Edição 475 | 19 Outubro 2015

Hölderlin e Nietzsche e o trágico como denominador comum

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Márcia Junges e Ricardo Machado

“Poeta preferido” de Nietzsche, Hölderlin influencia a redação de Assim falou Zaratustra de modo decisivo. Ambos os Gênios, o Filosófico e o Poético, nutriam apreço especial por Sófocles, revela Clademir Araldi

 “Hölderlin e Nietzsche são grandes conhecedores das tragédias e dos tragediógrafos gregos. O Gênio Poético do primeiro se expressou nas traduções das tragédias de Sófocles, na retomada de temas ‘trágicos’ em seus romances, elegias e poesias. No Gênio Filosófico de Nietzsche, a preocupação maior reside em intuir/elaborar o nascimento da tragédia, desde o excesso dionisíaco”. A análise é do Prof. Dr. Clademir Araldi, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line.  E acrescenta: “É significativa a alta estima que ambos os Gênios, o Filosófico e o Poético, nutriam por Sófocles; é revelador que o último, na época de O nascimento da tragédia, passe a valorizar Ésquilo como o poeta trágico superior”.

Acometidos pela loucura em diferentes contextos, o poeta e o filósofo têm no trágico um denominador comum: “Os longos anos que Hölderlin passou recluso na torre às margens do Neckar são trágicos, mas o silêncio do ‘infeliz poeta’ não significou o enterro de todos os seus pensamentos no ‘túmulo de uma loucura de muitos anos’. Brilharam, em meio à loucura, pensamentos e imagens tão belos, em forma de poesia. E o Hipérion ficou durante muitos desses anos de loucura sobre a mesa de Hölderlin, como se nele ele estivesse em casa, como se ele tivesse lá reencontrado sua pátria mítica”. De acordo com Clademir, “a loucura de Nietzsche é ‘trágica’, à medida que foi ocasionada por terríveis doenças, que o acometeram desde a adolescência. Nos anos de loucura, a doença neurodegenerativa do filósofo solitário apagou logo a vida de sua mente e, aos poucos, a de seu frágil corpo”.

Clademir Araldi é graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição, com aperfeiçoamento em Filosofia pela Universidade Técnica de Berlim, Alemanha. Cursou mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, com a tese O niilismo na moral. Investigação sobre a crítica da moral em Nietzsche, e doutorado na Universidade de São Paulo - USP, com a tese A radicalização do niilismo na obra de Nietzsche: acerca da posição de um novo sentido de criação e de aniquilamento. É pós-doutor pela Universidade Técnica de Berlim e autor de Niilismo, criação, aniquilamento. Nietzsche e a filosofia dos extremos (São Paulo: Discurso Editorial, 2004). Atualmente, leciona na Universidade Federal de Pelotas – UFPel, onde é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que sentido Hölderlin  é um dos pensadores que ajuda a construir uma nova visão do moderno, a partir da arte?

Clademir Araldi - Antes de mais nada, é preciso recordar que Hölderlin e os românticos alemães viveram, pensaram e escreveram sob o impacto da Revolução Francesa.  Em contraposição aos movimentos políticos e sociais da época, os Idealistas Românticos do período pós-revolucionário buscaram uma estetização total da existência e do mundo, a partir do artista criador. Nesse sentido, o Romantismo configura uma ruptura radical no mundo moderno. Somente a arte poderia levar a cabo o projeto de revolucionar todas as estruturas do mundo moderno, ao colocar o sujeito no centro da criação e transformação do mundo. A literatura e a estética românticas do final do século XVIII e do início do século XIX brotam da “embriaguez da subjetividade”, através do gênio criador, solitário e incompreendido. Essa “embriaguez” repercute ainda nas criações filosóficas de Nietzsche,  especialmente em O nascimento da tragédia (São Paulo: Companhia das Letras, 1992) e, de um modo mais complexo, em Assim falou Zaratustra (São Paulo: Companhia das Letras, 2011).

É decisiva, nesse sentido, a conexão que os românticos estabelecem entre o belo, o feio, o sublime e os tempos modernos, na aurora do Romantismo. A superação da crise da modernidade ocorreria por meio da ‘nova mitologia’, de um ‘messianismo dionisíaco’, que transparece nitidamente no poema “Brod und Wein”, de Hölderlin. Os projetos estéticos dos românticos possuem uma complexa relação com a temporalidade moderna, como podemos perceber não só em Hölderlin, mas também nos irmãos Schlegel,  em Schelling,  Tieck,  Novalis,  Wackenroder,  Kleist,  E.T.A. Hoffmann ... Há, sem dúvida, uma desproporção entre a consciência da crise moderna (a rebeldia contra os valores estabelecidos na cultura, na sociedade e na moral) e os ímpetos criadores dos artistas e literários do Primeiro Romantismo, dentre os quais Hölderlin sobressai como um astro solitário.

