Edição 471 | 31 Agosto 2015

Por uma metrópole livre

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Ricardo Machado e João Vitor Santos

Dirce Koga vê em políticas públicas, atravessadas por experiências como coletivos de convivência, alternativas aos modos capitalistas de constituição da Metrópole

O sistema capitalista interfere e pode ser visto materialmente nas cidades. É ele que dita as regras de urbanização, redesenhando os territórios nas cidades. É desta perspectiva que fala a professora e assistente social Dirce Koga, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Arrisco dizer que a Metrópole demanda ser compreendida como parte de um contexto sócio-histórico, e no caso dos dias atuais como um produto da urbanização. Nesse sentido, penso que se faz necessário compreender a Metrópole a partir do contexto da urbanização no modo capitalista de produção das cidades”, explica. Dirce é a conferencista do próximo encontro do 2º Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum. A primeira palestra ocorre na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no Instituto Humanitas Unisinos, na terça-feira, dia 01-09, no Campus Central da Unisinos, em São Leopoldo. Já o segundo evento ocorre no dia seguinte, 2 de setembro, quarta-feira, no Campus de Porto Alegre da Unisinos (Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744).

Para a professora, as desigualdades geradas pelo capital criam topografias muito claras e “as suas topografias sociais expressam o modelo desigual de produzir cidade”. Assim, acredita que “as metrópoles do século XXI convivem cotidianamente com processos de desterritorialização e reterritorialização, produzindo novos espaços”. São as privatizações dos espaços públicos, selecionando-os para alguns. Ou o aumento do déficit de moradias para pessoas mais pobres. A saída para equalizar o capital e libertar a Metrópole seriam as políticas públicas. Porém, Dirce alerta: “as políticas públicas no Brasil não partem dos chãos das cidades, e sim de suas próprias institucionalidades”. Assim, sem verdadeiramente ouvir “o chão”, não se consegue atender suas demandas.

É assim que se inscreve o desafio das políticas públicas. Faz-se necessário, nas palavras de Dirce, “contextualizar os textos: inverter a lógica, partir do chão para a institucionalidade”. Nesse sentido caminham metodologias como o mapa falado. “O instrumento do mapa falado possibilita trazer as vivências, as percepções, as experiências que se dão no cotidiano dos territórios da cidade como expressões de proteção/desproteção social, e que configuram demandas para as políticas públicas”, aponta.

Dirce Harue Ueno Koga é graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Possui mestrado, doutorado e pós-doutorado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Atualmente é pesquisadora, professora titular da Universidade Cruzeiro do Sul e Coordenadora do Programa de Mestrado em Políticas Sociais na mesma universidade. Ainda é professora assistente da PUC–SP, no Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social. Coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas Cidades e Territórios junto ao Programa de Mestrado em Políticas Sociais da Universidade Cruzeiro do Sul.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como a senhora compreende o conceito de Metrópole?

Dirce Koga - Embora não seja especialista na temática metropolitana, arrisco dizer que a Metrópole demanda ser compreendida como parte de um contexto sócio-histórico, e no caso dos dias atuais, como um produto da urbanização. Nesse sentido, penso que se faz necessário compreender a Metrópole a partir do contexto da urbanização no modo capitalista de produção das cidades.

Destaco como uma referência nesse debate atual o geógrafo David Harvey. Em seu livro A produção capitalista do espaço , mais especificamente no capítulo que trata “Do administrativo ao empreendedorismo”, a urbanização é compreendida como “o conjunto espacialmente estabelecido dos processos sociais (...) e produz diversos artefatos: formas construídas, espaços produzidos e sistemas de recursos de qualidades específicas, todos organizados numa configuração espacial distinta” (p.168). E complementa dizendo que “a condição capitalista é tão universal, que a concepção do urbano e da ‘cidade’ também se torna instável, não por causa de alguma definição conceitual deficiente, mas exatamente porque o próprio conceito tem de refletir as relações mutáveis entre forma e processo, entre atividade e coisa, entre sujeitos e objetos”.

