sair das estruturas. A Bossa Nova, o CPC/UNE , a Jovem Guarda/Ieieiê , forças que se polarizavam naquela segunda metade dos anos 1960, foram todas visitadas pelos parceiros baianos, que, no entanto, não se comprometeram com nenhuma delas. Da mesma maneira que, ao longo da carreira, não se negaram às demandas do mercado fonográfico e cultural nem somente se renderam a ele.

 

IHU On-Line - Que história do Brasil é contada pelas letras das canções ao longo dos cinquenta anos de carreira de Caetano e Gil? Quais são as passagens mais marcantes da narrativa construída pelos artistas?

Alexandre Faria - O fato de estarem atuando sempre na tensão entre as demandas comerciais e os anseios de um projeto estético e político, pode-se dizer que os artistas (e nesse caso não só Caetano e Gil, mas todos os ligados a essa geração que tiveram e têm um papel preponderante junto ao público e ao mercado) constituem a si mesmos como personagens. Compositores de canções, parceiros de outros músicos afinados com seus projetos, e capazes de circular em diversas estruturas da indústria fonográfica, do mercado, do mainstream, tornam-se personagens que interpretam a si mesmos enquanto artistas, portadores de uma voz privilegiada que pode ser difundida como leitura e interpretação do Brasil.

Também nesse sentido, tornam-se herdeiros dos modernistas da primeira metade do século XX, momento em que o autor e o intelectual colocam sua obra em função da ideologia nacional. São artistas diametralmente diferentes dos que, no BRock anos 80, embalados pela onda Punk, escapam pelo do it yourself; ou dos que, como no RAP, a partir dos anos 90, começaram a representar “a voz da comunidade”, num movimento de evidente contorno étnico-social que valoriza a diferença em detrimento do projeto nacional que buscava alguma forma de unidade fundamentada na diversidade.

Caetano e Gil são autores de projetos de interpretação do Brasil, que estão explícitos em canções-manifesto como “Tropicália” (Veloso) e “Geleia Geral” (Gil e Torquato Neto), ou em “Haiti”(da dupla), que justamente por esse aspecto, apesar de constituir-se pela linguagem do RAP, difere do RAP típico, do que chamei “voz da comunidade”, por representar o preto/pobre como o outro e não como o eu. Quando o refrão afirma e nega que o Haiti é/não é aqui (citando outra canção de Caetano “o Havaí que seja aqui”), este “aqui” refere-se à nação brasileira. O eu que surge nas canções de Caetano e Gil, nas canções que manifestam esse projeto político, coloca-se como o cantor (crítico, é claro) do Brasil.

Enfim, Caetano e Gil criaram e representam personagens que são leitores do Brasil, como tantos outros de sua geração. Isso só foi possível graças ao legado modernista de que são herdeiros diretos. O que se coloca hoje em dia é se isso ainda é possível para um artista.

 

IHU On-Line - De que modo o senhor avalia as letras das canções compostas por Gil e Caetano durante o período ditatorial no Brasil, em que os artistas se posicionavam politicamente contra esse sistema e eram constantemente vigiados pela censura?

Alexandre Faria - Caetano e Gil praticamente não fizeram a canção de protesto típica dos anos 60/70. É claro que haverá uma ou outra exceção, das quais me lembro agora de “Roda” (Gil e João Augusto). Mas as canções que envolvem o projeto tropicalista não são absolutamente canções de protesto, embora tenham um espírito de contestação, no plano mais amplo, dos valores e comportamentos da época. Não há, no entanto, uma apreensão coletiva, a ideia de povo, mas a reafirmação de um individualismo em liberdade, o que é, até hoje, potente e necessário frente às ondas de conservadorismo que avançam no Brasil. 

Quando a personagem da canção “Alegria, alegria” (Caetano) diz “Eu vou... sem livros e sem fuzil”, demarca exatamente uma posição de quem não se alinha nem aos militares no poder (fuzil) nem ao CPC/UNE (livros). Outros gestos, demarcados na canção, como “eu tomo uma Coca-Cola” são arredios ao projeto anti-imperialista de esquerda. Caetano Veloso fará uma canção de protesto mais típica muito tardiamente, nos anos 1980, que é “Podres poderes”. Há que se frisar que Gil e Caetano, como eu disse na questão anterior, nunca deixaram de dialogar com as estratégias e as convenções composicionais da época. Há, por exemplo, uma referência a Marighella , num grito dado por Gil, na gravação feita por ambos da canção “Alfômega” (Gil), do Disco Branco (1969) de Veloso. Mas isso fica tão subliminar que quase nunca é mencionado.

Por outro lado, a maneira como os valores simbólicos são apropriados pela cultura ao longo do tempo pode relativizar essas leituras. Quando “Alegria, alegria” se tornou tema de abertura de uma minissérie da Globo sobre os anos de chumbo (“Anos Rebeldes”, de Gilberto Braga), foi equivocadamente assimilada como uma canção de protesto da época. Da mesma forma, nada me assustará se “Pra não dizer que não falei das flores” (Vandré) venha a ser usada numa campanha publicitária do alistamento militar. Lida longe do calor da hora, a canção de Vandré é uma convocação para um alinhamento à esquerda.

