Edição 470 | 17 Agosto 2015

Incapturável potência das vidas

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Ricardo Machado

De acordo com Natacha Silva Araújo Rena, há formas não disciplinares de vivência política das metrópoles que permitem a construção de novas formas de fazer política

Mais do que espaços de convivência, as metrópoles são espaços de produção de interpretações do mundo. A esses processos damos o nome de subjetivação, que estão relacionados às formas biopolíticas (as relações de poder, em última análise), mas também geram biopotências. “O termo biopotência fala da potência da vida, das resistências positivas e do poder da multidão, que para autores como Hardt e Negri é um conceito que apresenta uma nova ontologia e um novo sujeito político contemporâneo”, explica a professora e pesquisadora Natacha Silva Araújo Rena, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Ao debater os espaços públicos e políticos a partir da perspectiva do design, Natacha sublinha que pensa as metrópoles a partir do conceito de Multidão, isto é, sociedades marcadas por um conjunto heterogêneo de singularidades. “Para falar destes novos modos de viver e trabalhar nas metrópoles e num mundo cada vez mais conectado em rede, o design adentra os processos comunicacionais, saindo de uma esfera privilegiada na qual apenas profissionais do design, da arte, da arquitetura e de outras profissões criativas costumavam produzir”, descreve a professora.

“Esta biopotência estética das lutas multitudinárias é uma das características mais interessantes para observarmos nos novos movimentos, mais híbridos, mais coloridos, mais populares, menos preto, branco e vermelho como nos movimentos da esquerda clássica das vanguardas militantes”, critica Natacha. Com uma visão crítica, mas nada apocalíptica, a pesquisadora sustenta que “a política está completamente imbricada com a potência estética nas lutas, uma biopotência cada vez mais híbrida e menos identitária, configurando monstros incapturáveis, estéticas mutantes que contaminam modos de viver e de fazer política”. 

Natacha Silva Araújo Rena é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, onde também realizou mestrado em Arquitetura pela mesma universidade. É doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade de São Paulo – PUC-SP. Em seu currículo conta com mais de 37 premiações e é autora de dezenas de artigos científicos. Em 2010, organizou a publicação do livro Territórios aglomerados (Belo Horizonte: Universidade Fumec, 2010).

Natacha participa do 2º Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum. No dia 20-08-2015 a professora apresenta duas conferências na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU: Territórios e metrópoles: uma abordagem a partir do design e da biopolítica, às 17h30min; e Processos criativos, colaborativos e participação nas metrópoles, às 19h30min. No dia 21-08-2015, ocorre, na Sala Santander – Campus de Porto Alegre da UNISINOS (Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744), a palestra As experiências colaborativas e o impacto na conjuntura atual, às 8h30min. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como pensar os processos biopolíticos a partir do design?

Natacha Silva Araújo Rena - Primeiro seria interessante a gente falar sobre os autores que trabalharam este conceito de biopolítica em momentos diferentes. Michel Foucault  adotava o termo para dizer das relações de poder nas quais eram estabelecidos modos de controle das vidas e das espécies através de processos biopolíticos adotados pelo Estado (lógico que junto dos mecanismos do capital) e que tinham o planejamento urbano e as políticas públicas para controle das espécies como forma principal de controle e exercício do poder. 

Gilles Deleuze  tratava deste conceito, já compreendendo que não vivíamos apenas em uma sociedade na qual nossas vidas eram controladas disciplinarmente, mas, sim, através de controles requintados numa lógica de sociedade de controle biopolítico produzindo desejos e processos de subjetivação sutis e aparentemente dentro de uma lógica de comando democrática. Michael Hardt  e Antonio Negri  adotam o conceito de biopolítica já expandindo para um campo no qual tanto o poder sobre as vidas (biopoder) quanto a potência de vida se manifestam. Já o pensador brasileiro Peter Pàl Pelbart  vai diferenciar esta biopolítica exercida para controlar as vidas via Estado-capital, poder Imperial do poder da vida, que poderia também ser chamado de biopotência. Assim, prefiro adotar o termo biopolítica para falar de maneira geral das relações de poder e controle das vidas, e o termo biopotência para falar da potência da vida, das resistências positivas e do poder da multidão, que para autores como Hardt e Negri é um conceito que apresenta uma nova ontologia e um novo sujeito político contemporâneo, para ser mais preciso, multidão seria um conjunto heterogêneo de singularidades que se diferenciam de povo (diretamente relacionado ao Estado e à nação) e de massa (conceito diretamente relacionado ao mercado e ao consumo em escala).

