Edição 472 | 14 Setembro 2015

Pelos caminhos da verdade até a justiça e reconciliação

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Márcia Junges e João Vitor Santos

Para Sueli Bellato, “justiça é possibilidade de acesso para o perdão e para reconciliação”. Caminhos que começam a ser trilhados com a verdade desvelada e reconhecida como História

Para muitos, a ideia de perdão tem a ver com absolvição. No entanto, para a ex-vice-presidente da Comissão de Anistia, Sueli Bellato, o perdão está mais próximo da reconciliação. Na opinião da militante em Direitos Humanos, trilhar um caminho que leve até a reconciliação passa essencialmente pela justiça. E, por sua vez, só se estabelece a justiça quando a verdade vem à tona e passa a ser reconhecida como a História oficial, legitimada. “A verdade é a luz que permite atravessar a ponte para alcançar a Justiça e a reconciliação”, explica. Sem a verdade, as vítimas continuam como que vivendo nas sombras e sem de fato entender a História entrelaçada com as próprias vidas. É por isso que no III Colóquio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e VI Colóquio da Cátedra Unesco – Unisinos de Direitos Humanos, Sueli falará sobre “a justiça e as vítimas”.

Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, detalha mais os nexos entre a ideia de perdão e justiça. “O perdão remete à justiça, à liberdade e à paz. Quem perdoa liberta-se de carregar nos ombros seu algoz e se livra das feridas não cicatrizadas, liberta dos pesadelos, ameaças, temores”, destaca. E ainda conecta esses conceitos à ideia de justiça de transição, para além de uma reparação monetária. Para ela, o que muitas vítimas e familiares querem é não deixar que se esqueça das inúmeras violações de Direitos Humanos que já se passou no país. “Lembrar é também um compromisso, uma promessa de adoção de mecanismos para não repetição.”

Sueli ainda faz conexões com as manifestações de hoje, muitas pedindo a volta do regime militar. Para ela, ou são fruto de desinformação sobre o que foi o regime ou são atos criminosos que desrespeitam a memória e a própria História de quem viveu esse período. “É preciso examinar com seriedade estas manifestações e, se a manifestação for resultado de desconhecimento histórico, devemos insistir nos programas educativos obrigatórios como forma de advertência pedagógica. Agora, se parte de pessoas convencidas do que estão manifestando, então entendo que deve ser apurado e responsabilizado criminalmente. Porque, além de serem ofensas desrespeitosas contra o posicionamento vencedor da ditadura, também ofende a memória dos mortos e comete crime de vilipêndio”, dispara.

Sueli Bellato é mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília - UNB, militante de direitos humanos, ex-conselheira e ex-vice-presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - O que é a justiça de transição?

Sueli Bellato - A justiça de transição é conceituada como o conjunto de mecanismos, judiciais e extrajudiciais, que tem o objetivo de tratar das graves violações de direitos humanos cometidas num determinado momento político. Isso quer seja guerra, ditadura, conflitos internos e externos. O propósito é estabelecer a reconciliação e perenizar a paz.

 

IHU On-Line - A partir da perspectiva da justiça de transição, em que medida se pode falar em perdão ou desculpa em nome do Estado brasileiro?

Sueli Bellato - Na justiça de transição, o pressuposto do perdão é o arrependimento e a promessa de não mais cometer violações que causaram prejuízo à vítima, às vítimas e ao país. Contudo, a concessão do perdão é instrumento exclusivo das vítimas. Ao acusado cabe pedir e esperar que a vítima o perdoe. Por ser incondicional, as vítimas aceitam o perdão de acordo com suas convicções, possibilidades, sem nenhuma condição de qualquer natureza.

No caso do Brasil, o Estado interpretou a declaração de anistiado político prevista no primeiro artigo da Lei 10.559/2002 à luz do Direito Internacional e das experiências dos países e povos que atravessaram situações de graves violações de direitos humanos como indicativa para o pedido de desculpas, uma vez que a Anistia é devida a quem praticou atos contrários a lei. No caso, o Estado é quem perseguiu, prejudicou. Por isso lhe cabe pedir desculpas às suas vítimas. O pedido de desculpa é condicionado a uma obrigação de fazer ou de deixar de fazer. Daí a importância de o pedido de desculpas ser acompanhado das reparações aos prejuízos morais e econômicos. Enquanto a Justiça é um fim em si mesmo, o perdão é um meio para se alcançar a Justiça.

 

IHU On-Line - Numa perspectiva jurídica, qual é a pertinência e compatibilidade do perdão na justiça?