Penso que a Metrópole se configura em meio a estas relações mutáveis, cujas formas e dinâmicas se apresentam como produtos desses processos relacionais. Ou seja, suas expressões, formas e formações configuram um modo de fazer e ser cidade.

 

HU On-Line - Quais são as particularidades das metrópoles no século XXI?

Dirce Koga - Talvez uma primeira particularidade das metrópoles do século XXI é que elas se estabelecem em um contexto mundial, em que pela primeira vez (em 2008) a população urbana supera a do campo. Esse é um marco significativo que indica a tendência de processos não somente de crescimento populacional das metrópoles, gerando o que a Organização das Nações Unidas - ONU denomina como “megalópoles”. São megacidades com mais de 10 milhões de habitantes (como é o caso de São Paulo, que apresenta, segundo o Censo de 2010, 11,2 milhões de pessoas), como também de conurbação entre metrópoles, como já ocorre entre Campinas e São Paulo.

Outra particularidade é a atração/produção de megaeventos (como ocorreu com a Copa do Mundo de Futebol em 2014, no caso brasileiro) e empreendimentos. Eles geram novas dinâmicas de mobilidade urbana, e terminam provocando o deslocamento de milhares de pessoas ao mesmo tempo. As metrópoles do século XXI convivem cotidianamente com processos de desterritorialização e reterritorialização, produzindo novos espaços (como os chamados “não lugares”  — aeroportos, shopping centers), como privatizando espaços públicos e aumentando o déficit de moradias dignas para as parcelas mais pobres.

 

IHU On-Line – Como as metrópoles se configuram como territórios de vida?

Dirce Koga - A partir das pesquisas que temos realizado na cidade de São Paulo, sob coordenação da professora Aldaiza Sposati, em torno da relação exclusão/inclusão social, podemos observar que os territórios de vida de uma metrópole se apresentam com formas e dinâmicas muito diversas. Assim, a visão de centro-periferia já não consegue dar conta.

Trata-se, como já vêm apontando os urbanistas, de que há múltiplas centralidades em uma metrópole. Os chamados centros históricos das metrópoles também estão sujeitos a novas dinâmicas, em função de novos usos dos seus espaços. Bem como as franjas das metrópoles tendem a sofrer novas ocupações. E, nesse cenário, talvez uma das marcas mais fortes dos territórios da metrópole (embora talvez não só no caso das delas, pois se trata de um modelo brasileiro de produzir cidades) seja a coexistência da cidade legal com a cidade ilegal, a cidade e a não-cidade, em que prevalecem os interesses do capital imobiliário e financeiro e não o direito à cidade e à cidadania. Os territórios de vida da Metrópole são produzidos para o capital e não para os seus cidadãos. 

 

IHU On-Line – De que maneira podemos pensar os territórios para além da questão geográfica, compreendendo-o, também, a partir da lógica dos afetos?

Dirce Koga - Aqui penso que a perspectiva do “território usado” do geógrafo Milton Santos , bem como a dimensão da territorialidade fazem muito sentido para tratar do território para além do seu atributo físico-administrativo. Penso que significa tratar o território como “ser vivo”, em que se estabelecem relações e práticas sociais diversas e cotidianas, solidárias, tensas, conflituosas e violentas. Nessas dinâmicas do cotidiano, se conformam “com-vivências” que produzem diversos tipos de vínculos ou mesmo fraturas sociais, que envolvem também diversos agentes institucionais, não institucionais para além das relações mais privadas ou familiares.

Estudos da socióloga Vera Telles  têm sido fundamentais para tentar desvendar essas “dobraduras” que envolvem nas “tramas das cidades” diversos mundos. Inclusive o mundo do ilícito, para além do legal/ilegal. É nesse contexto que visualizo os diferentes usos dos territórios em que são processadas as vivências, as experiências, as construções/desconstruções de vínculos afetivos.

 

IHU On-Line – Como se constituem as topografias sociais dentro da metrópole? Quais são os tipos de topografias sociais mais caracteristicamente brasileiros?