E agora para falar destes novos modos de viver e trabalhar nas metrópoles e num mundo cada vez mais conectado em rede, assistimos a um aumento vertiginoso da produção criativa, colaborativa, cooperativa, utilizando múltiplos meios de comunicação através dos quais circulam linguagens variadas, e neste campo é claro que o design adentra os processos comunicacionais, saindo de uma esfera privilegiada na qual apenas profissionais do design, da arte, da arquitetura e de outras profissões criativas costumavam produzir, e se tornando uma forma criativa de comunicação no cotidiano das pessoas comuns. Todos inventando em uma multiplicidade de plataformas, seja nas redes sociais, seja nos whatsups, seja nas wikis e nas plataformas colaborativas, em mapas georreferenciados, via apps para celulares, etc.

Design

Então se o design tem cada vez mais um valor que é próprio ao mercado e à produção de estéticas e modos de vida capitalistas, agregando valor aos produtos e induzindo modos de vida em geral, atravessando a moda, os produtos domésticos, o design dos espaços públicos, etc., também vem se tornando fundamental nos movimentos insurgentes que abrangem novos modos de resistir ao Estado-capital que perpassam movimentos culturais, ambientais e sociais indistintamente. A potência da linguagem dos memes, dos flyers, dos apps, das fanpages, das chamadas pros eventos, das faixas e cartazes, das camisetas e bolsas, dos fanzines, e mais uma série de produtos que envolvem parte da construção de sentido em diversos campos de luta por direitos nas cidades, mas até mesmo nos territórios mais afastados das metrópoles que se tornam cada dia mais conectados. 

Esta biopotência estética das lutas multitudinárias é uma das características mais interessantes para observarmos nos novos movimentos, mais híbridos, mais coloridos, mais populares, menos preto, branco e vermelho como nos movimentos da esquerda clássica das vanguardas militantes. Assistimos hoje a uma disputa de narrativa, coletivos buscando modos de afetar mais adeptos às causas, uma tentativa clara de captura biopolítica, biopotente, que utiliza de estratégias de marketing para conquistar “corações e mentes”. Mas é interessante observar também que não é necessariamente um modo menos combativo, menos radical na sua luta, mas é mais sutil, mais pop, mais abrangente e consegue atingir um público maior para defender as causas. Menos foice e martelo e punhos guerrilheiros, mais imagens divertidas, muitas das vezes utilizando táticas e dispositivos vindos do campo da arte, por exemplo. 

Design como dispositivo político

Enfim, o design enquanto mais um forte dispositivo biopolítico, biopotente, tem sido uma chave fundamental em movimentos em Belo Horizonte que vão desde os ambientais Fica Ficus,  Parque Jardim América, Rede Verde (que atualmente agrega vários movimentos verdes da Região Metropolitana), passando pelos culturais como tem sido A Ocupação Cultural que surgiu durante as jornadas de junho de 2013 e inaugurou uma série de intervenções culturais nômades, que acontecem em territórios nos quais o Estado-capital quer expropriar espaços públicos e privatizá-los ou gentrificá-los. Desde a Praia da Estação que surgiu em 2010 contra um decreto de controle de uso do espaço público, das praças e parques, passando pelo movimento político Fora Lacerda  (o nosso prefeito que é empresário vem tentando empreender, sem sucesso, uma série de políticas públicas gentrificadoras via parcerias público-privadas e operações urbanas). E, claro, temos também a força das ocupações urbanas por moradia que vem crescendo exponencialmente em Belo Horizonte e que cada vez mais tem adeptos da arquitetura, do design e da arte, e tem produzido projetos gráficos maravilhosos. Isto aconteceu no ano passado, em 2014 com o surgimento do movimento #ResisteIzidora,  e agora contaminou as outras ocupações que têm equipes de criação e comunicação desenvolvendo trabalhos cada vez mais requintados. Este ano mesmo surgiu a ocupação do Movimento de Lutas do Bairro chamado Paulo Freire, com um trabalho de comunicação de dar inveja em qualquer agência de marketing e publicidade do mercado de luxo. Isto é um luxo! Mas também temos exemplos deste requinte estético incorporado nas lutas pelo Brasil afora, como é o caso do Parque Augusta  ou do Ocupe Estelita. 

