Edição 472 | 14 Setembro 2015

A educação como ruptura, não como institucionalização

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Márcia Junges e Ricardo Machado

Alexandre Filordi de Carvalho defende a educação como um espaço de produção de novas subjetividades e não de serventia a afetos passivos

No front de batalha da institucionalidade da educação não há nada de novo. Milhares de professores e pesquisadores travam uma luta que não é própria, fazendo inúmeras revisitas, revisões, desdobramentos teóricos e descrevendo procedimentos metódicos, mas com avanços muitos tímidos nas trincheiras da novidade. “O que inaugura de novo, com isso? Novo entendido, talvez, com a força da ideia de novo paradigma, conforme sugeria Thomas Khun, ou com o que faz pensar de modo completamente diferente. Provavelmente quase nada”, critica o professor e pesquisador Alexandre Filordi de Carvalho, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Seria, a meu ver, promovendo rupturas nas redes e nos circuitos de saberes-poderes hegemônicos, a fim de atuar na composição de novas formas de lidar com o saber e de relacionar-se com as experiências para a formação de subjetividades ativas e não passivas”, propõe.

Em sua avaliação, a biopolítica opera no automatismo da institucionalização, o que levou Gilles Deleuze a associar tal sistema com a sociedade de controle à medida que as etapas a serem cumpridas estão todas pressupostas. “Ora, desinstitucionalizar a educação é justamente quebrar a relação cíclica dessa lógica. A função-educador, com isso, não pode ter a ingenuidade de que reformará a escola ou qualquer instituição. Ela deve ter a clareza de sua atuação no nível da micropolítica, no âmbito das pequenas descontinuidades, no oportunismo de uma experiência que forja um novo acontecimento”, defende Alexandre. “Escutar alguém é relacionar com as suas margens humanas, com as suas finitudes. Desse modo, a escuta pode ser uma experiência para potencializar a desinstitucionalização dos padrões burocráticos, logo hierárquicos, de relações, de entendimento, de trocas simbólicas, de produções discursivas inclusive”, avalia.

Alexandre Filordi de Carvalho é graduado em Pedagogia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, onde também realizou mestrado. Doutorou-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP e em Educação pela Unicamp, onde também realizou pós-doutorado. Atualmente, é professor de Filosofia da Educação na Universidade Federal de São Paulo – Unifesp também atuando como professor no Programa de Pós-Graduação em Educação. É membro coordenador da Red Iberoamericana Foucault - RIF. É autor de Foucault e a função-educador: sujeição e experiências de subjetividades ativas na formação humana (Ijuí: Unijuí, 2010).

No dia 21-09, às 14h, no Auditório Central, o professor apresenta a conferência A “função educador” na perspectiva da biopolítica e da governamentalidade neoliberal, evento que integra a programação do XVII Simpósio Internacional IHU | V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação. Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como podemos compreender a “função-educador”?

Alexandre Filordi de Carvalho - Pode parecer que a ideia de função-educador seja apenas uma forma distinta ou rebuscada para nos referirmos ao professor ou ao educador. Mas não é. A função-educador é um conceito operador, logo, possui força própria. E nas fronteiras de sua especificidade, quer dizer justamente que nem todo professor, infelizmente, encontra-se na função-educador.

Pensemos em um autor qualquer. Um pesquisador que, no cenário brasileiro atual, vê-se impelido a publicar os seus papers. O que ele faz? Revisita ou revisa referências, descreve um experimento, desdobra teorias e procedimentos metódicos, etc. O que inaugura de novo, com isso? Novo entendido, talvez, com a força da ideia de novo paradigma, conforme sugeria Thomas Kuhn,  ou com o que faz pensar de modo completamente diferente. Provavelmente quase nada. 

Isso nos serve para entender a seguinte dimensão: nem todo autor tem pré-requisitos para exercer a função-autor, como apontava Foucault.  Para Foucault, a função-autor designa a força de um ato criador por um autor que foi capaz de fundar uma discursividade. Em outras palavras, a sua obra foi capaz de desdobrar outras obras, ou mais precisamente, de sua discursividade, surgiram outras. De Newton  temos o newtonismo; de Marx  o marxismo; de Freud  o freudismo; de Darwin  o darwinismo; são exemplos de autores que exerceram a função-autor. Assim, a função-autor foi capaz de produzir uma ruptura, uma descontinuidade cuja força fez emergir um novo rosto de concepções, de entendimento, de pensamento, de análise, de procedimentos, etc. A função-autor é a viva potência de capacitar o impensado a se efetivar como realidade e na realidade. O que somos, no limite, depois de Watson  e Crick ? Um conjunto de sucessão de códigos possíveis de serem compreendidos quando são decodificados conforme signos criados pelos mesmos autores. Portanto, toda obra, na função-autor, não se restringe, portanto, ao autor, mas transfunde a própria criação do autor, uma vez que ela foi capaz de produzir algo novo. 

