Edição 472 | 14 Setembro 2015

O que significa ser humano se faculdades cognitivas e físicas forem aprimoradas?

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Patricia Fachin e João Vitor Santos

O filósofo Marcelo de Araujo analisa casos de aprimoramento humano e questiona a moralidade de experimentos que já estão sendo feitos, a exemplo da divisão do DNA de embriões

Quando o tema de discussão é aprimoramento humano, parece que os limites superam a imaginação e o que parecia ficção científica está ganhando o status de realidade. Para melhorar as faculdades cognitivas, como memória e capacidade de concentração, muitas pessoas já recorrem ao uso de drogas que são utilizadas para tratar doenças como Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade - TDAH e Alzheimer, a exemplo da Ritalina, Modafinil, apesar da falta de legislação para tratar do assunto no país. Mas, e se o melhoramento cognitivo fosse alcançado “por meio de próteses cerebrais, ou por manipulação genética, isso seria moralmente aceitável?”. E se atletas constatassem que o uso de próteses garantiria um desempenho melhor nas suas atividades, “os cirurgiões estariam legalmente — ou pelo menos moralmente — obrigados a realizar essas amputações voluntárias?” Ou ainda, se no futuro a tecnologia para edição do genoma humano se tornasse segura, e garantisse a erradicação de doenças como, por exemplo, Tay-Sachs, Huntington, fibrose cística e algumas formas de Alzheimer, “a busca por aprimoramento humano, por meio de manipulação genética, continuaria sendo moralmente inaceitável?” Essas são algumas das indagações feitas pelo filósofo Marcelo de Araujo, que estuda as implicações morais e políticas do aprimoramento cognitivo e humano de modo geral.  

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, o pesquisador explica que a discussão sobre aprimoramento humano tem suscitado vários problemas para a filosofia moral e a bioética, entre eles, um debate sobre se os indivíduos “teriam um ‘direito fundamental’ de buscar livremente, cientes dos riscos envolvidos, tecnologias que tenham o potencial para melhorar suas faculdades físicas e cognitivas”. Mas muito mais do que um debate sobre moral ou bioética, Araujo frisa que essa discussão recoloca no centro do debate uma das questões mais tradicionais e fundamentais da história da filosofia: “a questão sobre a compreensão que temos de nós próprios como seres humanos”. O problema tradicional da filosofia, “O que é o ser humano”, é atualizado a partir do questionamento: “O que significa se compreender como ‘ser humano’ a partir do momento em que nossas faculdades cognitivas e físicas forem radicalmente aprimoradas, ou talvez mesmo em parte substituídas, por meio da intervenção de novas tecnologias?”.

Marcelo de Araujo é graduado e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e doutor em Filosofia pela Universität Konstanz, na Alemanha. Atualmente é professor associado de Ética da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e professor adjunto de Filosofia do Direito da UFRJ. 

Confira a entrevista. 

 

IHU On-Line - Em que consiste sua pesquisa sobre aprimoramento humano?

Marcelo de Araujo - A expressão "aprimoramento humano" (ou human enhancement em inglês) diz respeito ao uso de drogas, equipamentos e procedimentos para melhorar nosso desempenho em diferentes tipos de atividades físicas ou mentais. O "aprimoramento humano" é especialmente conhecido nos esportes: um atleta, além de treinar duro, pode tentar "aprimorar" sua performance através do uso de medicamentos. Quando o medicamento em questão é banido por algum órgão regulador, isso é conhecido como doping. O objetivo do atleta é obter uma pequena margem de vantagem que ele ou ela não teria sem o uso do medicamento. 

Mas existem outros tipos de atividades em que as pessoas também vêm buscando "aprimoramento", sem que algum órgão regulador possa intervir para determinar se isso é ou não aceitável: jogadores de xadrez, soldados em operações militares e estudantes vêm recorrendo a medicamentos para se manter alertas no exercício de atividades que exigem muita concentração. A Federação Internacional de Xadrez - Fide já proíbe o uso de certas substâncias como Modafinil  em competições oficiais. Entre soldados envolvidos em certos tipos de operações militares ocorre justamente o contrário: são seus governos que exigem deles o uso de drogas como Modafinil para que possam permanecer alertas por mais tempo.  

