Edição 471 | 31 Agosto 2015

Método APAC e uma outra concepção de presídio

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Leslie Chaves e João Vitor Santos

Valdeci Ferreira apresenta um sistema carcerário em que o preso tem a chave da cadeia, há menos punição, mais ressocialização e experiências de cooperação e valorização do humano

Pensar num presídio que é gerido pelos próprios apenados não surpreende mais ninguém. Diariamente, o noticiário dá conta de cadeias em que o crime organizado é a lei e a privação do convívio social é só um detalhe. A partir destes lugares, o crime emana, forma mão de obra e o poder policialesco se encarrega de manter o preso à margem do social. A Associação de Proteção e Assistência aos Condenados – APAC ousou pensar na metáfora do preso com a chave da própria cela. No entanto, tirou a cela, apostou no trabalho, na espiritualidade religiosa, na valorização do ser humano, da família e ainda ofereceu assistência jurídica e à saúde. Além disso, tirou a força policial militarizada. “Em regra são estabelecimentos prisionais humanos, bem limpos e cuidados, com disciplina rígida”, define Valdeci Ferreira, diretor executivo da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados – FBAC.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Ferreira apresenta esse método e o sistema de funcionamento dos ambientes geridos por essa lógica. “Os recuperandos que alcançaram um patamar considerável na recuperação colaboram na administração do presídio. E, com isso, ajudam na decisão de mudança dos seus companheiros através de seu testemunho de mudança de vida. Isso tem por consequência o rompimento dos laços com o crime”, completa. Os resultados são a recuperação integral do apenado. “Os avanços estão diretamente ligados aos resultados: baixo custo, baixa reincidência, ausência de rebeliões, atos de violência, entre outros”, comemora. 

Valdeci Ferreira é natural de Itapecerica, Minas Gerais. Graduado em Teologia e Direito, é o fundador da APAC de Itaúna e hoje Diretor executivo da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados - FBAC. Aos sete anos, Valdeci trabalhava vendendo picolés, engraxando sapatos e recolhendo latinhas. Aos 12 anos, trabalhou em um bar, em seguida passou a vender roupas e foi cobrador. Formou-se no curso técnico em metalurgia e foi para a cidade de Sete Lagoas, também em Minas Gerais. Nessa cidade, começou a lecionar metalurgia e fundição. Mas, com a crise no setor, tornou-se lojista em Belo Horizonte. Acabou indo para Itaúna com o objetivo de dar aos pais uma casa própria. Após dois meses de sua chegada, começou a visitar a cadeia pública e se impressionou com as condições. Foi lá que conheceu a APAC e começou seu trabalho.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – De que modo o senhor avalia o sistema carcerário brasileiro?

Valdeci Ferreira - Está próximo de um colapso, com prisões superlotadas e nenhuma preocupação em recuperar os presos. Várias prisões são dominadas por facções criminosas onde planejam os crimes a serem executados do lado de fora. O Estado gasta um valor muito alto e não consegue o resultado proposto com a aplicação da pena. 

 

IHU On-Line – O método de Associação de Proteção e Assistência a Condenados - APAC  é uma invenção brasileira. Como surgiu a proposta de criação desse sistema?

Valdeci Ferreira - Sim. O método foi idealizado por Mário Ottoboni  e sua aplicação começou na cidade de São José dos Campos, em São Paulo. A proposta surgiu em 1972, através de um grupo de cristãos liderados por Ottoboni. Estavam preocupados em recuperar os presos aplicando um cumprimento de pena mais humano a eles e a seus familiares.

 

IHU On-Line – De que modo funciona e quais são os principais objetivos do método APAC?

Valdeci Ferreira - O método funciona em conformidade com a Lei 7210/84 (Lei de Execução Penal). Possui regulamentos próprios baseados na experiência de mais de 40 anos administrando prisões. Está alicerçado em 12 elementos fundamentais. Tem como objetivo recuperar o preso, proteger a sociedade, socorrer a vítima e promover a Justiça.      

 

IHU On-Line – Como são as condições dos presídios gerenciados pelo método APAC?

Valdeci Ferreira - Em regra são estabelecimentos prisionais humanos, bem limpos e cuidados, com disciplina rígida. Os recuperandos que alcançaram um patamar considerável na recuperação colaboram na administração do presídio. E, com isso, ajudam na decisão de mudança dos seus companheiros através de seu testemunho de mudança de vida. Isso tem por consequência o rompimento dos laços com o crime.     