IHU On-Line - Qual é o contexto artístico e filosófico dentro do qual as criações literárias de Hölderlin surgem?

Clademir Araldi - No final do século XVIII e no limiar do século XIX, os pensadores e artistas românticos tinham consciência de que viviam em um tempo de transição, com a experiência de aceleração dos acontecimentos. No prefácio da Fenomenologia do espírito (Petrópolis: Vozes, 2003), Hegel  evoca o moderno como transição, ao mesmo tempo em que tenta abandonar o Romantismo, superando-o. A modernidade seria marcada por crises, abalos de formas de vida tradicionais, e pelo pressentimento de novas formas de criação. Embora não haja uma unidade orgânica nos projetos estéticos do Romantismo — nem no início do movimento, nem nos seus desdobramentos tardios —, podemos perceber um traço comum: a salvação ou fuga da modernidade se dá desde o ponto de vista da subjetividade criadora do gênio, do indivíduo que se eleva das tendências temporais de dissolução. A ‘nova mitologia’, anunciada no Programa Sistemático (1796) e elaborada por F. Schlegel nos anos seguintes, provém de um núcleo a-histórico de criação, mas se efetiva no tempo histórico, no espírito comunitário romântico. Esse panfleto, encontrado em 1917 por F. Rosenzweig  e denominado de “O mais antigo Programa Sistemático do Idealismo Alemão” é emblemático, tanto em relação à sensibilidade quanto ao pensamento romântico. Sua autoria é incerta: para alguns o autor foi Schelling, para outros, Hegel (como defende O. Pöggeler,  p. ex.) ou Hölderlin. Eram três jovens entusiasmados, colegas no Instituto Teológico de Tübingen. 

Mito e ritual

A letra do manuscrito é de Hegel, mas o que mais importa, segundo R. R. Torres Filho, é “que se trata de um desses escritos cuja autoria, por definição, é coletiva ou nenhuma — sensíveis a tendências e ideias que estão “no ar”, informuladas (...)”[Pensadores. F.von Schelling. Obras escolhidas. 3. ed., São Paulo: Nova Cultural, 1989). Certamente, nesse manuscrito estão presentes ideias centrais do movimento romântico, como a concepção organicista de natureza, o novo vínculo entre beleza e verdade e a nova mitologia, ideias essas presentes na obra de Hölderlin, no Hipérion, principalmente. E também numa de suas mais conhecidas elegias, Brod und Wein (Pão e vinho), escrita por volta de 1800, em que o poeta-pensador ensaia unir o Oriente com o Ocidente, o mito de Dioniso com o de Cristo.

Os símbolos dionisíacos, como a ceia da comunidade dos iniciados (tal como era praticada em Roma pelos iniciados nos Mistérios dionisíacos) possui muitas semelhanças com o cristianismo, como Manfred Frank  mostrou em sua obra Der kommende Gott (1982). É preciso salientar, sobretudo, a maestria da prosa e da poesia de Hölderlin em elaborar a união do mito e dos rituais de Dioniso: no “teatro sagrado” da tragédia grega, Dioniso juntaria mito e ritual. O poeta alemão, no entanto, busca ‘ressuscitar’ o espírito da comunidade. Através do cenáculo romântico, seria possível superar a separação entre os indivíduos modernos, distantes uns dos outros na noite do “afastamento dos deuses”.

IHU On-Line - Qual é a importância da poesia de Hölderlin na filosofia de Nietzsche, sobretudo em seus escritos juvenis?

Clademir Araldi - O impacto da poesia e da prosa de Hölderlin no pensamento e na vida de Nietzsche está bem condensado na “Carta a meu amigo, na qual lhe recomendo a leitura de meu poeta preferido”, de 19 de outubro de 1861. Nessa carta a um amigo imaginário, escrita por um adolescente ginasial de 17 anos, estão contidas as fortes impressões de suas leituras de Hölderlin, que cito em quase sua totalidade:

“Esses versos (...) fazem fluir o ânimo mais puro e brando; esses versos, em sua naturalidade e originalidade obscurecem a arte e a elegância formal de Platão;  esses versos, ora agitando-se no mais sublime ímpeto da ode, ora perdendo-se nos mais delicados sonidos da melancolia (...). Assim sendo, não conheces o Empédocles, este fragmento dramático tão pleno de significação, em cujos tons melancólicos ressoa o futuro do infeliz poeta, o túmulo de uma loucura de muitos anos. Entretanto, esse poema não ressoa, como você pensa, em palavras obscuras, mas na mais pura linguagem sofocliana e numa plenitude infinita de pensamentos profundos. Tu não conheces também o Hipérion, que no movimento harmonioso de sua prosa, na sublimidade e beleza das formas aí emergentes, produzem em mim uma impressão semelhante ao bater de ondas do mar agitado. De fato, essa prosa é música, tons brandos que se fundem, interrompidos por dissonâncias dolorosas, esfacelando-se, por fim, em sombrias e secretas canções sepulcrais. — O que foi dito, no entanto, diz respeito somente à forma exterior; permita-me agora acrescentar ainda algumas palavras acerca da plenitude de pensamentos em Hölderlin, que tu pareces considerar como confusão e obscuridade. Se tua censura atinge realmente algumas poesias da época de sua loucura, e mesmo nas anteriores a profundidade do pensamento às vezes se debate com o irromper da noite da loucura, então a maior parte delas são de longe pérolas puras e preciosas de nossa arte poética em geral. Aponto somente algumas poesias, como “Retorno à pátria” (Rückkehr in die Heimath), “A torrente encadeada” (der gefesselte Strom), “Crepúsculo” (Sonnenuntergang), “O cantor cego” (der blinde Sänger), e te apresento mesmo as últimas estrofes da “Fantasia noturna” (Abendphantasie), em que se expressa a mais profunda melancolia e aspiração por repouso.

— No céu do entardecer desabrocha uma primavera;

Incontáveis se abrem as rosas, e sereno parece

O mundo dourado; oh! Levem-me para lá,

Purpúreas nuvens! E possam lá em cima


Em luz e vento diluir em mim amor e dor! — 

Pois, como que afugentado de um pedido doido, foge

O encanto. Fica escuro, e solitário

Sob o céu, como sempre, estou eu.


Venha agora, sono suave! Demasiado deseja

O coração, pois finalmente, juventude, incandesces!

Tu, inquieta, sonhadora!

Pacífica e serena é então minha idade. 

 

Em outras poesias, como especialmente na “Recordação” (Andenken) e na “Andança” (Wanderung), o poeta eleva-nos para a suprema idealidade, e nós sentimos com ele, que esse era seu elemento pátrio. Por fim, é digna de menção uma série inteira de poesias, nas quais ele diz verdades amargas aos alemães, que são com frequência muito bem fundadas. Também no Hipérion ele lança agudas e cortantes palavras contra o “barbarismo” alemão. Essa repulsa à realidade, contudo, está unida ao mais elevado amor à pátria, que Hölderlin possui de fato em alto grau. Mas ele odiava no alemão o mero especialista, o filisteu.

Na tragédia inacabada Empédocles, o poeta nos desdobra sua natureza própria. A morte de Empédocles é uma morte de orgulho divino, de desprezo pelos homens, de saciedade da terra e panteísmo. Fiquei comovido sempre por inteiro ao ler a obra toda; existe uma elevação divina nesse Empédocles. No Hipérion, por sua vez, mesmo que ele pareça logo estar banhado por um brilho transfigurador, tudo é insatisfeito e incompleto. As figuras, que o poeta nos evoca, são “figuras rarefeitas, que, em sons nos suscitam nostalgia, ressoam em nós, nos encantam, mas também despertam uma ânsia insatisfeita”. Em nenhum outro lugar se revela a nostalgia pela Grécia em sonidos mais puros; em nenhum outro lugar se distingue com mais clareza a afinidade anímica de Hölderlin com Schiller e com Hegel, seu amigo de confiança. (...) .