Levando essa conjuntura em consideração, assim como a função-autor criou algo novo, tensionando a configuração do poder hegemônico, sobretudo no âmbito de nossas relações com o conhecimento, com os saberes, com quaisquer práticas, a função-educador é uma maneira de conceber que o educador também pode cindir a configuração das relações de poderes hegemônicos. Por não ser essencial ou exclusivamente um cientista, como o educador poderia criar algo novo? Seria, a meu ver, promovendo rupturas nas redes e nos circuitos de saberes-poderes hegemônicos, a fim de atuar na composição de novas formas de lidar com o saber e de relacionar-se com as experiências para a formação de subjetividades ativas e não passivas. 

Do ponto de vista da função-educador, a subjetividade ativa encontrar-se-á na esfera de todo processo de criação que representa a dessujeição do educador dos mecanismos que aprisionam e normalizam suas ações, gestos e práticas que o finalizam como sujeito. 

 

IHU On-Line - Em que medida podemos estabelecer nexos entre a “função-educador” e a biopolítica?

Alexandre Filordi de Carvalho - Partindo do pressuposto que a biopolítica investe sobre coletivos com o intuito de administrar a vida dos indivíduos ligados a qualquer coletividade, três aspectos eu destacaria entre a função-educador e a biopolítica. 

Alunos

As escolas são organizadas por classes de alunos. Mas no que esses alunos se transformaram na sociedade biopolitizada? Eles foram reduzidos a índices, a escalas, a um cálculo de probabilidade, a uma soma distributiva, a um custo previsto e a uma calculabilidade econômica. Assim, cada aluno não é mais um indivíduo, mas um átomo fictício a ser administrado. A função-educador, nesse sentido, é convidada a agir como um tensor nessa estrutura biopolítica. Especificamente ela é desafiada a tratar a formação do aluno como pessoa, como sujeito com potencialidade de romper com as abstrações populacionais que roubam dele voz e vez históricas. 

Educador

Mas na outra ponta, em segundo lugar, essa mesma atuação da função-educador deve ser destinada para si mesmo. Quer dizer, na mesma proporção que o aluno como indivíduo se perde na biopolítica, o mesmo ocorre com o educador. Logo, a função-educador é um refazer-se micropolítico face às próprias tarefas e às incumbências que a relação com a educação supõe e exige de um educador. Ser educador não é cumprir uma demanda burocrática nem uma tarefa repetitiva, tampouco é fazer de sua ação e de sua presença um ecoar de previsibilidades.

Função-educador

Por conseguinte, em terceiro lugar, a função-educador é uma forma de desinstitucionalizar as relações estabelecidas nos dispositivos educacionais. A biopolítica opera no automatismo da institucionalização. Por isso que Deleuze  associou biopolítica com sociedade de controle, pois as etapas a serem cumpridas na vida estão todas dadas, pressupostas, administradas. Ora, desinstitucionalizar a educação é justamente quebrar a relação cíclica dessa lógica. A função-educador, com isso, não pode ter a ingenuidade de que reformará a escola ou qualquer instituição. Ela deve ter a clareza de sua atuação no nível da micropolítica, no âmbito das pequenas descontinuidades, no oportunismo de uma experiência que forja um novo acontecimento. Ela tem de cavoucar na burocracia espaços e lugares para tanto. Mas acredito ser o interior da sala de aula um lugar privilegiado para romper com a lógica das abstrações populacionais da biopolítica. E isso não começaria se fôssemos capazes, por exemplo, de saber o nome das pessoas com as quais nos relacionamos no cotidiano da educação, respeitando as suas singularidades e suas respectivas diferenças subjetivas? 

 

IHU On-Line - Nesse sentido, quais são as relações e tensionamentos que surgem a partir da governamentalidade neoliberal?

