Edição 470 | 17 Agosto 2015

Intolerância em Locke: luta pela coexistência pacífica

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Márcia Junges e João Vitor Santos | Tradução Sandra Dall Onder

Giuliana Di Biase recorre a fundamentos do filósofo inglês, como a mediocridade, para vislumbrar uma sociedade mais justa, plural e tolerante

John Locke (1632-1704) é ideólogo do liberalismo. O filósofo inglês também é considerado o principal representante do empirismo britânico e um dos principais teóricos do contrato social. Mas o que sua obra diz acerca da intolerância? Na verdade, suas produções contribuem para o debate sobre o tema por se colocarem no contrafluxo. Isto porque sua obra traz contribuições para a perspectiva da tolerância. “Locke escreveu muitas obras sobre a tolerância”, destaca Giuliana Di Biase, professora do Departamento de Filosofia Educacional e Econômica da Università degli Studi "G. d'Annunzio" Chieti – Pescara, na Itália. Segundo a pesquisadora, ele esteve sempre empenhado na batalha para o reconhecimento da liberdade de culto. É por aí que sua obra se conecta com a perspectiva da aceitação do outro, no que se pode chamar de “doutrina da tolerância”. “Os primeiros escritos de Locke são exatamente contra a intolerância, tendo sido escritos nos primeiros anos depois da Restauração (um momento particularmente dramático da história inglesa, dadas as feridas causadas pela guerra civil e pela anarquia)”, exemplifica.

Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Giuliana repassa a obra do pensador criando nexos com a ideia de intolerância na modernidade. Nesse exercício de atualização de conceitos, destaca que a liberdade surge em Locke como esteira para a tolerância. “Todos devem ser livres para encontrar o seu ‘caminho para o céu’. Para Locke, a verdade anda sozinha, não precisa ser ‘empurrada’ pela lei civil”, destaca, ao lembrar que a implementação de leis e normas não deve ser tomada como ferramenta para a intolerância a desvios.

Noutra perspectiva, recupera a ideia de intolerância no campo da religião, o que, na leitura da pesquisadora, Locke aponta como uma espécie de erro de postura interpretativa de Deus. “Não podemos impor aos outros a nossa forma de adorar a Deus (ou uma forma particular de adoração). Isto porque nem Cristo ou os apóstolos falaram algo sobre isto. Para Locke não sabemos e nem saberemos, até a morte, se a nossa forma de adorar a Deus é o caminho certo. O que sabemos é que uma vida passada na caridade e na virtude é o culto recomendado para os homens no Evangelho”, justifica.

Outra manifestação de intolerância que pode ser associada ao pensamento do filósofo é a ideia do mercado, do capitalismo. Giuliana destaca que “Locke teria muito a dizer ao capitalismo desenfreado de hoje”. “O acúmulo de capital nas mãos de alguns se justifica na medida em que aqueles poucos privilegiados parecem, de fato, capazes de colocar o seu capital a serviço dos outros. Locke acredita que há pessoas mais capazes do que outras para produzir e ganhar riqueza. Por outro lado, está convencido de que a sua ação econômica se justifica somente na medida em que o resultado é um maior bem-estar para todos”.

Giuliana Di Biase é professora do Departamento de Filosofia Educacional e Econômica da Università degli Studi "G. d'Annunzio" Chieti – Pescara, na Itália. É formada em literatura moderna pela Faculdade de Letras da Universidade "G. d'Annunzio. É PhD em "Ética e Antropologia. História e fundação", pela Faculdade de Letras da Universidade de Lecce. Atualmente, realiza pesquisas na área de filosofia moral no Departamento de Estudos Filosóficos, Históricos da Faculdade Social da Univ LLS "G. d'Annunzio". Ainda na sua área de atuação, destacam-se estudos sobre problemas filosóficos relacionados com a língua, filosofia contemporânea e, em particular, a ética analítica. Entre suas publicações, estão R. M. Hare. Pensiero e parola morale nell’opera più recente (Roma: Laterza, 2004), Etica analitica: un metodo tra sviluppi e diversità nella filosofia contemporanea (Lanciano: Carabba, 2004), Iris Murdoch, La sovranità del bene, introduzione, traduzione e note a cura di G. Di Biase (Lanciano: Carabba, 2005) e Comunicare bene. Per un’etica dell’attenzione (Milano: Vita e Pensiero, 2008).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Por que o nome de John Locke  está intimamente ligado ao debate sobre a tolerância?

Giuliana Di Biase - Locke escreveu muitas obras sobre a tolerância, praticamente durante toda a sua vida se empenhou na batalha para o reconhecimento da liberdade de culto. Certamente, a sua posição evoluiu com o passar do tempo. Os primeiros escritos de Locke são exatamente contra a intolerância, tendo sido escritos nos primeiros anos depois da Restauração  (um momento particularmente dramático da história inglesa, dadas as feridas causadas pela guerra civil e pela anarquia). Os escritos posteriores eram mais focados na defesa da liberdade de culto como um direito absoluto de cada homem.