 

Aprimoramento cognitivo 

Mas quando essas drogas são usadas por estudantes, não é claro se eles estão ou não cometendo algum tipo de infração. Evidentemente, eles estarão cometendo uma infração se obtiverem os medicamentos por meios ilegais, ou se forçarem outras pessoas a usar esses medicamentos. Mas haveria alguma coisa de moralmente inaceitável no uso dessas drogas para fins de "aprimoramento cognitivo"? Se tomamos, por exemplo, café para nos manter alertas durante longas horas de estudo, por que não poderíamos também recorrer a drogas na expectativa de obter uma performance ainda melhor do que teríamos se bebêssemos várias xícaras de café? E se — apenas a título de hipótese — pudéssemos melhorar nossas faculdades cognitivas (memória e capacidade para concentração, por exemplo), não por meio de drogas cujo efeito se perde após algumas horas, mas por meio de próteses cerebrais, ou por meio de manipulação genética? Isso seria moralmente aceitável? O uso de tecnologias para fins de aprimoramento agravaria desigualdades sociais? Ou, pelo contrário, tecnologias para aprimoramento não poderiam talvez proporcionar uma "compensação" para aquelas pessoas que, por conta de desigualdades sociais, não tiveram bom desempenho na escola ou em concursos? Em minha pesquisa tenho me ocupado de questões como essas, questões acerca das implicações morais e políticas da busca pelo aprimoramento humano. Trata-se de um debate ainda incipiente no Brasil, mas que tem recebido muita atenção, tanto em publicações acadêmicas como também na imprensa, em países como Alemanha, Estados Unidos e Inglaterra.

 

IHU On-Line - Quais os principais problemas filosóficos que emergem das discussões sobre aprimoramento humano?

Marcelo de Araujo - A questão sobre o aprimoramento humano suscita vários problemas para a filosofia moral e para a bioética. Há, por um lado, uma série de questões "normativas": quais tipos de aprimoramento deveriam ser permitidos, banidos ou exigidos pelos governos? Os indivíduos teriam um "direito fundamental" de buscar livremente, cientes dos riscos envolvidos, tecnologias que tenham o potencial para melhorar suas faculdades físicas e cognitivas? Pessoas que, em princípio, não teriam nenhum interesse em buscar aprimoramento para si mesmas não poderiam talvez se sentir indiretamente compelidas a buscar aprimoramento, se outras pessoas fizerem isso: se o mercado de trabalho, por exemplo, privilegiar a admissão de pessoas dispostas a usar medicamentos que as torne mais "focadas" e, portanto, capazes de "produzir" mais, não surgiria uma pressão social para que cada vez mais pessoas fizessem uso dos métodos de aprimoramento, contribuindo para o faturamento, por exemplo, da indústria farmacêutica? 

Além de questões normativas, a busca pelo aprimoramento suscita também, por outro lado, uma questão fundamental para a filosofia: a questão sobre a compreensão que temos de nós próprios como seres humanos. O que significa se compreender como "ser humano" a partir do momento em que nossas faculdades cognitivas e físicas forem radicalmente aprimoradas, ou talvez mesmo em parte substituídas, por meio da intervenção de novas tecnologias? Algumas pessoas subordinam a busca pelo aprimoramento a um projeto ainda mais amplo, conhecido como "transumanismo" ou "pós-humanismo".  O que está em questão na discussão sobre transumanismo é a pergunta sobre se não poderíamos modificar radicalmente a "natureza humana" e explorar novos limites para a "condição humana".

 

IHU On-Line - O uso de próteses tem para muitas pessoas uma finalidade, por exemplo, "corretiva" no sentido de reparar alguma limitação física. Contudo, toda vez que se discute o uso de próteses ou, por outro lado, a criação de ciborgues, o debate ganha uma dimensão moral. A partir de que momento o uso de próteses ou de melhoramento humano em geral pode suscitar uma discussão moral, ou seja, a partir de que momento essa passa a ser uma discussão sobre moral?

