Edição 206 | 27 Novembro 2006

“Arendt. O otimismo pensando a dignidade da política”

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IHU Online

“O indivíduo que não pensa e se torna cúmplice dos crimes: essa é a banalidade do mal diagnosticada por Hannah Arendt como a conseqüência dessa tradição filosófica que quase mumificou a estrutura do ser e nos marginalizou. Por isso, Arendt vai iniciar o projeto sobre a política no contexto da diferença ontológica de Heidegger. Política faz a diferença, política cria a ontologia, a possibilidade do Novo. Arendt ainda tem o otimismo pensando a dignidade da política”, disse o filósofo iugoslavo, radicado no Brasil, Miroslav Milovic, em entrevista exclusiva, concedida por e-mail à IHU On-Line.

Analisando a proximidade entre o pensamento de Arendt e o de Chantal Mouffe, enfatizou: “A condição humana na Modernidade, para Arendt e para Mouffe, é mais individual e econômica do que política e coletiva. Por isso, a Modernidade chega só até a uma democracia representativa e não até a uma democracia participativa”.

Milovic leciona no Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). No XII Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF, realizado em Salvador, Bahia, apresentou a comunicação A desconstrução da política – Hannah Arendt e Chantal Mouffe, que inspirou a entrevista a seguir. Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de Belgrado, Iugoslávia, é doutor em Filosofia pela Universidade de Frankfurt, onde defendeu a tese Subjetividade e comunicação, orientada por  Karl Otto Apel. Na Universidade de Paris IV, Sorbonne, França, cursou outro doutorado em Filosofia, com a tese Razão teórica e razão prática e suas relações com a comunidade ética e política. É pós-doutor pela Universidade de Ioannina, Grécia. De suas obras publicadas, mencionamos O argumento reflexivo. Belgrado: Sociedade Filosófica da Sérvia, 1989; Ética e discurso. Belgrado: Sociedade Filosófica da Sérvia, 1992 e Comunidade da Diferença. Rio de Janeiro, Ijuí: Relume Dumará, Unijuí, 2004.

IHU On-Line - É possível desconstruir e refundar a política, sobretudo a democracia, com base no pensamento de Hannah Arendt? Como e por quê?

Miroslav Milovic
- Hannah Arendt acredita que a separação platônica entre o ser e a aparência marca um passo histórico não só para a vida dos gregos, mas para todo o caminho posterior da civilização. A desvalorização da aparência e a afirmação do ser são os aspectos da reviravolta na vida dos gregos e do Ocidente europeu. Com isso, tem início uma específica tirania da razão e dos padrões na nossa vida. Isso é o que Nietzsche  elabora como o começo do niilismo na Europa. A estrutura já determinada, estática, entre o ser e a aparência, tem conseqüências catastróficas para o próprio pensamento. Ele se torna mera subsunção das aparências às formas superiores do ser. Nesse mundo tão ordenado, quase não temos que pensar mais. O pensamento não muda a estrutura dominante do ser. Essa inabilidade do pensamento termina, no último momento, nas catástrofes políticas do nosso século. Tantos crimes, mas quase sem culpados. O indivíduo que não pensa e se torna cúmplice dos crimes: essa é a banalidade do mal diagnosticada por Hannah Arendt como a conseqüência dessa tradição filosófica que quase mumificou a estrutura do ser e nos marginalizou. Por isso, Arendt vai iniciar o projeto sobre a política no contexto da diferença ontológica de Heidegger. Política faz a diferença, política cria a ontologia, a possibilidade do Novo. Arendt ainda tem o otimismo pensando a dignidade da política.

IHU On-Line - Em que medida essa descontrução metafísica, que inclui a política, conforme sugere Chantal Mouffe, oferece a possibilidade de se pensar uma democracia radical? Qual é a conexão entre o pensamento de Arendt com o de Mouffe?