 

IHU On-Line – De que forma o debate sobre as metrópoles se coaduna com as questões relacionadas ao design?

Natacha Silva Araújo Rena - Sabemos que as nossas metrópoles contemporâneas são as novas fábricas, né? Hardt e Negri são pensadores que têm intensificado este debate sobre como o trabalho precário, criativo, comunicativo, conectado, afetivo tem sido expropriado pelo Estado-capital, pelo Império em todo o tempo de nossas vidas. Trabalhamos o tempo todo produzindo conteúdo e informação em diversas plataformas, mas é o Facebook atualmente que mais nos faz perceber isto. Nós fazemos o Facebook, não é? Nós movemos grande parte destas estruturas, destes mecanismos próprios de um tempo em que o capital imaterial existe e cresce em termos de produção de bens e produtos materiais, mas tempos em que o capital imaterial, a produção de signos, linguagens, modos de vida, que são próprios do capitalismo criativo, flexível e conectado em múltiplas redes. 

Mas, além de todo nosso tempo e nossa produção coletiva e colaborativa estarem sendo expropriados pela máquina capitalista, também temos todo o território, principalmente das metrópoles, como lócus da produção de renda, de mais-valia, do nosso modo de viver, transitar, divertir, trabalhar. Todo o espaço tem sido expropriado com muita voracidade pelo Estado-capital, pelo Estado que está totalmente invadido pela lógica das parcerias público-privadas que na verdade privatizam o que é público e de todos. O capital necessita se expandir para sobreviver. Então ele tem se expandido tanto no tempo quanto no espaço. Tentativas por exemplo de diminuir áreas verdes para se construir mais edifícios, mesmo que sejam equipamentos públicos que serão geridos por parcerias público-privadas ou como em Belo Horizonte, Escolas Municipais geridas pela Odebrecht, inacreditavelmente temos uma empreiteira fazendo a gestão de escolas infantis. 

Então estas parcerias público-privadas foram regulamentadas no Brasil e se tornaram, no discurso dos políticos financiados pelo mercado, a única forma de ter eficiência na gestão pública. É só observar como os secretários e técnicos que são contratados para cargos de confiança nos governos têm MBA ao invés de serem especialistas nas suas áreas respectivas. A ideia de cidade-empresa, de cidade que precisa dar lucro (como assim?) está disseminada. E o que vem acontecendo? O próprio Estatuto das Cidades, que era pra ser algo superprogressista e garantir avanços populares, adotou alguns instrumentos, como é o caso das Operações Urbanas, que são dispositivos legais para regulamentar as parcerias público-privadas. O que é isto? Significa que vastos territórios urbanos passam a ser projetados pelo e para o mercado e que, além das empreiteiras e dos consórcios realizarem as obras, eles lucram através de uma lógica rentista, através da transformação do território em títulos que irão participar das bolsas de valores, é o que chamamos de rentização do espaço. E o mais grave, o Estado, com dinheiro público, impostos pagos pela maioria pobre do país, realiza grandes obras de infraestrutura antes do início das Operações Urbanas, e assim valoriza a área para que os negócios sejam mais rentáveis para o mercado. É vertiginoso se formos acompanhar de perto. E não para por aí, porque agora os consórcios querem também fazer a gestão deste território durantes anos, em Belo Horizonte, podemos dizer que teremos operações urbanas nas quais as empreiteiras não vão somente construir obras em territórios que chegam a 10% da cidade, em áreas nobres que envolvem a região central, mas também vão ser as responsáveis por recolhimento de lixo, tratamento dos jardins, etc. Para mim isto é uma política neoliberal de primeira linha, um verdadeiro roubo de dinheiro público, uma vertigem biopolítica.

Uma cidade asséptica

Retomando a questão central da pergunta, o que se relaciona ao design pode ser tanto a ação biopolítica do Estado-capital que produz belas imagens de como os lugares degradados e feios podem se tornar lugares limpos, brilhantes, reluzentes, com uma arquitetura asséptica, limpa, sem pretos e pobres e com muitas famílias brancas e felizes em gramados e parklets de madeirinha. Também temos uma intensa produção de marketing com frases como: “venha adquirir seu imóvel em uma cidade para poucos”. Sério que esta frase existe e é inacreditável, porque arquitetos, políticos e investidores fazem propaganda aberta deste tipo de proposta urbanística.

