Edição 205 | 20 Novembro 2006

Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul, de FHC

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I CICLO DE ESTUDOS SOBRE A FORMAÇÃO SOCIAL SUL-RIOGRANDENSE: CONTRIBUIÇÕES À LEITURA DE SEUS INTÉRPRETES

Nesta quinta-feira, 23-11-2006, a Prof.ª Dr.ª Helga Piccolo, emérita da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) discute as idéias contidas no livro Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul, de autoria do sociólogo Fernando Henrique Cardoso. A palestra compõe o cronograma de atividades do I Ciclo de Estudos sobre a Formação Social Sul-Riograndense: contribuições à leitura de seus intérpretes. Bacharelada e licenciada em Geografia e História pela UFRGS, Piccolo é especialista em Didática do Ensino Superior pela Unisinos, com doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). É autora da obra Vida política no século 19. Da descolonização ao movimento republicano. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1991.

A Profa. Dra. Berenice Corsetti, docente na Unisinos, historiadora e educadora, em entrevista especial para a IHU On-Line comenta o livro que ela estudou exaustivamente na elaboração da sua tese de mestrado.
Corsetti é graduada em História pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), especialista e mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) com a dissertação Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. Doutorou-se em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com a tese Controle e ufanismo: a escola pública no Rio Grande do Sul (1889-1930). 

IHU On-Line - Como se articulavam, na obra de Fernando Henrique Cardoso, capitalismo e escravidão no Rio Grande do Sul?

Berenice Corsetti
- O trabalho de Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional , fez parte de um programa de investigação sobre a sociedade escravista no Brasil Meridional (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), inicialmente proposto por Florestan Fernandes  para ampliar o conhecimento sociológico sobre o preconceito racial no Brasil alcançado em trabalhos anteriores de sua autoria e de Roger Bastide . O assunto fundamental da obra de Fernando Henrique Cardoso é a discussão desenvolvida sobre a formação, as características próprias e a desintegração da sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul, vistas “a partir da situação social que o negro nela assumia” , o que pode ser colocado dentro de um perfil geral de interpretação seguinte:
A sociedade escravocrata gaúcha constituiu-se como uma tentativa para organizar a produção mercantil capitalista numa área onde havia escassez de mão-de-obra. Desde o início, contudo, o sistema assim constituído trazia em seu bojo um conjunto de contradições que definiam o travejamento básico de suas possibilidades de existência. A escravidão fora o recurso escolhido para organizar a produção em larga escala, visando ao mercado e ao lucro (formação do sistema capitalista), mas o desenvolvimento pleno do capitalismo (a exploração da mais-valia relativa) era, em si mesmo, incompatível com a utilização da mão-de-obra escrava, através da qual não é possível organizar técnica e socialmente a produção para obter a intensificação da mais-valia relativa. Essas contradições se aguçaram e evidenciaram desde o momento em que a produção escravocrata gaúcha entrou em relações de competição com a produção assalariada platina, que acelerou sua desagregação.