 

IHU On-Line - Nesse sentido, em que medida podemos compreender Locke como precursor da democracia liberal?

Giuliana Di Biase - Sem dúvida, o nome de Locke é associado ao liberalismo: o dever do Estado para o filósofo seria o de vigiar a propriedade de cada indivíduo, para que ela não seja usurpada. E, ainda, não impor uma determinada conduta moral e muito menos a prática de uma determinada forma de culto. Deve-se dizer, no entanto, que Locke não é um democrata, mas um monárquico. As suas preferências são ligadas à monarquia constitucional, uma forma moderada de monarquia em que o poder legislativo é o momento fundamental e soberano.

Certamente, o direito à revolta, que, no Segundo Tratado sobre o governo, Locke atribui aos súditos, o aproxima ainda mais da ideia atual de democracia liberal. O súdito é chamado para cuidar de seus representantes, e depô-los quando eles se mostram incapazes ou não estão dispostos a serem fiéis ao pacto original, mediante o qual a sociedade civil teve início.

 

IHU On-Line - Qual é o contexto ao qual se refere Locke ao teorizar sobre a temática da tolerância?

Giuliana Di Biase - Locke se refere a uma situação muito mais restrita do que pensamos hoje. Não se trata de tolerar o não cristão, o “diferente” (o muçulmano, por exemplo, ou o judeu), mas encontrar um modus vivendi  pacífico entre os próprios cristãos, separados em várias “seitas” (anabatistas, quakers, presbiterianos, luteranos, calvinistas, socinianos, etc.). O horizonte da tolerância de Locke é, portanto, bastante limitado: o ateu não deve ser tolerado, porque, não acreditando em Deus, não pode sequer respeitar a lei que Ele deu ao homem, ou seja, a lei moral.

 

IHU On-Line - Em que sentido a mediocridade é o fundamento da doutrina sobre a tolerância?

Giuliana Di Biase - A mediocritas  é um conceito importantíssimo para Locke. O homem é um ser medíocre, pois está no “meio” da cadeia dos seres, abaixo dos anjos (que são inteligências muito mais elevadas do que nós) e acima dos animais superiores. Deus colocou o homem “no meio”. Isto significa que nos foi dada a oportunidade de aprender muito, mas não tudo. A essência mais profunda das coisas nos escapa. Nossos sentidos não são capazes de compreender o infinitamente grande, assim como o infinitamente pequeno.

Assim, podemos compreender a razão da existência de um Deus criador, autor da lei da natureza, e podemos também acreditar na verdade do Evangelho, que, embora contenha coisas acima da razão, não entra em conflito com ela. Por outro lado, a mediocridade do nosso intelecto nos proíbe de supor que possuímos a verdade em matéria religiosa em relação a tudo aquilo que o Evangelho cala. Não podemos impor aos outros a nossa forma de adorar a Deus (ou uma forma particular de adoração). Isto porque nem Cristo ou os apóstolos falaram algo sobre isto. Para Locke não sabemos e nem saberemos, até a morte, se a nossa forma de adorar a Deus é o caminho certo. O que sabemos é que uma vida passada na caridade e na virtude é o culto recomendado para os homens no Evangelho.

 

IHU On-Line - Nesse aspecto, qual é a contribuição e atualidade de John Locke para pensarmos o tema da tolerância?

Giuliana Di Biase - É, sobretudo, na “Terceira carta acerca da tolerância”  de Locke que a mediocridade do intelecto do ser humano se torna uma questão crucial. Locke insiste que Deus deu aos homens a lei da natureza (ou lei moral), e que a lei exige que o juiz preserve tanto quanto possível a vida de seus súditos. Conhecendo a mediocridade dos homens (e, portanto, a sua parcialidade nos julgamentos), Deus não poderia ordenar que o juiz impusesse certa forma de adoração aos seus súditos, e depois os exterminasse caso não se adaptassem a mesma. Isto porque significaria uma clara violação do seu direito. Todo soberano interpretaria a norma através do seu ponto de vista. O rei da França, por exemplo, exterminaria luteranos e calvinistas, o sínodo holandês os católicos romanos, e assim por diante. 

O juiz, bem como qualquer homem, não tem como saber se a forma de adoração praticada é a mais justa. Assim, muitos se distanciariam da verdade ao invés de difundi-la, e este seria o resultado da intolerância. Todos devem ser livres para encontrar o seu “caminho para o céu”. Para Locke, a verdade anda sozinha, não precisa ser “empurrada” pela lei civil.

 

IHU On-Line - Em que medida as ideias de Locke fundamentam a contestação a governos que não respeitem os “direitos naturais” da vida, liberdade e propriedade?

Giuliana Di Biase - As ideias que Locke expressa no Segundo Tratado sobre o Governo são fundamentais a este respeito. A vida, a liberdade e a propriedade do indivíduo são direitos inalienáveis, que o Estado não pode violar. O Estado deve garantir que a propriedade do indivíduo não seja usurpada, também deve julgar em caso de conflito entre indivíduos ou de violação do direito civil. Não pode passar deste limite. Para Locke, o seu Estado deve defender o território e cuidar da política externa.