Apropriação indevida

Infelizmente, como bem provou Thomas Brobjer,  essa carta é uma apropriação (indevida, um plágio) da obra de William Neumann: Moderne Klassiker. Deutsche Literaturgeschichte der neueren Zeit in Biographen, Kritiken und Proben: Friedrich Hölderlin (cf. Brobjer, Th. Nietzsche-Studien 30, 2001. Berlim: De Gruyter, p. 397-412). Bem, até mesmo os gênios filosóficos cometem erros e precisam de esforço e tempo para amadurecer! Mesmo que Nietzsche não cite a fonte, Neumann foi importante para ele para entrar na profusão do mundo de Hölderlin, um dos autores que constrói o antagonismo entre Apolo e Dioniso, entre as artes plásticas e a música. Em O nascimento da tragédia, o jovem Nietzsche também procura fundir as artes plásticas com a música dionisíaca, na tragédia grega. Seria a ‘união fraternal’ de Apolo e Dioniso, buscada em vários momentos da prosa e da poesia de Hölderlin. Entre 1869 e 1871 há vários esboços do Filósofo Solitário para prosseguir a tragédia inacabada de Hölderlin: “Empedokles”, “Der Tod des Empedokles”, em três ou em cinco atos. Cumpriu-se a triste sina do Poeta que enlouqueceu: os projetos de Nietzsche ficam inacabados! 

Influência

Por volta de 1874, Nietzsche adquiriu as “Obras Escolhidas” de Hölderlin (ed. por C. T. Schwab). O que mais surpreende é que a influência maior do seu “poeta preferido” se fará sentir em Assim falou Zaratustra. Depois de escrever o Zaratustra I, no início de 1883, Nietzsche retoma os planos para retomar a tragédia “Empedokles”. Só que desta vez é Zaratustra o protagonista. A maior parte das versões do verão — outono de 1883 até julho de 1885 — é construída em quatro ou cinco atos. No último ato aparece a “Festa dos mortos”, ou “A morte de Zaratustra”. Toda boa tragédia culmina com a morte do herói. Por que Nietzsche não escreveu o Zaratustra V? Isso dá o que pensar... De todo modo, nos quatro livros escritos (o IV não foi autorizado para publicação por seu autor), muitas imagens, símbolos e metáforas de Hölderlin são apropriados pelo Gênio Filosófico. Elas giram em torno da tragédia, do apolíneo e do dionisíaco, por exemplo: o raio, o nascer e o pôr-do-sol, o cálice da plenitude, o fogo devorador, o outono, a destruição criadora, a necessidade da morte para a vida, o fruto maduro, a meia-noite, o meio-dia, instante e eternidade.

 

IHU On-Line - Que aproximações podem ser feitas entre as concepções de trágico de Hölderlin e as de Nietzsche? Nesse sentido, que aproximações podem ser feitas entre os 36 anos em que Hölderlin viveu e escreveu recluso em sua torre, à beira do Neckar, e os 10 anos em que Nietzsche viveu após seu colapso?

Clademir Araldi - Hölderlin e Nietzsche são grandes conhecedores das tragédias e dos tragediógrafos gregos. O Gênio Poético do primeiro se expressou nas traduções das tragédias de Sófocles,  na retomada de temas ‘trágicos’ em seus romances, elegias e poesias. No Gênio Filosófico de Nietzsche, a preocupação maior reside em intuir/elaborar o nascimento da tragédia, desde o excesso dionisíaco. A matriz da tragédia estaria um tanto longínqua, na sabedoria pessimista dos helenos, nos mitos trágicos e no dionisismo oriental; mas é “o gênio recém-nascido da música dionisíaca” quem trouxe à luz a tragédia grega. Hölderlin, mais comedido nesse ponto, vê na fraqueza, no encanto das criaturas mortais, a natureza originária da tragédia. Mas ambos se abismam em seus paradoxos e antagonismos. Como repercutem o hino ao nada, a natureza solar, o percurso pela terra incognita de Hipérion, nos escritos de Nietzsche! É significativa a alta estima que ambos os Gênios, o Filosófico e o Poético, nutriam por Sófocles; é revelador que o último, na época de O nascimento da tragédia, passe a valorizar Ésquilo como o poeta trágico superior.

Roberto Machado,  em sua obra O nascimento do trágico (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006), defende, com razão, que o trágico é uma invenção romântica e moderna, de Schiller até Nietzsche. Temos, então, que distinguir entre a Tragédia, enquanto gênero dramático específico, e o trágico, como pathos moderno em relação à existência. Tragikon, como mostrou Glenn Most,  é quase sempre aplicado à literatura, em sentido pejorativo; quando é aplicado a estados psicológicos de pessoas, significa “arrogante, presunçoso”. Talvez Nietzsche e Hölderlin não tenham diferenciado a “visão trágica do mundo” do gênero dramático “tragédia”, ao tratar, por exemplo, dos efeitos catárticos que uma verdadeira tragédia suscita. Apesar disso, é muito relevante o modo como os dois alemães tratam do desacordo ‘trágico’ do homem no mundo. A loucura de ambos é trágica num sentido bem moderno, que nós entendemos com muita nitidez.