Mais especificamente, através das colocações que o autor faz no capítulo IV de seu trabalho , nota-se que o objetivo de Fernando Henrique Cardoso é o de demonstrar as contradições do que denomina “sistema ‘escravocrata-capitalista’ de produção” e a sua impossibilidade de concorrer com a produção capitalista assalariada (no caso, a dos “saladeros” do Prata). E a conclusão do autor a respeito, inspirada por Eric Williams, pode ser extraída de suas palavras:
... o trabalho escravo numa economia capitalista (a escravidão moderna) apresenta-se como uma contradição em si mesmo, quando o sistema capitalista em que ele se insere tende ao crescimento. As tensões criadas por esse tipo de organização do trabalho não conduzem a supressão do sistema capitalista; colocam apenas o problema do término da escravidão como requisito para a formação plena do sistema mercantil-industrial capitalista. O desenvolvimento das forças produtivas, nestas condições, coloca a possibilidade da supressão pura e simples do sistema escravista, que passa a apresentar-se como um obstáculo para o desenvolvimento do capitalismo.
Observa-se que, ao utilizar a noção de capitalismo, Fernando Henrique se vale do conceito weberiano de “capitalismo moderno”. Da mesma forma, percebe-se a inspiração em Weber para as considerações relativas à “irracionalidade do escravismo”. Em relação às “conseqüências anticapitalistas do trabalho escravo”, o fundamento do autor foi Marx e Caio Prado Júnior . A argumentação de Cardoso está intimamente vinculada a dois aspectos: 1) a demonstração do caráter ruinoso da concorrência desenvolvida pelo charque importado, que era produzido por mão-de-obra assalariada. Os produtores gaúchos produziam em condições econômicas desvantajosas perante os concorrentes platinos; 2) a comparação realizada por Louis Couty  entre as charqueadas do Rio Grande do Sul e os “saladeros” do Prata, ressaltando os elementos “irracionais” das primeiras. Segundo a análise de Couty, os charques e os couros do Rio Grande não podiam competir em condições normais de mercado, pois seu custo era maior, e isso acontecia porque o trabalho escravo apresentava menor produtividade que o trabalho livre do produtor platino. Daí, segundo Fernando Henrique Cardoso, é possível entender, também, as contradições internas do sistema escravista de produção, bem como os empecidos que esse tipo de organização do trabalho colocava à divisão do trabalho e ao desenvolvimento da técnica de produção e, portanto, à sua própria expansão. Por esse motivo, o sistema escravista estava condenado ao fracasso desde o instante em que competia com economias organizadas com fundamento no trabalho livre. Esses aspectos, em minha opinião, expressam, no essencial, o pensamento de Fernando Henrique Cardoso, sobre capitalismo e escravidão no Rio Grande do Sul.

IHU On-Line - Como a obra de FHC, escrita em 1961, pode nos auxiliar a reler a situação das populações afro-descentes em nosso País? Qual é a atualidade desse livro?

Berenice Corsetti
- Como já me referi anteriormente, os estudos desenvolvidos pela sociologia brasileira, tão brilhantemente desenvolvidos pelo grupo de pesquisa liderado por Florestan Fernandes e que articulou investigações que envolveram, além de Fernando Henrique Cardoso, outros pesquisadores, como Octavio Ianni  e Maria Sylvia de Carvalho Franco , trouxeram uma contribuição expressiva, no que tange a um maior conhecimento das relações sociais e raciais no Brasil. O contato com essa literatura é fundamental para que se percebam os fundamentos sociológicos e históricos do problema racial em nosso país. Nesse sentido, essa produção tem, em minha opinião, uma atualidade indiscutível, pelo conjunto de contribuições que oferece à compreensão do tema, mesmo que outros estudos tenham sido realizados sobre o assunto, o que só confirma a importância da obra de Cardoso e dos demais intelectuais que se envolveram com essa temática.

IHU On-Line - Um dos objetivos da obra de FHC era desmascarar o mito da democracia racial brasileira, surgido após a abolição da escravatura, que queria esconder o preconceito racial e a desigualdade entre brancos e negros. A senhora acredita que a obra atingiu esse objetivo? Por quê?

Berenice Corsetti
- Acredito que a obra de Fernando Henrique Cardoso contribuiu muito para isso, pois foi apresentada num momento em que a tese da democracia racial era muito presente na historiografia rio-grandense. Nesse contexto, ela problematizou eficazmente essa concepção, dando margem à sua contestação. A partir daí, trabalhos de pesquisa foram desenvolvidos, reforçando o questionamento do mito da democracia racial no Rio Grande do Sul, já que um conhecimento adequado das relações escravistas no cenário gaúcho demonstra a violência que imperava com a dominação dos senhores de escravos. As próprias charqueadas eram consideradas, pelos donos de escravos do centro do País, verdadeiros estabelecimentos penitenciários, para onde eram enviados os escravos rebeldes que desejavam punir. Ora, de democracia racial isso não tinha nada. Na realidade, essa visão vinculava-se a uma historiografia tradicional, de cunho elitista, que não encontra fundamento nos melhores estudos das ciências humanas que se envolveram com o assunto.