Marcelo de Araujo - Parece-me que a busca por próteses "corretivas" já envolve uma questão moral. O que se busca com a fabricação de uma prótese é permitir a indivíduos que, por exemplo, passaram por uma amputação, recuperar certas capacidades físicas naturais perdidas em um acidente. A prótese permite aos indivíduos, por exemplo, participar do mercado de trabalho em condição de igualdade com as outras pessoas. E mesmo que a prótese não proporcione a restituição de capacidades físicas naturais, ela pode, em alguns casos, ser relevante para restituir a autoestima do indivíduo. Ela pode, por exemplo, desempenhar um papel importante na compreensão que uma pessoa tem de si mesma como homem ou como mulher. É essa uma das funções, por exemplo, das próteses mamárias. 

Mas próteses podem também proporcionar, em algumas circunstâncias, mais do que a simples restituição de uma capacidade física: elas podem também proporcionar um tipo de aprimoramento. O cenário da ficção científica está repleto de figuras que adquirem poderes fantásticos graças ao uso de "superpróteses". Pense por exemplo em filmes como O Homem de 6 milhões de Dólares (1974-1978), Robocop (1987/2014) ou Eu, Robô (2004). Mais recentemente, o escritor australiano Max Barry , no romance O Homem Máquina (2011), narra a história de um homem que teve uma perna amputada em um acidente. Ele recebe então uma prótese no lugar da perna. O homem fica tão satisfeito com sua prótese que, aos poucos, decide substituir outras partes do seu corpo por próteses sofisticadas. Embora sejam obras de ficção científica, filmes e livros podem levantar questões filosóficas importantes sobre a moralidade do aprimoramento humano por meio de próteses.  

Pernas e braços naturais X superpróteses

Longe dos cenários de ficção científica, temos, por exemplo, o caso do corredor sul-africano Oscar Pistorius . Em 2012, nas Olimpíadas de Londres, Pistorius correu sobre próteses lado a lado com atletas normais. Esse foi um caso sem precedentes em competições desse tipo na história das Olimpíadas. Mas a participação de Pistorius gerou também muita controvérsia, pois houve na época a suspeita de que as próteses que ele usava não apenas o colocavam em condição de igualdade com outros atletas. As próteses, como várias pessoas alegaram, davam a Pistorius uma vantagem desleal sobre os demais competidores. Muitas pessoas insistiram então para que o Comitê Olímpico banisse o uso de próteses nas competições que envolvessem corredores normais. As próteses de Pistorius supostamente funcionavam como uma espécie de doping.  Mas poderíamos nos perguntar se essa proibição, que impede que "paratletas" disputem lado a lado com "atletas normais", não representaria um tipo de injustiça relativamente aos atletas portadores de necessidades especiais. O Comitê Olímpico, aparentemente, decidiu por enquanto não permitir que atletas que correm sobre próteses disputem novamente ao lado de atletas normais. Mas vamos supor que no futuro essa decisão seja revista, talvez por uma questão de justiça para com os atletas portadores de necessidades especiais; e vamos supor também, além disso, que atletas que correm sobre próteses comecem a ganhar, com cada vez mais frequência, medalhas de ouro em competições que rendem aos atletas milhões de dólares oriundos de patrocinadores e campanhas publicitárias: não poderia então surgir o desejo, entre vários atletas profissionais, de substituir suas pernas e braços naturais por superpróteses? Haveria algo de imoral nisso? 

Atletas menores de 18 anos poderiam exigir a amputação de uma perna para que mais tarde possam ter a expectativa de participar dos jogos olímpicos? Em 2014, a paratleta britânica Danielle Bradshaw, de 15 anos, que corria com uma prótese no lugar da perna direita, exigiu a amputação do pé esquerdo para que pudesse correr mais rapidamente e, assim, seguindo o exemplo de Pistorius, tivesse mais chances de disputar as Olimpíadas um dia. A amputação — até onde sei — não foi realizada. Mas os cirurgiões estariam legalmente — ou pelo menos moralmente — obrigados a realizar essas amputações voluntárias? Essas são questões que apenas aos poucos começam a emergir, mas que terão de ser debatidas pela filosofia moral daqui para frente. 

 

IHU On-Line - Quais são, ainda nesse sentido, as discussões morais acerca do aprimoramento cognitivo e do aprimoramento genético? Que tipo de aprimoramento cognitivo ou genético é ou não considerado moral?