Miroslav Milovic
- Afirmar a política e afirmá-la para além da metafísica são os pontos que unem Hannah Arendt e Chantal Mouffe . No entanto, a inspiração da Chantal Mouffe é diferente, posto que esta não vem da filosofia heideggeriana, mas primeiro, da experiência psicanalítica, em que o sujeito é sempre falta, sempre uma condição conflitiva e segundo, da idéia derridiana da diferença. A diagnose da Modernidade, entre as duas, é semelhante também. Mouffe fala sobre a perspectiva econômica do liberalismo moderno em que a política desaparece. A despolitização é a diagnose que ela, com Arendt, faz sobre a Modernidade. A condição humana na Modernidade, para Arendt e para Mouffe, é mais individual e econômica do que política e coletiva. Por isso, a Modernidade chega só até a uma democracia representativa e não até a uma democracia participativa. O mundo liberal não é necessariamente ligado à democracia. Eu acho que as diferenças começam quando tratam o conceito do pluralismo na política. No livro sobre o paradoxo democrático, Mouffe diz que o pluralismo em Arendt fica sem antagonismo, ou que o agonismo político fica sem antagonismo. Arendt procura as soluções e não uma abertura para o caráter aberto e conflitivo da política que Chantal Mouffe quer defender.

IHU On-Line - O que podemos entender exatamente por democracia radical? E por que ela seria uma impossibilidade, conforme o senhor cita em sua comunicação da Anpof, A desconstrução da política - Hannah Arendt e Chantal Mouffe, apresentada em 25-10-2006, em Salvador, Bahia?

Miroslav Milovic
- Chantal Mouffe quer elaborar uma concepção antifundamentalista da política. A inspiração é, como mencionei, por um lado derridiana, pensando o conceito da diferença, e por outro, psicanalítica, pensando o caráter conflitivo da natureza humana. Mouffe inclusive fala sobre os perigos de uma teoria que procura as soluções consensuais e assim marginaliza os verdadeiros conflitos. É provável que a desconstrução das políticas da identidade crie a possibilidade da democracia. A filosofia e a cultura quase sempre instauraram a ausência no ser humano, que deveria ser superada na perspectiva do tempo linear; e esse tempo é o tempo do cristianismo, do capitalismo, do hegelianismo. Desconstruindo a metafísica da presença, Derrida  articula o vazio que nunca deve ser preenchido. Preencher o vazio significaria o estabelecimento da nova identidade. Criticar a Identidade, afirmando a diferença significa que o lugar da política e do direito tem que ficar vazio, para não criar as novas formas da ideologia. Ou, com as palavras de Claude Lefort , “a soberania popular junta-se à imagem de um lugar vazio, impossível de ser ocupado, de tal modo que os que exercem a autoridade pública não poderiam pretender se apropriar dela” (Lefort, C., A invenção democrática. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 76). Neste vazio político, Chantal Mouffe entende o sentido do paradoxo democrático. A democracia cria o paradoxo, porque a realização dela seria já a sua desintegração.

IHU On-Line - No campo da ética, em específico, como o pensamento arendtiano possibilita uma revitalização da democracia?

Miroslav Milovic
- Para Heidegger, a pergunta sobre os outros é apenas uma promessa - como dirá Habermas  - que ele nunca vai cumprir. A filosofia heideggeriana não é a filosofia dos Outros. Um específico egoísmo, talvez o egoísmo europeu, domina sua filosofia. Assim a filosofia de Heidegger se transforma numa específica geopolítica. Husserl  também, falando sobre a crise atual da humanidade, aponta a Europa como a única alternativa. Mas o que dizer sobre a tradição européia e essa impossibilidade filosófica de incluir a questão sobre o outro? O que dizer sobre esse específico autismo europeu? O conceito da Europa, por exemplo, iniciou-se e fortaleceu-se - como algumas interpretações históricas estão sugerindo - com as Cruzadas, dentro dessa identidade militar e não dentro da pergunta sobre os outros e sobre a diferença. Por causa disso, pode ser que o atual discurso sobre a grandeza européia seja somente a tentativa de esconder a sua mediocridade. No projeto arendtiano, onde não existe uma identidade originária da política, nós não somos os seres políticos por natureza. A política pode ou não acontecer entre nós. Contrária às dificuldades husserlianas e heideggerianas sobre os outros, a ação politica em Arendt é sempre uma interação. Os outros são pressupostos e não só conseqüências de uma reflexão solitária. Já em livro sobre Santo Agostinho , Arendt libera-se da ontologia heideggeriana ligada à morte e procura uma afirmação dos outros, dos próximos. Claro, Arendt sabe que Santo Agostinho não liga a liberdade à politica. A liberdade para ele não é tanto um projeto político. Assim a Modernidade herda essa dimensão não-politica da liberdade advinda do cristianismo.