Alexandre Filordi de Carvalho - Tomemos de modo concreto o que se passa no estado do Paraná, governado por um partido neoliberal. A crise instalada ali, com toda falta de recursos para a educação, com o estrangulamento de condições minimamente humanas de trabalho pedagógico, com o solapamento do reconhecimento do papel da educação como núcleo central na transformação social, com o uso de violência física, moral, psicológica e simbólica na contenção de manifestações, enfim, tudo isso revela a dificuldade que temos de lutar contra o controle que coloca tudo sob um falso controle. O que isso quer dizer?

A governamentalidade neoliberal reativa constantemente a ordem abstrata de gestão: o mais importante é o Estado, são as contas, o equilíbrio fiscal, a gestão correta, ou seja, tudo o que não é feito de carne e osso, mas que determina a limitação dos canais que geram, gestam e distribuem recursos e condições a tudo que diz respeito às necessidades humanas. 

Tensionar essa governamentalidade implica sair da abstração. Por isso as manifestações são importantes, pois dão visibilidade ao que não se vê, ao que estava aquietado e mantido sob controle pela administração. Manifestar é combater a resiliência de todo quietismo. Os alunos estão o tempo todo manifestando, mas colocá-los em ordem, sem minimamente dar vez à voz deles, é recapturá-los na mesma lógica desse governo violento contra tudo que se antepõe a ele.

 

IHU On-Line - Quais são as contribuições dos estudos foucaultianos para o que você nomeia de “função educador”?

Alexandre Filordi de Carvalho - Eu diria que os estudos foucaultianos instigam a função-educador a contemplar três esferas de afirmação criativa. Trata-se de: a) a relação do educador com a crítica, b) o educador no papel de intelectual específico e c) o educador na posição de educador infame. 

A crítica vai exercer, em primeiríssima mão, uma função interventora de limite diante dos excessos de governo e de condução que atingem amplas esferas da existência. O que acontece toda vez que obedecemos? O que é ativado? O que está em jogo? Como a educação também envolve uma arte de governar, a crítica, nesse caso, é uma capacidade de impor limites aos excessos de governo. Consequentemente, a crítica busca transformar as relações estabelecidas numa perspectiva de poder, produzindo outras relações mais abertas, fluidas, heterogêneas, menos arborescente e mais rizomática.

Mas a crítica também é um posicionar-se a fim de fraturar os focos de experiência que impedem outras derivações de saberes e de práticas que não sejam as já institucionalizadas em seus governos. Em causa encontra-se a ativação das incoerências em face de um sistema normalizador de saberes, de matrizes de comportamento, de possíveis e de impossíveis para certos modos de ser. Com efeito, desinstitucionalizar a educação implica em um constante exercício de questionamento das forças constrangedoras da instituição escolar, dos limites impostos a cada sujeito no que diz respeito ao pensar, ao saber, ao fazer, ao poder ser; implica duvidar dos significantes mestres interpostos entre os jogos de qualificação e de desqualificação administradas. Desinstitucionalizar a educação também é ativar posturas e ações para “não aceitar como verdade o que uma autoridade nos diz que é verdade”, como afirmava Foucault em sua conferência denominada O que é a crítica. 

Intelectual específico

Em outro nível, é preciso considerar aquilo que Foucault denominava de intelectual específico. O intelectual específico é aquele capaz de fazer de um conhecimento ou de uma área que pressupostamente domina um campo de luta política para a transformação das relações de poder. Trata-se, como Foucault sugeria, de mostrar às pessoas que elas são mais livres do que pensam, que tudo que consideram como verdadeiro e evidente não passa de aspectos produzidos em dado momento histórico, e que, portanto, podem ser diferentes do que são. 

Se pensarmos no papel do intelectual específico na função-educador, vemos que temos um convite à transformação das relações de entendimento e de valoração preponderantes na atualidade. Quer dizer que o educador é convidado a se colocar para além de suas atribuições burocráticas, fazendo dos saberes que domina uma navalha de cortar consenso, hegemonia, homonormatividades, repetições normativas e, sobretudo, condutas paralisantes de qualquer potencialidade criadora. Não devemos esquecer-nos que ao ensinar e formar, valer-se de uma ligação subjetiva com outrem, o educador está estreitamente vinculado à produção de verdade. E uma vez que no interior de todo saber circula uma verdade, constituir um novo regime político da verdade é sempre um desafio, como gostava de mencionar Foucault. Por isso mesmo, tal postura torna-se um ponto de tensão interposto no caminho de todos os que fazem funcionar sua posição específica na ordem do saber. 

