Edição 472 | 14 Setembro 2015

A biopolítica educacional para além dos muros da escola

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Márcia Junges e Ricardo Machado

Julio Roberto Groppa Aquino pensa os projetos de governamento da vida ligados aos processos pedagogizantes a serviço do capitalismo cognitivo

Não há biopolítica sem um processo pedagogizante. Isso porque, como explica o professor Julio Roberto Groppa Aquino, o governamento biopolítico ocorre por meio de ações de cunho pedagógico sem as quais seus intentos não seriam possíveis. “Vale lembrar que o escopo das práticas educacionais não se confina ao âmbito formal/escolar, inscrevendo-se como modalidade de condução das condutas em nível molar. Isso significa que se trata de compreender o tecido social como um todo, incluídos seus diferentes nichos populacionais, como alvo e terreno das intervenções biopolíticas na atualidade”, avalia o pesquisador, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Ao aproximar a contribuição teórica de Michel Foucault com o campo da Educação, o pesquisador atribui uma maior receptividade, na atualidade, do pensamento do francês com o esgotamento narrativo das teorias pedagógicas dominantes. “Isso significa que o efeito principal das ideias foucaultianas na educação é a materialização de um horizonte ético-político que, longe de qualquer ensejo prescritivo, se perfaz por meio do usufruto de um tipo de liberdade de pensar/agir não contingenciado pela miséria travestida em grandiloquência do mundo atual e, sobretudo, pelo enfadonho universo das ideias educacionais”, pondera. “Trata-se de indícios de uma rápida e indelével transformação de uma forma escolar que, no caso brasileiro, tão logo se pretendeu democrática, aliou-se aos ditames daquilo que alguns autores têm chamado capitalismo cognitivo”, complementa. 

Julio Roberto Groppa Aquino é graduado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp. Realizou mestrado e doutorado em Psicologia Escolar pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – USP e fez pós-doutorado na Universidade de Barcelona. Atualmente é professor titular da USP. É autor e organizador de inúmeros livros, entre os quais destacamos Da autoridade pedagógica à amizade intelectual: uma plataforma para o éthos docente (São Paulo: Cortez, 2014); Foucault pensa a educação: o diagnóstico do presente (São Paulo: Segmento, 2014) e Instantâneos da escola contemporânea (Campinas: Papirus, 2007).

No dia 21-09, às 14 horas, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU, o professor apresenta a conferência Estudos de Biopolítica no Brasil, evento que integra a programação do XVII Simpósio Internacional IHU | V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação. Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - O que os estudos de biopolítica e educação revelam sobre a realidade brasileira?

Julio Roberto Groppa Aquino - A tópica conceitual da biopolítica, quando abordada pelos estudos educacionais, acompanha a história recente da educação brasileira, sobretudo quando focaliza os enfrentamentos ao redor de três temáticas principais: corpo/sexualidade/saúde, o imperativo da inclusão e o corolário neoliberal. Nesse sentido, ao mesmo tempo que as discussões descortinam alguns dos tantos impasses testemunhados por uma sociedade em democratização, elas permitem também entrever os movimentos paradoxais, e por vezes contraditórios, operados pela racionalidade educacional vigente em relação ao próprio ideário democrático. A noção de biopolítica desponta, portanto, como um instrumento eficaz tanto de análise quanto de crítica da própria atualidade; para além, por sinal, de sua dimensão educacional.

 

IHU On-Line - Em que medida a biopolítica é, cada vez mais, a lógica que perpassa a educação em nosso país?