IHU On-Line - A destituição do humano é uma das formas da banalidade do mal? Que exemplos dessa realidade poderiam ser dados sobre os tempos em que vivemos?

Miroslav Milovic
- O mundo moderno, desencantado, não fala mais a linguagem da filosofia, como pensavam os gregos, tampouco fala a linguagem divina, como pensavam os religiosos, mas fala a linguagem da ciência e da matemática. Pensando assim, Descartes  reifica o mundo no sentido epistemológico, o que traz conseqüências dramáticas. Husserl critica com toda a força essa reificação na qual a vida perdeu o papel constitutivo. Hoje a clonagem científica é só mais um exemplo de situação na qual a reprodução da vida é ligada à ciência e não mais à própria vida. A vida, ou melhor, o concreto, o particular, estão com a Modernidade, entrando num caminho sem saída, e no último momento serão superados no pensamento de Hegel . O mundo moderno não é o mundo para os indivíduos.

IHU On-Line - Arendt sempre demonstrou enorme desconfiança com os sistemas de pensamento, que para ela se sustentavam em uma simplificação inaceitável da realidade. O espaço político no século XXI também precisa ser pensado com relação a essa multiplicidade do Grund, como o pensamento pós-moderno sugere?

Miroslav Milovic
- É compreensível, por exemplo, a desconfiança que Derrida tem sobre Heidegger. A profunda filosofia heideggeriana não fez dele um democrata. Assim, parece que o projeto da confrontação com a tradição e a Modernidade, o esboço da destruição da metafísica fica ainda aberto. A subjetividade e outros lugares privilegiados do pensamento tradicional têm de ser desconstruídos. A metafísica que pensa a identidade - ou a metafísica da presença - tem que ser superada pelo pensamento da diferença. A hermenêutica de Heidegger ainda afirma os lugares privilegiados para pensar a autenticidade do ser. Assim, ela ainda não é a diferença verdadeira, a diferença que produz a diferença. A diferença de Heidegger parece mais uma diferença reificada, determinando - poderíamos dizer assim - os lugares para a aparição do autêntico.

IHU On-Line - Que aspectos do pensamento político de Arendt oferecem inovações na interpretação dos grandes clássicos da filosofia, como Marx, Hegel e Heidegger?

Miroslav Milovic -
A Modernidade vem, assim parece, atrás do pensamento grego. A Modernidade afirma a vida na política, a vida biológica, quer dizer, as condições da sobrevivência, do labor e do trabalho. Sobreviver – esse foi o projeto moderno anunciado em Hobbes . Para os gregos, podemos nos lembrar, o projeto político não era sobreviver, mas viver bem, e, quem sabe, aproximar-nos do mundo eterno, do próprio divino. A Modernidade, aproximando o privado e a natureza à política, anuncia uma especifica despolitização. O mundo moderno é o mundo sem a política, o mundo da economia e das condições da sobrevivência. Nós somos testemunhas dessa herança. Arendt fala contra Marx . Hoje, para sobreviver, agora no contexto do terrorismo, temos que criar as novas formas da autoridade política. Sobreviver ainda é um projeto político, ou melhor dizendo, em Arendt, é um projeto da negação da política. Estamos muito distantes do projeto grego que tentou unir a política com a liberdade e não com a natureza. Hegel liga a política com a liberdade, mas dentro de um projeto metafísico. Por isso, Arendt quer seguir o projeto heideggeriano da destruição da metafísica, articulando o caminho político dessa destruição. Incluir a interação neste projeto da diferença é a contribuição importante da Hannah Arendt.

 

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