IHU On-Line - Quais são as formas atuais de exclusão sofridas pelos afro-descendentes que podem ser creditadas a esse passado escravocrata?

Berenice Corsetti
- O passado escravocrata brasileiro deixou muitas marcas que a sociedade de nosso país busca superar. O trabalho, durante todo o período da escravidão, foi considerado coisa degradada, “coisa de negro”, o que ensejou a depreciação social da atividade produtiva. Os ideólogos republicanos necessitaram regatar o sentido ético do trabalho, relacionando-o, no projeto da República, com a construção da riqueza. Assim, a questão da exclusão dos afro-descendentes, em minha visão, relaciona-se não apenas a esse contexto de nosso passado, em que a população de africanos foi compulsoriamente colocada, mas, também e sobretudo, às condições sociais que os afro-descendentes herdaram. Entendo que a exclusão dessa parcela expressiva de nossa gente tem a ver, assim, com a pobreza e a miséria presentes na realidade que a caracteriza.

IHU On-Line - Quanto à política de cotas para o ensino, ela é realmente eficaz ou acaba por reiterar a exclusão?

Berenice Corsetti
- Tenho uma compreensão muito pessoal sobre a política de cotas. Como pesquisadora que tenho sido das políticas educacionais que caracterizaram a história brasileira, é minha compreensão que essa política expressa uma vontade afirmada de acelerar o resgate da dívida histórica que temos, como sociedade, com as populações indígenas e afro-descendentes, que foram alvo de perdas e exploração, no processo de construção nacional. Entendo, porém, que essa política deve ter um caráter conjuntural, não devendo se consolidar como A política para esses setores sociais, indefinidamente. Ela necessita ser conjugada com outras iniciativas que configurem uma intenção de política educacional de caráter estrutural, o que implica pensar essa questão ao lado de outras, como apoio à escola básica, ampliação do acesso com qualidade, acompanhamento da política de expansão do ensino superior, apoio às instituições que tenham compromisso com a qualidade acadêmica e não apenas com a oferta de vagas, entre outras. Desejo, assim, como historiadora e educadora, que a política de cotas possa dar uma contribuição importante para os fins a que foi proposta, mas que possamos superá-la, com ações de política educacional de mais amplo alcance.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Berenice Corsetti
- A obra de Fernando Henrique Cardoso foi alvo de meu interesse, quando realizei meu mestrado em História. Ao realizar um estudo sobre a charqueada escravista no Rio Grande do Sul, no século XIX , tive, em seu trabalho, uma importante referência. No entanto, entendi que o a tese da decadência das charqueadas, na perspectiva exposta pelo autor, situou-se numa controvérsia, já que, na historiografia argentina, encontramos a defesa da idéia oposta, ou seja, que, a partir de 1840, a concorrência das charqueadas do Rio Grande do Sul  (e de outras regiões) explicaria a decadência dos “saladeros” da região de Buenos Aires. No estudo então desenvolvido, à luz de fontes históricas pesquisadas e que não haviam sido consideradas por Fernando Henrique, pudemos verificar que o processo de desestruturação da charqueada escravista gaúcha teve seu elemento explicativo de maior peso no conjunto de características e modificações que marcaram a economia rio-grandense do período, e que denominamos de transição ao capitalismo dependente, periférico ou subdesenvolvido. Além disso, estudos do Prof. Dr. Leonardo Monastério  (UFPel), em sua tese de doutorado em Economia, demonstraram, de forma significativa, que a escravidão, no Brasil e no Rio Grande do Sul, foi rentável até o seu final, o que nos leva a relativizar a tese central da obra de Cardoso, sem deixar de reconhecer a sua importância e qualidade, no campo da sociologia brasileira.

 

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