Julio Roberto Groppa Aquino - A biopolítica, como lógica estratégica de um tipo de governamento populacional flexível, não obstante ininterrupto e a céu aberto, tem nas práticas educacionais um braço forte. A bem da verdade, poder-se-ia afirmar que o governamento biopolítico vale-se essencialmente de ações de cunho pedagógico – ou, para ser mais preciso, pedagogizante –, sem o qual seus intentos não se efetivariam. Assim, vale lembrar que o escopo das práticas educacionais não se confina ao âmbito formal/escolar, inscrevendo-se como modalidade de condução das condutas em nível molar. Isso significa que se trata de compreender o tecido social como um todo, incluídos seus diferentes nichos populacionais, como alvo e terreno das intervenções biopolíticas na atualidade. Exemplo disso são as alianças implacáveis entre a mídia e a pedagogia, redundando em um governamento de tipo instrucional que parece ter invadido todas as esferas da vida, até mesmo as mais recônditas. Em suma, uma espécie de cruzada normalizadora de todo e qualquer gesto humano, por toda a extensão de toda a vida e, tanto pior, sem chance de recusa ou contestação, posto que abençoada pelo refrão ambíguo do respeito à diversidade, diferenças, etc. 

 

IHU On-Line - Quais são as principais repercussões do pensamento de Foucault  na pesquisa educacional brasileira?

Julio Roberto Groppa Aquino - A mobilização dos pesquisadores em torno do tema da biopolítica — uma noção tratada pontualmente na obra foucaultiana — é um bom exemplo das reverberações do pensador francês na pesquisa educacional nacional. A fecundidade das ideias foucaultianas nesse quadrante pode ser atestada na crescente atenção dispensada por um conjunto igualmente crescente de pesquisadores nas duas últimas décadas e meia, em que vimos consolidar-se um campo de estudos próprio. Por exemplo, no período de 1990, data do primeiro artigo de orientação foucaultiana rastreado nos principais periódicos da área, até 2014, foram publicados, apenas nos últimos cinco anos, mais da metade dos artigos que tomaram Foucault como interlocutor no plano temático, teórico e/ou metodológico. Trata-se de apenas uma mostra do impacto desse tipo de teorização no âmbito da pesquisa educacional. Isso sem contar os presumíveis, porém insondáveis efeitos nas práticas pedagógicas propriamente.

 

IHU On-Line - Por que o campo da educação é tão receptivo às ideias foucaultianas?

Julio Roberto Groppa Aquino - Creio que a porosidade — germinal, frise-se — às ideias de Foucault no quadrante educacional deve-se, sobretudo, ao esgotamento narrativo das teorias pedagógicas dominantes, muitas vezes enredadas em uma espécie de normatividade obtusa e, ademais, saturante. Como é amplamente sabido a partir dos estudos foucaultianos na educação, as práticas educacionais são palco de intencionalidades ora reformistas/salvacionistas desmesuradas, ora comprometidas com uma visão de mundo tecnocrática. Nessa perspectiva, a reboque do que um autor do campo outrora propôs, o contato com as ideias foucaultianas oportuniza uma pedagogia sem redenção, para além dos binarismos históricos que designam a discursividade aí em circulação. Isso significa que o efeito principal das ideias foucaultianas na educação é a materialização de um horizonte ético-político que, longe de qualquer ensejo prescritivo, se perfaz por meio do usufruto de um tipo de liberdade de pensar/agir não contingenciado pela miséria travestida em grandiloquência do mundo atual e, sobretudo, pelo enfadonho universo das ideias educacionais.

 

IHU On-Line - Qual foi o contexto de recepção/difusão das obras desse pensador em nosso país?

Julio Roberto Groppa Aquino - Para melhor compreender a recepção das ideias do pensador, seria preciso situá-la de acordo com três momentos distintos: primeiro, sua chegada em meio ao clima repressivo da ditadura e, depois, sua apropriação em meio aos ventos da redemocratização. No entanto, logo em seguida testemunharíamos a disseminação das ideias neoliberais no país, sobretudo a partir dos anos 2000. Daí um terceiro momento, se se quiser, no que se refere à recepção das ideias do pensador no Brasil. É sob a batuta de diferentes enquadres sócio-históricos que se pode compreender melhor a difusão de Foucault operada pelos estudos brasileiros e, por conseguinte, os diferentes matizes de sua apropriação. 