Marcelo de Araujo - "Aprimoramento cognitivo" e "aprimoramento genético" são categorias diferentes. A primeira diz respeito a um domínio de atividades passível de aprimoramento; a segunda, por outro lado, diz respeito a um método de aprimoramento. Por "aprimoramento cognitivo" se entende um aumento de nossa capacidade para memorizar, processar informação, e de nos concentrarmos durante longos períodos de tempo. Quando uma pessoa tem sua capacidade cognitiva comprometida em função de problemas como, por exemplo, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade - TDAH , ou Alzheimer , ela pode recorrer a medicamentos na expectativa de "tratar" o seu problema. Nesse caso, não falamos em "aprimoramento", mas de "tratamento". 

Mas quando uma pessoa, que não tem nenhuma doença que comprometa suas faculdades cognitivas, recorre a medicamentos na expectativa de melhorar sua capacidade de se concentrar e memorizar, então falamos em "aprimoramento cognitivo", e não em "tratamento". No debate contemporâneo sobre a moralidade do aprimoramento cognitivo, o "método" para aprimoramento geralmente envolve o uso de medicamentos como, por exemplo, Ritalina , Modafinil (vendido no Brasil como Stavigile), Adderall , Piracetam , Sunifiram , etc. Essas drogas passaram a ser conhecidas como "smart drugs" ou "nootrópicos". Seus efeitos de longo prazo sobre as pessoas que não necessitam de nenhum tipo de tratamento ainda é desconhecido. E mesmo a capacidade que elas teriam de realmente proporcionar alguma forma de aprimoramento cognitivo é às vezes contestada. 

Smart drugs

Parte do problema relativo à falta de conhecimento sobre a eficiência e a segurança envolvidas no uso dessas drogas decorre do modo como governos e a sociedade civil costumam lidar com a distinção entre "tratamento" e "aprimoramento". Ninguém nega que tenhamos uma obrigação moral de, tanto quanto possível, proporcionarmos às pessoas remédios para fins de "tratamento" de eventuais deficiências cognitivas. Mas, por outro lado, a moralidade do "aprimoramento" cognitivo permanece questionável. Prescrever e adquirir, para fins de aprimoramento, medicamentos originalmente criados para o tratamento de problemas como TDAH, narcolepsia, ou Alzheimer é, em quase todos os países, ilegal. Mas isso, por outro lado, não tem impedido estudantes de buscar drogas como Ritalina e Modafinil para fins de aprimoramento. A proibição, além de colocar essas pessoas em uma situação de ilegalidade, desestimula as pesquisas sobre a eficácia e a segurança de substâncias que, em princípio, poderiam ser usadas de modo seguro e eficaz para fins de aprimoramento, e não apenas para tratamento. A proibição e a desinformação acabam tendo também como consequência a gradual formação de uma rede para o comércio ilegal e difusão de "smart drugs" sobre as quais os governos têm pouco ou nenhum controle. 

Mas é importante notar que o recurso a medicamentos não é o único "método" na busca por aprimoramento. Já existem no mercado aparelhos eletrônicos de uso externo — e de segurança e eficácia ainda questionáveis — para promover a concentração e o aprendizado através da "estimulação magnética transcraniana".  Especula-se também que, no futuro, seria tecnicamente possível, ainda que moralmente inaceitável, manipular geneticamente embriões humanos para fins de aprimoramento cognitivo. Essa especulação torna a discussão sobre a moralidade do aprimoramento humano ainda mais complexa e envolta em controvérsias, pois o aprimoramento humano por meio de manipulação genética não afetaria apenas um indivíduo, mas todos os descendentes do indivíduo "aprimorado". Isso significa dizer que os riscos envolvidos no aprimoramento afetariam toda a germ-line do indivíduo. A incerteza sobre como o aprimoramento cognitivo (ou outras formas de aprimoramento humano) poderia afetar negativamente a vida de gerações de pessoas seria, a meu ver, uma forte razão para, pelo menos por enquanto, rejeitarmos como moralmente inaceitável o aprimoramento humano por meio de manipulação genética.