Mas, como eu já disse, a todo momento também surgem movimentos sociais, culturais, ambientais num processo contraimperial, contra-hegemônico, que vai detectar este urbanismo neoliberal excludente e vai se utilizar também do design para comunicar de forma simples e direta para as pessoas mecanismos de mercado e de poder que às vezes são difíceis de explicar. Então, os diagramas e as imagens que sintetizam mensagens e lógicas têm sido muito utilizados ultimamente. E eles circulam nas redes em memes que, além de comunicar um conteúdo específico das lutas, também identifica os movimentos ou a luta com cores, tipografias, design próprios.

 

IHU On-Line – Do que se trata o termo gentrificação? A que se refere originalmente e como ele é apropriado contemporaneamente?

Natacha Silva Araújo Rena - O termo gentrificação está diretamente associado ao que falamos anteriormente, é um processo que faz parte da urbanização neoliberal. O nome vem do inglês gentry, nobre, nobreza, portanto significa enobrecer uma região, gentrificar um território. Mas este processo de gentrificação se inicia antes dos projetos de intervenção urbanística muitas vezes chamados de revitalização ou requalificação ou renovação urbana. O Estado (já em parceria com o mercado) primeiro deixa uma área se degradar, retira o policiamento, deixa o tráfico tomar conta, deixa a sujeira, retira todo tipo de melhoria urbana. Isto aconteceu com muitas regiões centrais ao redor do mundo. Com o tempo a área vai desvalorizando e assim os investidores compram muito barato imóveis e terrenos. Depois, na maioria das vezes, as Prefeituras lançam um projeto salvador daquele lugar, que vai deixar tudo limpo, com ciclovias, passeios largos, jardins, renovam o patrimônio histórico, e quase sempre, criam um ou mais equipamentos culturais como museus ou óperas. Claro que este é um jogo biopolítico! Todos ficam encantados com o Estado que finalmente decide investir recursos para limpar aquela área e torná-la nobre, apropriada para os ricos usarem, apropriada para o turismo, para os negócios das franchisings. Assim, depois das grandes obras realizadas, toda região se valoriza e os pobres que viviam ali são expulsos, ou porque venderam barato seus imóveis, ou porque não conseguem mais pagar aluguel pra viver ali. 

Além disso, mesmo os que resistem e continuam morando na região, assistem à chegada de comércio mais caro e acabam não conseguindo mais viver ali. Noutras vezes, também, comerciantes perdem o seu público cativo, e seu estabelecimento se torna pouco frequentado pela nova classe social que vai circular neste território enobrecido. Isto se chama gentrificação. A má notícia é que o design e a estética, incluindo a arte, fazem parte deste jogo perverso e são sempre usados dentro desta estratégia do mercado. Tanto a revitalização da região do Museu Gugenheim em Bilbao na Espanha, quanto a Pinacoteca e o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, assim como o Museu de Arte do Rio – MAR, no Rio, ou o Museu de Artes e Ofícios em Belo Horizonte, todos são equipamentos culturais fundamentais dentro do processo de gentrificação. 

Juventude alternativa

E o que eu ainda não disse é que no meio deste processo temos também a juventude alternativa, normalmente conformada por arquitetos, designers, músicos e até ativistas, que costuma iniciar o processo de enobrecimento. Assim como ocorreu no Soho em Nova Iorque nos anos 50 e 60 quando os artistas ocuparam os galpões abandonados da região já que é um contexto central, com infraestrutura de transporte e com aluguéis muito baratos, iniciando um processo de valorização da área. Hoje isto se faz muito evidente! O que chamamos de hipsterização territorial. 