IHU On-Line - Mas quem é o educador infame? E em que medida ele opera numa “dramaturgia do real”?

Alexandre Filordi de Carvalho - No célebre texto de Foucault A vida dos homens infames (in: Ditos e escritos, v. 4. Trad. Vera Lucia Avelar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2006), de 1977, o filósofo mostrou a história revigorada pelos acontecimentos não notados ou quase despercebidos, que testemunham e dão prova do mundo real sobre o qual nos colocamos, mas nem sempre damos conta de sua existência. A vida dos homens infames é a “história minúscula”, que cativa e anuncia “vidas breves, reencontradas ao acaso, vidas singulares, estranhos poemas”, nos termos de Foucault.

Com efeito, o educador infame é educador vivo que, ao ensinar e ao relacionar-se com os seus educandos, afirma toda singularidade humana destituída de fama. Isso é a dramaturgia do real. Em outros termos, tal educador é aquele que se faz no dia a dia, na micropolítica escolar ou em qualquer relação educativa. É ele um estranho poema despercebido, porém, dignificado e invocado como parcela viva da história, fazendo girar as experiências mais reais, menores, nem sempre vistas e valorizadas, mas que estão lá, aqui, além de aqui: em todos os recantos, formas, experiências em sala de aula — nos cem lugares possíveis. O educador infame tem o seu conhecimento voltado à pontualidade do acontecimento real. 

Heterotopias

No âmbito do infame, o educador deixa de ser o sujeito “caçado do mundo”, como mencionava Foucault. Isso quer dizer que ele afirma por intermédio de sua ação e de sua singularidade tudo o que intenta aniquilar as heterotopias e os “germes de um novo modo de existência”, nos termos de Deleuze. O educador infame, dessa maneira, traz para o âmbito do acontecimento histórico todo tipo de experiência outrora condenada a passar debaixo de todo discurso normativo e regulador, tal como ocorre nos condicionantes históricos da biopolítica. O infame, ao contrário, pulveriza e espraia as dimensões de possibilidades de experiências de rompimento com o localizado, com o hegemônico, com o homônimo. O infame também desapostiliza e desvestibulariza a existência. Por isso mesmo, passa a afrontar os canais de forças reprodutoras do modo de ser educador e do modo de ser educando. 

Desinsitucionalização 

Além de tudo isso, o infame é um nível de experiência fundamental aos processos de desinsitucionalização das relações humanas por intermédio da educação. Se de um lado toda a instituição requer para os seus sujeitos o cumprimento de seus rituais, inclusive nas formas mais perversas e hierárquicas possíveis, de outro lado o infame afirma-se como experiência de libertação possível ante tais rituais, pois o que mais importa é a consistência subjetiva dos sujeitos desde a potencialidade criadora de outras experiências à margem do institucionalizado.

 

IHU On-Line - Qual é a importância da escuta do professor à demanda do aluno na “função-educador”?

Alexandre Filordi de Carvalho - Se levarmos em consideração o que foi dito a respeito das estratégias de governamentalidade neoliberal e também acerca da função-educador na dimensão infame, é possível pensar que a escuta é uma possibilidade dupla de produzirmos experiências capazes de criar algo novo nos modos de afirmação dos sujeitos.

Desinstitucionalização

De um lado, a escuta é um rompimento com as abstrações dos indivíduos. Sabemos que nenhum aparelho burocrático escuta um indivíduo. Ele não está nem aí para os problemas e as demandas singulares de cada um. O aparelho burocrático age conforme os protocolos. Ele é um monstro frio. A escola pode ser assim também, e sendo de tal modo, ela continuará fazendo sentido à lógica do controle, dos dados, do oficialismo, das metas oficiosas. Mas escutar alguém é relacionar com as suas margens humanas, com as suas finitudes. Desse modo, a escuta pode ser uma experiência para potencializar a desinstitucionalização dos padrões burocráticos, logo hierárquicos, de relações, de entendimento, de trocas simbólicas, de produções discursivas inclusive.