Experimentos: editando o DNA de embrião humano

Em abril de 2015 uma equipe de cientistas chineses publicou um artigo no qual afirmam ter "editado" o DNA de um embrião humano.  O artigo desencadeou rapidamente um debate mundial sobre a moralidade desse tipo de experimento. Aparentemente, as revistas Nature e Science se recusaram a publicar o artigo da equipe chinesa por razões éticas. Mas o artigo acabou sendo publicado na revista Protein & Cell, sediada em Pequim. Os cientistas chineses tiveram o cuidado de descartar os embriões geneticamente modificados de modo a evitar que eles se desenvolvessem a ponto de formar um feto humano. O descarte de embriões humanos, é importante mencionar, ocorre também cotidianamente em clínicas para reprodução assistida.  A pesquisa dos cientistas chineses, embora não tenha sido inteiramente bem sucedida, e a despeito de todas as críticas, foi realizada na expectativa de que, no futuro, seja possível encontrar uma cura para doenças congênitas tais como Tay-Sachs, Huntington, fibrose cística e algumas formas de Alzheimer. Não se tratava, portanto, de aprimorar um embrião humano, mas de corrigir problemas associados a doenças hereditárias. No entanto, a simples possibilidade de que, no futuro, o genoma humano possa ser editado para fins de aprimoramento foi suficiente para que alguns cientistas repudiassem publicamente o experimento chinês e conclamassem a comunidade científica internacional a uma suspensão — uma "moratória" — desse tipo de pesquisa.  Essa reação, contudo, não me parece coerente com práticas já existentes, e reguladas juridicamente, inclusive no Brasil. 

Vamos supor que a tecnologia para edição do genoma humano se torne eficaz e segura no futuro, tão eficaz e segura que ela poderia ser usada para praticamente erradicar da humanidade doenças como, por exemplo, Tay-Sachs, Huntington, fibrose cística e algumas formas de Alzheimer. Num cenário como esse, a busca por aprimoramento humano, por meio de manipulação genética, continuaria sendo moralmente inaceitável? Muitas pessoas provavelmente alegariam que sim: que o aprimoramento por meio de intervenção no genoma humano seria moralmente inaceitável, pois constituiria uma forma de eugenia. Mas, a meu ver, não é inteiramente claro por que razão deveríamos rejeitar o aprimoramento humano nesse caso. Muitos casais, e também mulheres que preferem engravidar sem o envolvimento afetivo ou sexual com um homem, recorrem à "reprodução assistida" e a bancos de sêmen para gerar uma criança. Em 2015 constatou-se que o número de importações de sêmen humano para fins de fertilização in vitro aumentou em mais de 500% no Brasil.  Isso levou a empresa americana Fairfax Cryobank a abrir uma filial em São Paulo. O Brasil proíbe a comercialização de sêmen humano, mas não proíbe a sua importação.

Bancos de sêmen e as compra pela internet 

Diferentemente do que ocorre no Brasil, os bancos de sêmen nos Estados Unidos fornecem informações detalhadas sobre o histórico do doador. Só não revelam a sua identidade. No site em inglês da Fairfax Cryobank é possível escolher e comprar pela internet o sêmen, para posterior fertilização de um óvulo, conforme a "cor dos olhos", "cor do cabelo", "raça" e, é claro, conforme os indícios sobre a "inteligência" do doador. Evidentemente, não há nenhuma garantia de que a fertilização in vitro resultará em uma criança com todas as características atribuídas ao doador do sêmen utilizado. Mas o direito brasileiro, e mais especialmente o direito americano, não proíbem as pessoas de escolher livremente uma amostra de sêmen que tenha mais probabilidade de gerar uma criança com as características escolhidas, características que incluem, evidentemente, indícios da inteligência do doador. Mas se não proibimos as pessoas de fazer essas escolhas num cenário de incerteza como ocorre atualmente, por que deveria ser proibido num cenário futuro — ainda que meramente hipotético — no qual as chances de se gerar uma criança "cognitivamente aprimorada" seriam bem maiores?

No que concerne ao aprimoramento por meio de manipulação genética, é importante lembrar também que, embora seja atualmente rejeitado de modo enfático pela comunidade científica no caso de seres humanos, ele já existe para o aprimoramento de sementes de plantas, mais resistentes a pragas, e para o aprimoramento de animais para abate, menos vulneráveis a infecções. 

 

IHU On-Line - De que maneira a atual concepção sobre melhoramento humano pode ser entendida como extensão ou variação do nosso desejo natural de aprimoramento?