 

IHU On-Line - Há uma relação entre a teoria da propriedade de Locke e a tolerância? Por quê?

Giuliana Di Biase - Locke separa drasticamente a esfera da relevância da Igreja e do Estado. O Estado não tem o dever de mostrar aos homens qual é o caminho para o céu, nem de interferir em questões de moral privada. A Igreja, por sua vez, não pode reivindicar o apoio da magistratura civil para punir os dissidentes. Ela pode excomungá-los, mas não pode prejudicar a sua pessoa ou confiscar bens. O direito civil, para Locke, é baseado na lei da natureza: se esta se cala (e, certamente, se cala quanto à obrigatoriedade de uma forma específica de culto), não pode impor as suas regras.

 

IHU On-Line - Pensando numa sociedade neoliberal na qual a propriedade como horizonte último do sentido da existência e uma financeirização da vida que toma proporções crescentes, em que medida as ideias de Locke acerca da propriedade representam o fundamento teórico que as “justificam”?

Giuliana Di Biase - Locke teria muito a dizer ao capitalismo desenfreado de hoje. O acúmulo de capital nas mãos de alguns se justifica no Segundo Tratado do Governo, na medida em que aqueles poucos privilegiados parecem, de fato, capazes de colocar o seu capital a serviço dos outros. Locke acredita que há pessoas mais capazes do que outras para produzir e ganhar riqueza. Por outro lado, está convencido de que a sua ação econômica se justifica somente na medida em que o resultado é um maior bem-estar para todos. Então, quando o acúmulo da riqueza se traduz em privação dos meios de subsistência dos outros (e, portanto, da terra a partir da qual são alimentados), para Locke se trata de uma violação clara do direito natural.

 

IHU On-Line - Há uma relação entre essa concepção de propriedade e a tomada de terras e extermínio das populações indígenas? Por quê?

Giuliana Di Biase - Absolutamente sim. Tomemos a teoria da conquista de Locke, ainda no “Segundo Tratado”. É uma teoria muito avançada para sua época. Locke diz que a lei natural não pode privar um povo submisso da sua terra, porque, ao fazê-lo, o condena à fome. Deus deu ao homem a lei da natureza, e lhe ordena a preservá-la através do trabalho. Portanto, existe um direito natural que garante ao homem a posse dos meios de subsistência. Tudo o que o conquistador pode fazer, admitindo-se que seja uma conquista justa (ou, ainda, motivada por uma ameaça real), é pedir um ressarcimento daqueles que o obstaculizaram. Essa compensação não pode, contudo, afetar os bens que garantem a sobrevivência da sua prole. Fica claro como tudo isso pode ser aplicado para o extermínio dos povos indígenas: nenhum comando da lei natural poderia justificá-lo.

 

IHU On-Line - Há um nexo entre a formulação da teoria do contrato social, a modernidade e a mutação da intolerância nas mais diferentes formas? Por quê?

Giuliana Di Biase - A teoria do contrato social diz que os homens entram voluntariamente no estado civil através de um pacto. No caso de Locke, não se trata de uma decisão relacionada ao medo de agressão, como no caso de Hobbes , mas à necessidade de encontrar um julgamento parcial, super partes, sempre que surjam conflitos. Se, portanto, a sociedade civil foi criada por livre e espontânea vontade dos indivíduos, as pretensões absolutistas do magistrado devem ser redimensionadas. Elas não podem ser baseadas em um suposto direito divino, mas devem ser confrontadas com a vontade de seus súditos. Porque a lei da natureza é a lei divina, a lei civil deverá se moldar sobre a mesma. 

Assim o arbítrio do magistrado é limitado. Claro, essa teoria é imposta nos tempos modernos em resposta ao absolutismo monárquico (que certamente não era “bem quisto” pelos ingleses e holandeses). Ainda, a lei da natureza é o ingrediente-chave que Locke usa para refutar as afirmações dos intolerantes, que atribuem ao soberano um poder que, de fato, a lei não lhe concede.

 

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Giuliana Di Biase - Locke é realmente um filósofo que merece toda a nossa atenção, em muitos aspectos. Sua paixão pela verdade, sua luta pela coexistência pacífica entre os homens, a sua convicção de que a investigação científica deve ser focada para a melhoria das condições do homem sobre a terra, são todas informações importantes que podemos obter a partir da leitura de suas obras. Locke tem muito a nos ensinar sobre uma virtude fora de moda, a humildade. O nosso conhecimento, por maior que possa parecer, nada mais é que um abismo da ignorância em comparação às maravilhas incompreensíveis da “estupenda máquina do universo”. ■

 

Leia mais...

- Um caminho de educação para paz segundo Locke. Artigo de Odair Camati e Paulo César Nodari publicado no Cadernos IHU ideias, número 177, 2012.

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