Com isso, de outro lado, a escuta nos coloca no patamar da diferença, pois as demandas subjetivas entre falar e ouvir são sempre pessoais. E a produção das diferenças começa quando somos capazes de acolher o lugar da fala de outrem e a própria fala de outrem. Como sempre lembrava Guattari,  a fala ordenada linguisticamente é o signo fundamental para a existência de toda dominação subjetiva e, claro está, dominação das condições políticas de modos de ser. Romper com isso demanda ouvir livremente, dar espaço ao que é contingenciado. 

 

IHU On-Line - Nos dias de hoje, qual é o papel do professor num país como o Brasil?

Alexandre Filordi de Carvalho - Eu realmente tenho dificuldade em responder a essa questão. O Brasil é um país continental e extremamente rico em suas especificidades culturais e regionais. Eu, pessoalmente, não acredito na escola que planifica, que visa competência para o estado burocrático e a governamentalidade biopolítica. E não acredito no professor que reduplica essas mesmas estratégias, que vestibulariza a existência. Aliás, gostaria que as coisas não fossem assim.

Eu diria que o papel do professor é o papel do educador infame e do intelectual específico. Estar na sua especificidade, lutando contra a abstração numérica da biopolítica. Há coronelismo ainda, há senhores do engenho com terno e gravata, há dominação nos campos; há a vida ribeirinha sendo marginalizada e entregue à míngua pelas estratégias do agronegócio; há a violência no campo e na cidade, mas há também desemprego, fome, miséria, violência doméstica, alienação, desigualdade social, enfim, há tudo que é do homem.

Formas de convivência

Os professores estão também diante disso. Seria interessante se cada um pudesse pensar em aliar ao que ensina a ação infame, a afirmação singular em busca de subjetividades ativas, capazes de instigar ações de luta, de contestação, de movimento, de criação de outras formas de convivência, de relação humana e de modos de ser. Junto a isso estaria o caráter intelectual específico de cada um: como as ciências exatas podem ser instrumento de contestação? Como as humanidades e as artes podem ensinar a pensar, a agir e a fazer diferentemente do que fazemos? Não há fórmula para isso; não pode haver fórmula para isso. Mas pensar nessa direção já é algo que convoca à ação.

 

IHU On-Line - Quais são os maiores desafios da formação docente?

Alexandre Filordi de Carvalho - Hoje eu diria que um dos maiores desafios à formação docente é a superação do que denomino de empobrecimento subjetivo. O empobrecimento subjetivo é a total entrega aos padrões planificados de consumo, aos níveis mínimos de conhecimento técnico e objetivo, a uma redução completa da potencialidade humana em bobagem, em superficialidade, isto é, em reprodução estética, em reprodução de memes intelectuais, em reprodução de gostos e de afetos. 

Seria muito urgente, por exemplo, dedicarmos à leitura da literatura clássica uma maior atenção para refinar os perceptus e os afectus humanos. Proust  censurava os jornais porque, segundo ele, fazem com que prestemos atenção todos os dias a coisas insignificantes, ao passo que lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais. Nem sei o que Proust diria se reencarnasse nos dias atuais! A questão é que o refino subjetivo demanda ir contra a temporalidade do banal, a temporalidade do tempo perdido no surfe virtual sem sentido, na patifaria do riso fácil e na banalização do vulgar. É assustador ver os alunos na graduação – e inclusive na pós-graduação – com os celulares ligados, a cabeça curvada, formando o que chamo de homem letra C, quando se está falando de Goethe,  Proust, Nietzsche,  Deleuze, etc. É como se isso não fizesse sentido para o necessário imediato, o urgente, o banal. Enfim, penso que o grande desafio na formação docente hodierna é o de lutar contra o empobrecimento subjetivo que, por sua vez, reduplica o empobrecimento das formas de lidar com os desafios desumanizadores do mundo atual.

 

Leia mais...

- Foucault e a questão da crítica em torno da biopolítica. Artigo de Alexandre Filordi de Carvalho publicado na revista IHU On-Line, nº 335, de 28-06-2010;

- Do gozo Ubu ao gozo degenerado: a afirmação de sexualidades heréticas a partir de Foucault. Artigo de Alexandre Filordi de Carvalho publicado na revista IHU On-Line, nº 203, de 06-11-2006;

- A função-educador e a educação desviante. Artigo de Alexandre Filordi de Carvalho publicado na revista IHU On-Line, nº 374, de 26-09-2011. 

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