Saber fatal

Os longos anos que Hölderlin passou recluso na torre às margens do Neckar são trágicos, mas o silêncio do “infeliz poeta” não significou o enterro de todos os seus pensamentos no “túmulo de uma loucura de muitos anos”. Brilharam, em meio à loucura, pensamentos e imagens tão belos, em forma de poesia. E o Hipérion ficou durante muitos desses anos de loucura sobre a mesa de Hölderlin, como se nele ele estivesse em casa, como se ele tivesse lá reencontrado sua pátria mítica. Já a loucura de Nietzsche é ‘trágica’, à medida que foi ocasionada por terríveis doenças, que o acometeram desde a adolescência. Nos anos de loucura, a doença neurodegenerativa do filósofo solitário apagou logo a vida de sua mente e, aos poucos, a de seu frágil corpo. Apenas nos primeiros meses de loucura, Nietzsche conseguiu lembrar eventos decisivos de sua vida, depois, somente a companhia da mãe, do piano e, que tragédia, da indesejável irmã! É trágico também o modo como o Gênio Filosófico pressagia sua loucura (desde a juventude), como a máscara de um saber fatal... O diagnóstico da loucura de cada um deles é questionável, mas é certo que eram hipocondríacos, em diferentes graus.

 

IHU On-Line - Em que sentido as paixões impossíveis por Susette Gontard  e por Louise von Salomé  marcam o destino de Hölderlin e de Nietzsche?

Clademir Araldi - Susette Gontard foi o grande amor da vida de Hölderlin. Desde o início de 1796, o jovem poeta foi preceptor na casa do banqueiro Jakob F. Gontard  (Frankfurt), com quem era casada e teve quatro filhos. O poeta-preceptor foi obrigado a abandonar a casa, por causa das suspeitas de suas relações com Susette. Ele continuou a encontrar-se e a corresponder-se com ela até 1800. Hölderlin tentou eternizar Susette em suas poesias (por exemplo, em “Wen aus der Ferne”) e em seu romance epistolar Hipérion, como Diotima. Em uma de suas últimas cartas ao Gênio Poético, assim escreveu Susette: “Não posso mais continuar escrevendo, adeus! Adeus! Tu és imperecível em mim! E permaneças até quando eu permanecer.”

Susette morreu em 22 de junho de 1802. Hölderlin provavelmente ficou sabendo da morte de sua amada no início de julho daquele ano. É muito obscuro o que aconteceu de maio a julho de 1802, desde que o melancólico poeta parte a pé para Bordeaux, até ser encontrado por amigos em Stuttgart, em estado deplorável. A ‘loucura’ de Hölderlin foi diagnosticada em 1805, no mesmo ano em que é publicado o livro Die Nachtwachen, de Bonaventura, talvez o ápice do niilismo poético romântico. A doença também levou Sophie von Kühn,  a noiva amada de Novalis, em 1797, com apenas 15 anos. Em Hymnen an die Nacht (1800), Novalis tentou transfigurar a dor da perda, cultuando/recordando seu grande amor (romântico).

“O grande meio-dia”

Lou Salomé era bem jovem quando Nietzsche a conheceu na Itália, em 1882. Nietzsche era filósofo errante há vários anos, ainda apreciava vulcões ativos (Vesúvio) e histórias de marinheiros, como podemos observar no Zaratustra. À diferença de Hölderlin e de Novalis, a paixão de Nietzsche não foi correspondida. Lou recusou o convite de casamento do Gênio Filosófico, viajou com Paul Rée,  até então amigo de Nietzsche, para Paris, e viveu muitos anos ainda. Nietzsche ficou com a sua mais fiel companheira, a solidão, teve pensamentos de suicídio, escreveu cartas ‘desaforadas’ a seus ‘traidores’. Mas logrou nos meses seguintes transfigurar suas dores e frustrações em Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém, sua criação filosófico-poética mais elevada.

Nietzsche e Hölderlin buscaram alcançar e agarrar-se ao ‘grande meio-dia’ (der grosse Mittag), ao pensamento e ao sentimento romântico da unidade de tudo o que vive, da reconciliação de todos os mortais no coração do ser. Mas precipitaram-se fatalmente na solidão tumular da loucura, ansiando por encontrar seu lar, no coração e nos instantes da eternidade. Como isso é belo, trágico — e distante! ■

 

Leia mais...

- O niilismo como doença da vontade humana. Entrevista com Clademir Araldi, publicada na revista IHU On-Line, nº 354, de 20-12-2010.

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