Sueli Bellato - O perdão remete à justiça, à liberdade e à paz. Quem perdoa liberta-se de carregar nos ombros seu algoz e se livra das feridas não cicatrizadas, liberta dos pesadelos, ameaças, temores. Sendo ato exclusivo da vítima e gratuito, somente ela pode atestar se estão dados os elementos que a movem para perdoar. A aplicação dos mecanismos recomendados aos países que sofreram interrupção democrática e graves violações de Direitos Humanos em massa, como ocorreu no Brasil na prolongada ditadura de 21 anos, não ocorreu adequadamente ou até mesmo não ocorreu. Isso pode obstruir o caminho da manifestação de arrependimento e do perdão. Refiro-me à falta de responsabilização dos que perpetraram graves violações e se beneficiam da impunidade.

 

IHU On-Line - Em que sentido a justiça de transição colabora com a categoria da memória em relação aos fatos ocorridos no período da ditadura civil militar brasileira?

Sueli Bellato - Lembrar é um requisito essencial da Justiça de Transição. Lembrar é também um compromisso, uma promessa de adoção de mecanismos para não repetição.

 

IHU On-Line - De que maneira o direito à memória se configura como um direito à defesa da vida?

Sueli Bellato - O resgate da memória individual e coletiva representa o resgate da dignidade, a superação do estado de ruínas, de depressão e afirmação da autoestima de toda população. O fim do estado autoritário marca o rompimento com as medidas de força e de violência. Fazer a memória é afirmar o compromisso com a vida e com a dignidade humana.

 

IHU On-Line - Em que medida se entrelaçam o direito fundamental à verdade e a justiça de transição?

Sueli Bellato - A verdade é a luz que permite atravessar a ponte para alcançar a Justiça e a reconciliação. Sem a verdade, as vítimas e sobreviventes estarão submetidos a um estado de desconhecimento dos como e “porquê’s”. Os familiares de perseguidos políticos continuarão no estado de vitimização, de trauma, insegurança jurídica e política e credores de um direito desrespeitado. O desconhecimento do paradeiro dos perseguidos políticos, por exemplo, são direitos que seguem sendo negados aos familiares causando obstrução da realização da justiça.

 

IHU On-Line - Quais foram as principais conquistas e desafios da Comissão Nacional de Anistia?

Sueli Bellato - Como estudiosa do tema, ex-conselheira e ex-vice-presidente da Comissão de Anistia, entendo que muito se fez até o presente. A começar da instalação da Comissão que foi inserida no texto da Constituição graças à intensa mobilização dos militantes de Direitos Humanos e dos que sofreram perseguição política. Da mesma forma a instalação da Comissão se deveu aos mesmos atores que por 13 anos lutaram para que o governo regulamentasse o dispositivo da Constituição Federal que só acabou ocorrendo em 28 de agosto de 2001. Sem prazo final para recepção de pedidos, a Comissão recebeu o maior número de requerimentos de anistia entre os anos 2001 e 2004.

Não obstante até o presente momento, ainda restam requerimentos sem apreciação e decisão dos primeiros anos da instalação da Comissão de Anistia. Creio ser este um dos maiores desafios. Se não se conseguiu o julgamento dos pedidos de requerimento de forma célere, como era recomendado em razão da idade, dos traumas e necessidade das vítimas, que se busque meios de finalizar no curto prazo os requerimentos que ainda faltam ser decididos para que os requerentes possam receber em vida a declaração de anistiado político brasileiro e as devidas reparações.

 

IHU On-Line - Em que medida foi feita justiça às vítimas a partir da perspectiva dos trabalhos dessa Comissão?

Sueli Bellato - A Justiça que as vítimas reivindicam não é apenas a que está no escopo da Comissão de Anistia. Todavia, no limite da sua competência, a Comissão realiza a reparação econômica e a moral. Primeiro, a Comissão contribui para que as vítimas deixem de ser invisíveis e mudas. Sabemos que o regime militar as colocou no silenciamento e na invisibilidade e assim continuaram na democracia, na medida em que a verdade segue incompleta e a justiça não foi feita.

Ainda hoje falamos das vítimas do golpe de 1964 da mesma forma que falamos das vítimas de Canudos, do Contestado, das demais revoltas. No entanto, muitas estão vivas e moram na mesma cidade, no mesmo bairro e talvez na mesma rua que nós moramos. É como se não tivessem nomes, pais, mães, filhos, rostos. Com as sessões públicas, as caravanas da Anistia e manifestações culturais, as vítimas permitem que a população conheça seu protagonismo na História de luta e resistência. Resultado do Projeto Marcas da Memória, a Comissão realiza parcerias com acadêmicos, profissionais do cinema e da arte para produção de obras literárias, filmes, teatros, etc., com as histórias das vítimas e dos acontecimentos que atingiram a democracia e a integridade do povo brasileiro.

Também é sabido que as vítimas da ditadura sofreram perseguições, foram presas, torturadas, perderam os empregos, foram expulsas da vida acadêmica, etc. Tudo isto acarretou prejuízo econômico. Por isso a lei que regulamentou a Constituição Federal previu indenização especial para amenizar os impactos causados pelas perseguições.