Marcelo de Araujo - Eu usei aqui a expressão "aprimoramento humano" em um sentido bem restrito, para me referir unicamente ao aprimoramento buscado por meio de medicamentos, próteses, aparelhos, manipulação genética, etc. Mas é desnecessário dizer que a busca pelo "aprimoramento", em um sentido mais amplo, é bastante antiga. Aristóteles, por exemplo, já havia percebido, na antiguidade, que há uma correlação entre, de um lado, nossos hábitos alimentares e o estilo de vida que levamos e, por outro lado, nosso melhor ou pior desempenho no exercício de atividades físicas. Para o "aprimoramento cognitivo", em um sentido mais amplo da expressão, a "tecnologia" mais antiga e ao mesmo tempo mais confiável ainda é a educação: boas escolas, acesso à cultura, hábitos de leitura, etc. A busca pelo aprimoramento num sentido mais restrito não tem por objetivo substituir o aprimoramento num sentido mais amplo. O atleta que recorre a medicamentos para obter uma margem de vantagem não deixa de treinar duro. E estudantes que recorrem à Ritalina ou Modafinil para obterem boas notas não deixam de estudar com afinco. O aprimoramento no sentido restrito visa suplementar o aprimoramento em sentido amplo. 

 

IHU On-Line - Historicamente, como se iniciou a discussão sobre o aprimoramento humano? A partir de que momento passou a ser um tema relevante na filosofia e, desde então, como tem se dado a discussão na área?

Marcelo de Araujo - No caso específico do aprimoramento humano por meio de próteses, que é um tema pelo qual tenho me interessado atualmente, percebi que houve um debate sobre esse tema logo após a Primeira Guerra Mundial, sobretudo no contexto da Alemanha, devastada pela guerra. Isso, é claro, ocorreu porque o número de homens mutilados em consequência dos combates era monumental. Mas esse debate não era ainda um debate do qual participassem muitos filósofos. Foi, sobretudo, nas artes visuais e em obras de ficção que se discutiu a questão do aprimoramento humano por meio de próteses na primeira metade do século XX. Parece-me que, no âmbito do debate filosófico, a discussão sistemática sobre a moralidade do aprimoramento humano é bem mais recente. Isso se deve, presumo, aos avanços tecnológicos no âmbito da engenharia genética, da farmacologia, da medicina reprodutiva e da mecatrônica nos últimos anos. 

 

IHU On-Line - Como a ideia de "corpo humano como máquina" aparece em obras filosóficas? É possível mencionar exemplos de filósofos que chamam atenção para esse aspecto?

Marcelo de Araujo - A compreensão do corpo humano como uma espécie de máquina remonta à filosofia mecanicista do século XVII. No Discurso do Método, de 1637, René Descartes  já comparava o ser humano a "autômatos, ou máquinas moventes". No Tratado do Homem, de 1630, Descartes sugere que nossos órgãos internos interagem entre si como peças de uma máquina, como as molas e engrenagens de um sofisticado relógio. Thomas Hobbes , logo nas primeiras linhas do Leviathan, de 1651, sugere que nada nos impede de produzir "vida artificial". O mecanicismo de Hobbes e Descartes foi retomado mais tarde por filósofos como Julien Offray de La Mettrie , que publicou em 1748 um tratado intitulado O Homem Máquina. La Mettrie, na verdade, dá um passo adiante e nega que haja qualquer diferença qualitativa entre animais e seres humanos. Ainda no século XVIII o "homem máquina" deixa de ser uma simples especulação filosófica para inspirar também a obra de engenheiros e inventores que, dentro das possibilidades técnicas do século XVIII, se deram por tarefa criar suas próprias versões de "vida artificial". Jacques Vaucanson , por exemplo, construiu um tocador de flauta em tamanho natural. Pierre Jaquet-Droz  criou um "autômato" capaz de desenhar e de escrever frases simples a partir de um sistema pré-programável de engrenagens.  Aliás, o filme Hugo (2011), de Martin Scorsese , faz uma referência ao "autômato" escritor e desenhista criado por Pierre Jaquet-Droz. ■

 

Leia Mais...

- Biotecnologias e reprodução humana: limites e possibilidades. Edição nº 68, 28-07-2003; 

- As tecnociências e a modelagem da vida. Edição nº  456, 20-10-2014.

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