 

IHU On-Line - Qual é o maior legado de Foucault ao campo da Educação como um todo?

Julio Roberto Groppa Aquino - Como dito anteriormente, creio que se trata de uma atitude radicalmente crítica aos modos de pensar e agir quando em confronto com as novas gerações. Modos, quiçá, menos pretensiosos, de um lado, e mais recalcitrantes, de outro. Um fio de navalha, por assim dizer, por meio do qual o âmbito educacional pode reencontrar seu papel duplamente transitivo e transtornador no cenário das trocas sociais contemporâneas. Em outras palavras, trata-se de abrir o mundo aos que estão chegando nele; abrir, no caso, comportando uma dupla acepção: introduzir os mais novos no constituído e, ao mesmo, rasgar os véus que obstaculizam o acesso aos meandros de tal constituição. Daí que, por meio da companhia de Foucault, nada nos cabe além de fomentar uma espécie de vitalidade intelectual sóbria, infensa a qualquer tipo de adesão entusiástica às palavras de ordem do presente. Ou, se se quiser, trata-se de dispor o presente contra si próprio. Quem sabe, assim, se façam dilatar as fronteiras do próprio pensamento em favor de um futuro menos asfixiante. 

 

IHU On-Line - Em que consistem os processos de governamentalização escolar?

Julio Roberto Groppa Aquino - Muitos dos estudos recentes no campo dos estudos foucaultianos na educação oferecem instrumentos para deslindar certos aspectos dos processos de governamentalização em curso nas práticas educacionais. Desde os investimentos psicologizantes na autonomização gestionária discente sob o mantra do empreendedorismo/empresariamento, passando pelo clima reinante de desqualificação (hetero e autoimpingida, por sinal) da autoridade docente, até o incontornável impacto das tecnologias de informação e comunicação nos afazeres pedagógicos, entre outros tantos efeitos, o que se pode vislumbrar são certas mutações estruturais das pautas do agir e do convívio escolar. Trata-se de indícios de uma rápida e indelével transformação de uma forma escolar que, no caso brasileiro, tão logo se pretendeu democrática, aliou-se aos ditames daquilo que alguns autores têm chamado capitalismo cognitivo. Entenda-se que, desse ponto de vista, tanto a escola pública, com seu assistencialismo característico, quanto a escola privada, convertida em uma espécie de shopping center pedagógico, atuariam, cada qual a seu modo, em prol de um mundo sob a batuta da governamentalidade de feições biopolitizantes. Em suma, o desaparecimento da noção de educação como fator político determinante para a edificação de um mundo minimamente comum, doravante fragmentado em grupos identitários próprios digladiando pela fatia maior do bolo social.

 

IHU On-Line - Pensando nas obras de Foucault e no seu diagnóstico acerca da biopolítica, quais são os maiores desafios da escola contemporânea?

Julio Roberto Groppa Aquino - Para o presumível espanto de alguns, chego a pensar (e a praticar, inclusive), em certos momentos, uma recuperação estratégica de alguns expedientes típicos da escola disciplinar de outrora. Fazendo-o, logro compreender e operar o espaço escolar, na contramão dos discursos contemporâneos, como uma arena ficcional, e de natureza laboratorial, calcada em experiências, por um lado, de imersão vertical no passado e, por outro, de fomento a respostas crítico-criativas ao presente. Trata-se, em suma, de um convívio intensivo com os mortos, a matéria única de uma sala de aula que mereça seu nome, a fim de que nos constituamos como viventes igualmente dignos de um futuro que, não obstante, não será usufruído por nós. Em suma, a sala de aula como uma ponte artificiosa (composta de engenhosidade e de artificialidade, ressalte-se), entre o que nos foi legado e aquilo que seremos capazes de reconstruir com as próprias mãos. Eis, em linhas gerais, o que compreendo como amizade intelectual, tida como atitude de rigor acentuado e, ao mesmo tempo, de afeição desmedida aos que já se foram e, sobretudo, aos que estão por vir.  ■

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