Porém, as vítimas esperam é que os perpetradores de violações assumam o que praticaram, manifestem seus arrependimentos e a Justiça responsabilize quem sequestrou, prendeu, torturou, violentou, assassinou, usou nomes falsos e muitas vezes praticou toda sorte de crime com o rosto coberto. Justiça é possibilidade de acesso para o perdão e para reconciliação. Não obstante ela decorre da Verdade e implica em compromissos de não repetição.

 

IHU on-Line - Qual é o papel da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça?

Sueli Bellato – Comissão de Anistia é órgão de assessoramento do Ministro da Justiça. Sua competência legal é promover recomendações nos processos administrativos para o reconhecimento do direito de reparação, de acordo com a especificidade de cada caso e permitir que o ministro tenha as melhores condições para decisão final.

 

IHU On-Line - Por que o tema da Anistia gera tanta celeuma no Brasil?

Sueli Bellato – No mundo todo, a palavra anistia — derivada do grego amnistia — é interpretada como amnésia, esquecimento. Então, os militares quando aprovaram a Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, convencionaram que esqueceriam as perseguições por eles praticadas. Algo como “estamos quites e daqui pra frente não se fala mais nisso”. E mais: como em regime de ditadura não tem diálogo, consulta, eles veicularam que esta ideia era resultado de um acordo com as vítimas. Ocorre que a ditadura prosseguiu até início de janeiro de 1985. Foi quando os civis voltaram a presidir o país e foi convocada a Assembleia Nacional Constituinte para inscrever na História do país um novo marco legal.

Este novo marco legal que é fruto da luta pela democracia não tem e não poderia ter qualquer sintonia com a lei promulgada pelos militares em plena ditadura. O espírito da Constituição promulgada em 05 de outubro de 1988 não autoriza a recepção da construção feita pelos militares a respeito do esquecimento. Pelo contrário, a nova Constituição recomenda estado de vigilância a favor da democracia e não esquecimento para não repetir o que aconteceu contra as instituições e toda a Nação.

Retrocessos jurídicos

No entanto, a obrigação de conhecimento da verdade, responsabilização dos crimes do passado e o não esquecimento não tem prevalecido no Poder Judiciário brasileiro. Assim, que decidiu, em 2010, na contramão da história e das políticas da Justiça transicional, quando julgou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil, ADPF 153, e decidiu que a Lei 6.683/79 é fruto de um pacto político que possibilitou a transição para a democracia e a declarou válida.

Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal igualou vítimas e perpetradores às mesmas condições de beneficiados pela dita Lei de Anistia. Felizmente, ainda resta um Embargo de Declaração para que o Supremo supere as contradições invocadas no recurso e esclareça a falta de sintonia desta decisão com a condenação sofrida pelo Brasil na ação promovida por familiares de vítimas de desaparecimento forçado perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Esta corte, entre outras obrigações, recomendou a revisão da Lei que auto anistia os perpetradores de violações de Direitos Humanos.

 

IHU On-Line - Há uma relação entre a Comissão de Anistia e a Comissão da Verdade? Que aproximações e enriquecimentos podem ser estabelecidos?

Sueli Bellato – Ambas as Comissões trabalharam a favor do resgate da verdade. Enquanto a Comissão de Anistia – CA iniciou seus trabalhos em 2002 por força da Lei 10.559, com o objetivo de reparar as vítimas das perseguições políticas, a Comissão Nacional da Verdade iniciou seus trabalhos 27 anos após o fim da ditadura militar. E com muitos desafios e respostas aguardadas pelas vítimas, familiares e aqueles que se mobilizaram para aprovar em 2009, por ocasião da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, com a recomendação de criação da Comissão Nacional da Verdade - CNV.

No período de estudos para apresentação do projeto de lei e elaboração do projeto, a Comissão de Anistia participou ativamente das atividades pertinentes. O acervo da Comissão da Anistia, que possui mais de 70 mil processos, esteve sempre à disposição dos comissionados e assessores da CNV. O Relatório final da CNV faz menção à contribuição da CA e das Comissões regionais da CV. A Comissão de Anistia também firmou dezenas de convênios com as Comissões Estaduais e Regionais da Verdade, o que lhes permitiu e segue permitindo uma importante interação e contribuição para o resgate da memória e da verdade.

 

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algo?

Sueli Bellato – De fato, existem temas que mesmo de forma subliminar estão presentes. Destaco o cumprimento das Recomendações da Comissão Nacional da Verdade e as manifestações atuais de pedido de volta à ditadura. É preciso examinar com seriedade estas manifestações e, se a manifestação for resultado de desconhecimento histórico, devemos insistir nos programas educativos obrigatórios como forma de advertência pedagógica. Agora, se parte de pessoas convencidas do que estão manifestando, então entendo que deve ser apurado e responsabilizado criminalmente. Porque, além de serem ofensas desrespeitosas contra o posicionamento vencedor da ditadura, também ofende a memória dos mortos e comete crime de vilipêndio. ■

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