O tempo deixa claro que a alternativa tropicalista foi muito mais eficiente na articulação entre política e estética, na compreensão profunda das contradições que ainda assombram a sociedade brasileira. A compreensão do Brasil por esse viés torna claro por que ainda hoje a classe média/alta ocupa a Avenida Paulista para pedir golpe, conclamar a volta dos militares e manifestar sem “silêncio sorridente” o ódio aos pretos, pobres, nordestinos etc. É significativo como, nesse momento, a figura de Marighella reapareça no cancioneiro de Caetano (“Um comunista”, Abraçaço). Nessa canção fica claro o elogio da posição dissidente do líder comunista em relação ao projeto autoritário e totalitarista do partido.

 

IHU On-Line - De que modo o senhor avalia a poesia nas canções de Gil e Caetano? Quais características você destacaria como as mais marcantes no trabalho dos artistas? Por quê? 

Alexandre Faria - As melhores escolas do estudo da canção desaconselham a ler a letra dissociada dos demais elementos constituintes do todo, a melodia, o ritmo, a harmonia, o desempenho vocal e (nas apresentações ao vivo) corporal do artista. Todos esses elementos são significativos para a leitura da canção. Por isso, falar de uma poesia, isoladamente, deixaria a desejar em se tratando da leitura de suas canções. Mas considerando a letra que fazem, é tentador, para o crítico   e muitos o fazem   deslocá-los para o lugar do poeta. Não que seja mais importante, ou melhor, ser poeta do que letrista. São trabalhos diferentes. Mas o trato que Caetano e Gil dão à letra demonstra, quase sempre, uma habilidade que ultrapassa, e às vezes iguala-se, a de letristas que são unanimemente considerados ótimos. 

Isso é um diferencial da dupla que talvez só encontre equivalência em alguns outros nomes, todos mais ou menos da mesma geração, dentre os quais é obrigatório citar Chico Buarque . Outros letristas à altura desses nomes destacam-se como apenas letristas, mas não são intérpretes da própria canção, e aí temos um time muito maior. Não vou me lembrar de todos os nomes agora, mas são gênios como Aldir Blanc , Paulo Cesar Pinheiro , Fausto Nilo , Fernando Brant  etc.

 

IHU On-Line - De que forma letra e música se relacionam nas canções de Caetano e Gil? Que papéis desempenham na construção simbólica transmitida nas músicas? O que representou para o cenário cultural brasileiro as experimentações estéticas? 

Alexandre Faria - É evidente o trabalho da articulação entre letra e música na produção de Caetano e Gil. A variedade de gêneros musicais em que ambos investem é a prova de uma pesquisa detalhada sobre a melhor maneira de cantar uma letra ou de pôr letra numa canção. Ao mesmo tempo, o ecletismo é marca do que poderíamos chamar de registro poético-musical dos artistas. Usamos aqui o termo registro no mesmo sentido em que se pode falar em registro linguístico, diferentes níveis de acessibilidade a um código. É assim que suas canções variam desde elaborações bastante acessíveis (e isso não quer dizer simples ou fáceis ou pobres, como alguns costumam entender), em diálogo com profundas tradições populares brasileiras, como o samba e o baião, até elaborações mais voluntariamente hibridizadas (porque aquelas já são híbridas em sua origem), em momentos de maior ou menor experimentação.

É claro que o custo de acessibilidade das canções mais experimentais é alto e pode representar “fracassos” comerciais, como foi o caso do disco Araçá Azul, de Veloso. Outro aspecto é que o diálogo com musicalidades populares muitas vezes se estabelece através de letras que se tornam profundamente reflexivas sobre aquele gênero que está sendo executado. Acontece, por exemplo, em “Desde que o samba é samba”, “Miami maculelê”, ou “Funk melódico”.

 

IHU On-Line - Que canções dos dois artistas você destacaria como as mais representativas na trajetória dos 50 anos de carreira de ambos? Por quê?

Alexandre Faria - É praticamente impossível eleger algumas canções, de dois repertórios tão amplos, sem isso conter um aspecto absolutamente idiossincrático. As únicas menções que já podem ser historicamente garantidas são as canções-manifesto do movimento tropicalista, “Tropicália” e “Geleia geral”; as que os lançaram no festival de 1967, “Alegria, alegria” e “Domingo no parque”; e a antológica gravação ao vivo de “Proibido proibir”, no Festival Internacional da Canção de 1968, no Teatro Universidade Católica - TUCA, da Pontifícia Universidade Católica - PUC-SP, principalmente pelo conteúdo do discurso furioso de Caetano. Com exceção desse título, qualquer citação de canções parecerá pessoal e aleatória. Eu mesmo teria diversas playlists de ambos e dos dois juntos para compartilhar.

Cumpre ressaltar, ainda, que embora estejam comemorando os 50 anos de carreira juntos (como o fizeram pelos 25 anos, em 1993, com Tropicália 2) e sejam os dois nomes mais lembrados quando se fala de Tropicália, estamos refletindo sobre dois artistas bastante diferentes entre si. Compartilham uma amizade pública mais do que opções artísticas e estéticas que cada um evidencia em sua obra. O sintoma disso é que só em alguns momentos muito pontuais assinaram parcerias. Como a entrevista é feita sobre os dois juntos, talvez fosse o caso de lembrar aqui suas parcerias, que não deve chegar no total a 20 títulos, dos quais eu destaco “Panis et circenses”, “Divino maravilhoso”, “Batmacumba”, “Cinema novo”, “Haiti”, além da recentíssima “As Camélias do Quilombo do Leblon”.■

 

Leia mais...

- A palavra escrita, falada e cantada como realizações da arte literária. Entrevista com Alexandre Faria, publicada na revista IHU On-Line, nº 380, de 14-11-2011.

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