Intervenções gentrificadoras

Então, do ponto de vista da arquitetura, temos aqui três tipos básicos de intervenção que fazem parte deste processo: arquitetura hipster, que ocupa o território preparando a sua valorização; arquitetura espetacular, que são os equipamentos culturais assinados por grandes arquitetos; arquitetura yuppie, que é um conjunto arquitetônico asséptico, de vidros de porcelanato branco, estruturas cromadas e de aço inox, jardins gramados com palmeiras e coqueiros, sem sombra, sem bancos, e fachadas gigantes com vidros espelhados, grandes panóticos que têm visão geral do contexto, mas que não vemos nada do que acontece dentro. E estas linguagens aí são genéricas, acontecem em todo o mundo. Este processo de urbanização neoliberal se repete e desde a ascensão econômica do Brasil e principalmente com os investimentos nos grandes eventos internacionais, gentrificaram regiões inteiras em diversas cidades. Claro que isto expulsou muita gente pobre, inclusive de áreas de favelas e vilas, que foi removida de forma perversa. Milhares de famílias foram expulsas dos territórios de interesse do mercado. Sabemos que as jornadas de junho estão diretamente relacionadas com estes processos de gentrificação.

 

IHU On-Line – Que exemplos biopolíticos de resistência criativa colocam em causa esta lógica hegemônica de urbanização baseada na gentrificação?

Natacha Silva Araújo Rena - Temos exemplos de muitos grupos e coletivos de arquitetos, artistas, designers, ativistas que vêm trabalhando com este tema da gentrificação de modos variados, desde a realização de workshops junto com a população local e movimentos sociais, como é o caso da dupla de argentinos, os Iconoclasistas, que esteve recentemente em Belo Horizonte e trabalhou com o tema da Operação Urbana Nova BH, realizando mapas e cartilhas com um design muito efetivo para explicar para a cidade os problemas.   

Outros grupos interessantes produzem mapas e cartografias, mas também vídeos e documentários, como é o caso da dupla espanhola que vive em Portugal, Left Hand Rotation,  que com seu projeto “Gentrificación no es un nombre de senora” associado ao “Museo de los Desplazados”  desenvolve uma excelente pesquisa on-line relatando cases de gentrificação em todo o mundo. O Left Hand Rotation esteve, inclusive, no Brasil durante um tempo realizando um trabalho interessantíssimo junto a movimentos sociais na região central de São Paulo, que estava sendo alvo de um projeto neoliberal privatista chamado Nova Luz, durante a gestão do Prefeito Kassab, que infelizmente hoje é Ministro das Cidades. 

Outro exemplo bastante interessante é o coletivo espanhol chamado Todo Por La Praxis  com seus projetos antigentrificação e com uma vasta produção gráfica sobre o assunto.

Indisciplinar

Eu coordeno um Grupo de Pesquisa que se chama Indisciplinar,  que atua de maneira muito integrada com movimentos sociais, ambientais e culturais que produzem uma forte resistência aos processos de urbanização neoliberal. Penso que as universidades têm um papel importante nestes processos, já que podem qualificar o debate e ampliar o nível de informação para que os movimentos possam compreender de forma mais clara que, às vezes, o processo pontual de expropriação do comum, do território em que atuam, da praça, do parque, chega pelas mãos do Estado de muitas maneiras e que sempre está em jogo algum megaprojeto que ninguém nem sabe que existe. Foi o caso, por exemplo, da Operação Urbana Nova BH, que investigamos e descobrimos que estava sendo desenhada por um escritório de arquitetura em nome de um consórcio de empreiteiras junto de alguns gestores da prefeitura, sem nenhuma participação popular. E ao mesmo tempo estávamos atuando junto a vários movimentos de resistência que não entendiam a razão pela qual a Prefeitura estava ou cortando árvores e deixando que conjuntos inteiros de Ficus tombados morressem, ou não concedendo auxílio para eventos culturais espontâneos e muito populares como é o caso do Duelo de Mcs sob o Viaduto Santa Tereza no centro de Belo Horizonte. Ou que uma pequena favela, a Vila Dias, vinha sendo preparada para ser removida para em seu lugar ser construída a maior torre da América Latina. De repente percebemos que todos os conflitos que estávamos envolvidos via copesquisas, junto aos moradores e movimentos sociais, estavam dentro da mancha deste gigantesco empreendimento. 