 

IHU On-Line – Como é organizado o funcionamento de um presídio gerido por esse método?

Valdeci Ferreira - Não tem a participação de agentes penitenciários, policiais civis e militares. A disciplina e a segurança são feitas em parceria com os recuperandos que participam do Conselho de Sinceridade e Solidariedade - CSS. Existe uma equipe administrativa (alguns funcionários e dezenas de voluntários). A Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados - FBAC  promove constantemente cursos para capacitação desses profissionais. Investe ainda em cursos para formação dos recuperandos e capacitação de voluntários.

 

IHU On-Line – Na trajetória de funcionamento do método APAC, quais foram os principais avanços e desafios enfrentados por esta iniciativa?

Valdeci Ferreira - Os avanços estão diretamente ligados aos resultados: baixo custo, baixa reincidência, ausência de rebeliões, atos de violência, entre outros. Do ponto de vista institucional, um maior apoio dos poderes Legislativo, Executivo, Judiciário, Ministério Público e sociedade civil organizada. Os desafios estão ligados à implantação de novas APACs e na consolidação das já existentes. A uniformização na aplicação da metodologia e a formação da equipe também são desafios.

 

IHU On-Line – Qual é o perfil para o apenado ser inserido no método APAC?

Valdeci Ferreira - Não exige perfil. A condição é que o preso tenha sido condenado e manifestar o desejo de cumprir pena nesse modelo, ter cometido o crime ou ter familiares na Comarca. 

 

IHU On-Line – Pesquisas sobre o método APAC indicam que o número de fugas e reincidências são baixos entre os apenados nesse sistema. A que o senhor atribui esse fato?

Valdeci Ferreira – Um tratamento mais humanizado somado à corresponsabilidade do recuperando na sua recuperação e de seu companheiro.  

 

IHU On-Line - Que contribuições o método APAC pode trazer para a reversão do processo de desumanização dos presídios?

Valdeci Ferreira - Tudo que o sistema prisional faz de ruim, o método APAC procura não fazer. Com isso o método tem contribuído para uma mudança positiva, ainda que tímida, no sistema prisional comum.

 

IHU On-Line – Estudos apontam que o imaginário social brasileiro vincula vingança e sofrimento ao sistema carcerário, em detrimento da ideia de reabilitação das pessoas que cometeram crimes. Como é possível modificar esse imaginário?

Valdeci Ferreira - Aplicar o sofrimento e a vingança ao preso se tornou cultural em nossa sociedade. Mas cultura não se muda de uma noite para o dia. Porém, percebo que o método APAC, de forma lenta, tem ajudado nesta mudança que será de forma gradativa.

 

IHU On-Line – Qual a perspectiva de implantação do método APAC em mais presídios no Brasil? 

Valdeci Ferreira – Hoje são 46 APACs. Temos a previsão de inauguração de mais cinco nos próximos meses. A previsão é de que até 2020 sejam mais de 100 CRSociais.

 

IHU On-Line – Por que o número de presídios geridos pelo método APAC no Brasil ainda é relativamente pequeno em relação ao universo do sistema prisional do Brasil?

Valdeci Ferreira – O primeiro fator é o desconhecimento do método. Depois, a aplicação do método contraria muitos interesses. Com isso há resistência na sua expansão. Por outro lado, um crescimento muito intenso poderia trazer problemas, como desvirtuamento na aplicação da metodologia, uma vez que a equipe da FBAC possui estrutura limitada para fiscalização como deveria. Então creio que estamos em um ritmo positivo.

 

IHU On-Line – Como é a implantação do sistema APAC no mundo? Que países mantêm unidades com esse método e como ele chegou nesses outros países?

Valdeci Ferreira – A Prison Fellowship International - PFI adotou o método APAC como um de seus programas. É com isso que fomenta a criação de APACs em todos os países onde atua. Atualmente, 23 países aplicam parcialmente a metodologia.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo? 

Valdeci Ferreira – Em regra vivemos em uma sociedade desumana, onde os mais fortes subestimam os mais fracos. Nosso grande desafio está em humanizar uma sociedade através das prisões.■

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