Dirce Koga - Seguindo na linha da produção capitalista da Metrópole, as suas topografias sociais expressam o modelo desigual de produzir cidade. Se configuram desde as “cidades de muros” (Teresa Caldeira ) em torno dos condomínios de alto padrão e altamente munidos de serviços de segurança privada, até as não cidades formadas pelas ocupações precárias dos espaços da cidade irregular.

As topografias sociais denotam desde uma proteção privada até uma total desproteção pública. Nesse ponto da régua entre a proteção privada à proteção pública, vamos encontrar uma diversidade de topografias sociais, em que figuram não tão somente as condições individuais socioeconômicas das famílias e suas moradias, mas especialmente o grau de presença/ausência de serviços públicos: infraestrutura urbana, saúde, educação, assistência social, cultura e lazer. Essas topografias são semelhantes nas cidades brasileiras: configurações de não cidades em meio a algumas privilegiadas ilhas de cidade.

 

IHU On-Line – De que forma as políticas públicas, em sua expressão hegemônica, homogeneízam as singularidades das metrópoles? E, em contrapartida, de que forma dão vazão às multiplicidades?

Dirce Koga - As políticas públicas no Brasil não partem dos chãos das cidades, e sim de suas próprias institucionalidades. Dessa forma, não há lugar para as singularidades nem da metrópole nem de outras cidades, mesmo aquelas com menos de 20 mil habitantes, que constituem 70% das cidades brasileiras. A valorização ou vazão das singularidades e multiplicidades ocorre em função da própria força mobilizadora e de resistência à homogeneidade das populações dessas cidades, que reivindicam, lutam para conseguir novas linhas de transporte público, novos espaços públicos de convivência, reinventam usos dos espaços privados.

 

IHU On-Line – Quais são os principais desafios na construção de políticas públicas compatíveis com o momento atual das nossas sociedades?

Dirce Koga - Destacaria o desafio de contextualizar os textos das políticas públicas: inverter a lógica, partir do chão para a institucionalidade.

 

IHU On-Line – Como o mapa falado, enquanto metodologia de análise social, ajuda na construção de políticas públicas?

Dirce Koga - O instrumento do mapa falado possibilita (não significa que em si mesmo vá resultar em processos de fato participativos) trazer as vivências, as percepções, as experiências que se dão no cotidiano dos territórios da cidade como expressões de proteção/desproteção social, e que configuram demandas para as políticas públicas.

 

IHU On-Line – Há maneiras de pensar um avanço social para além da institucionalidade das políticas públicas? Por quê?

Dirce Koga - Sim. Porque há um acúmulo de experiências e conquistas na sociedade. Como a democracia, a força da mobilização popular, novos conhecimentos populares e científicos que configuram um acervo coletivo de saberes, com todos os seus equívocos e acertos, e que configuram novas estratégias solidárias de sobrevivência e resistência cultural que podem protagonizar as políticas públicas.

 

IHU On-Line – De que forma os afetos são potentes para a construção de territorialidades de vidas fundamentadas eticamente?

Dirce Koga - Acho que esta é uma questão complexa e importante, que exigiria aprofundamentos aos quais não me sinto apta a desenvolver. Mas, em tempos em que assistimos perplexos a cenas de barbárie e banalização da condição humana em nossas sociedades, e em particular na sociedade brasileira, penso que se faz urgente alargar o debate sobre o que se passa no cotidiano dos nossos territórios de vivência em nossas cidades, que territorialidades estão sendo (re)construídas ou destruídas, tendo em conta que as fronteiras nos campos de disputa da luta social estão nebulosas e embaralhadas. Ainda acredito que a força está nos processos coletivos de convivência, diálogo e tolerância na busca por construir novas territorialidades mais humanas, mais justas em nossas cidades.■

 

Leia mais...

- A reinvenção das políticas públicas baseadas na diversidade. Entrevista com Dirce Koga, publicada na revista IHU On-Line, edição 455, de 29-09-2014.

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