Academia para além da Academia

Começamos a perceber o quão importante é termos conexões concretas entre as lutas locais e os macroprojetos, porque normalmente se o Estado está tentando atingir um pequeno território, nos dias atuais, é porque, via de regra, existem grandes projetos planejados que o envolvem. Desde então, já realizamos diversas ações tecnopolíticas: criamos movimentos provisórios, fizemos representações (denúncias) no Ministério Púbico, que no caso da Nova BH gerou inclusive ação criminal envolvendo empreiteiras e o Secretário de Planejamento na época (destituído do seu cargo), circulamos na cidade com palestras em eventos diversos denunciando a Operação Urbana, auxiliamos em audiências públicas, fizemos atos festivos e ocupações culturais, criamos blogs e fanpages contendo diagramas e uma infinidade de imagens, memes sintetizando informações sobre o projeto e as lutas territoriais envolvidas. Em todo momento o design e a capacidade de síntese e divulgação de ideias têm sido parte dos principais dispositivos biopolíticos em nossas copesquisas. 

 

IHU On-Line – De que forma a potência de pluralização das singularidades e de resistência são efeitos colaterais dos processos de domesticação capitalistas?

Natacha Silva Araújo Rena - Eu na verdade não sei se são efeitos colaterais. Eu acho que quando temos estes projetos neoliberais que chegam expropriando os espaços de uso coletivo, ou exterminando áreas verdes, ou proibindo usos, ou expulsando pessoas, é claro que isto acelera e intensifica as resistências. Mas, na verdade, acredito que não há somente um novo sujeito político que resiste ao Império, penso que há também uma nova ontologia, um outro ser, outras formas de produção de subjetividade que afetam a forma cidadã, o modo de viver na cidade, que propicia o trabalho coletivo, afetivo, colaborativo, o uso do espaço de forma mais livre e mais autônoma, e que esta subjetividade surge junto com a conectividade global, recuperando algo que é próprio do homem que é viver junto, fazer junto, produzir linguagens, produzir territórios, produzir junto. Por isto prefiro pensar em resistências positivas ao invés das simplesmente reativas ou negativas. 

Em Belo Horizonte temos a Praia da Estação, que foi um movimento social e cultural que, ao invés de ficar marchando e fazendo atos duros, com gritos de guerra agressivos ao caminhão de som, aos moldes dos atos sindicais da esquerda clássica, construiu uma grande festa que ocupa uma praça em frente a um museu realizado, inclusive, como marco do início de uma revitalização da área central de Belo Horizonte. Voltando à Praia, além de ser um ato festivo, colorido, divertido, escrachado, ainda tem uma força de trazer simbolicamente para a manifestação a praia, algo que não temos em nosso estado. É uma inteligência biopolítica maravilhosa, um grupo de pessoas que começam a frequentar a praça usando roupas de banho, instrumentos musicais, e contratar um caminhão pipa com dinheiro que circula num chapéu. Um lugar árido, quente, praticamente sem sombra, feito para grandes eventos cívicos ou comerciais e para dar destaque a um museu o qual é gerido por uma fundação que é associada a uma grande empreiteira, a mesma que vai manifestar interesse na já citada Operação Urbana Consorciada Nova BH! É, inclusive, uma situação muito sintomática de como a cultura está envolvida com o capital e com o Estado exatamente como dispositivo fundamental no processo de segregação social e de transformação do território em algo rentável, feito para os ricos, feito para poucos. 

De qualquer forma, os processos de resistência cidadã surgem, se amplificam a partir de uma tentativa de proibir e controlar o uso do espaço público, e no caso da Praia vai depois gerar também um outro movimento contra o prefeito, denominado Fora Lacerda, e logo depois, que é o mais incrível, vai gerar o carnaval de rua de Belo Horizonte, completamente insurgente, enchendo as ruas da cidade durante 10 dias consecutivos de foliões politicamente engajados, com marchinhas políticas e críticas aos poderes locais e nacionais. Para se ter uma ideia, este ano tivemos um milhão de pessoas nas ruas com blocos dos mais diversos estilos, que se utilizam da estética como biopotência radical. Mas é também interessante observar que este sujeito multitudinário e carnavalesco também está espalhado em diversas frentes de luta na cidade, eles estão nas audiências públicas, nas reuniões de Conselhos Municipais, estão criando movimentos políticos mais organizados como o Tarifa Zero, ou estão ocupando espaços para cultura como é o caso do Espaço Comum Luiz Estrela. Ou seja, a política está completamente imbricada com a potência estética nas lutas, uma biopotência cada vez mais híbrida e menos identitária, configurando monstros incapturáveis, estéticas mutantes que contaminam modos de viver e de fazer política. E percebemos que esta alegria nas lutas é tudo o que o Estado-capital não pode suportar.■

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