Edição 469 | 03 Agosto 2015

Assumir problema climático como antropogênico. Primeiro passo para mudança

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Márcia Junges e João Vitor Santos

Para Filipe Santos, ao apontar o ser humano como principal causador do desequilíbrio ambiental, a Encíclica revela urgência na mudança de postura das pessoas na relação com o Planeta

O reconhecimento da base científica da Encíclica Laudato Si’ é um dos destaques dado ao documento por pesquisadores e cientistas. O geofísico Filipe Duarte Santos endossa essa perspectiva e vai além. Entende que o documento parte de uma constatação acadêmica — assumida pela maioria dos estudiosos do clima — e segue em provocações que suscita a necessidade de mudanças profundas na forma de vida na Terra. “Penso ser um documento muito importante por reconhecer que há mudanças climáticas, que estas têm, na sua maior parte, origem em algumas atividades humanas (antropogênicas) e que urge combatê-las diminuindo as emissões de gases com efeito de estufa para a atmosfera. A posição expressa na encíclica irá dar visibilidade ao debate sobre a mudança climática e contribuirá para encontrar soluções para o problema”, destaca em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Assim, a abrangência do documento apostólico vai de constatações práticas para demonstrar que a crise ecológica é envolta numa crise social, econômica e ética, além de ambiental. Isso dá um caráter transdisciplinar à Laudato Si’. Ou seja, é um documento que vai além da orientação de uma igreja para os seus fiéis. “Aquilo que diz o Papa Francisco na sua recente Encíclica é partilhado por outras religiões e por muitas pessoas, algumas que não são praticantes de nenhuma religião. A transdisciplinaridade é essencial para se encontrar a via para um desenvolvimento sustentável”, reconhece Santos. 

O professor ainda destaca que o documento aponta caminhos. Isto tudo sempre pondo em perspectiva uma ética de que não somos nós os donos do Planeta e que é nosso dever deixar os frutos da criação para gerações futuras. “Num planeta finito, os recursos naturais também são finitos. Ainda há muitos recursos naturais para explorar, mas a exploração intensiva associada ao modelo do consumismo e às profundas desigualdades sociais está degradando o ambiente. Temos de construir uma sociedade mais equitativa e justa, temos de gerar uma economia circular, temos de respeitar a natureza, temos de preservar a biodiversidade, temos de travar a mudança climática antropogênica”, provoca.

Filipe Duarte Santos é pesquisador e professor universitário português. É licenciado em Geofísica pela Universidade de Lisboa, com doutorado em Física Nuclear pela Universidade de Londres. Atua como professor de Física na Universidade de Lisboa. Foi vice-presidente do Instituto de Meteorologia de Portugal e coordenou a redação do primeiro e único Livro Branco sobre o Estado do Ambiente em Portugal, publicado em 1991. É o atual diretor do Centro de Física Nuclear da Universidade de Lisboa.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual é a importância da Encíclica Laudato Si’ na convergência de esforços para mitigar as mudanças climáticas?

Filipe Duarte Santos - Penso ser um documento muito importante por reconhecer que há mudanças climáticas, que estas têm, na sua maior parte, origem em algumas atividades humanas (antropogênicas) e que urge combatê-las diminuindo as emissões de gases com efeito de estufa para a atmosfera. A posição expressa na encíclica irá dar visibilidade ao debate sobre a mudança climática e contribuirá para encontrar soluções para o problema.

 

IHU On-Line - Como está sendo a recepção desse documento entre os pesquisadores e ambientalistas portugueses?

Filipe Duarte Santos - Está sendo muito bem recebido tanto pelos pesquisadores como pelos ambientalistas. Em Portugal, como no resto do mundo, a grande maioria dos pesquisadores (97%) concorda que as atuais mudanças climáticas têm uma origem antropogênica e que é necessário combater as suas causas para evitar impactos mais gravosos do que os atuais no futuro.

 

IHU On-Line - Em quais aspectos esse documento apostólico dialoga e problematiza as principais constatações e concepções científicas de nosso tempo?

Filipe Duarte Santos - A encíclica Laudato Si’ foi escrita com a colaboração de vários cientistas e pesquisadores de competência reconhecida internacionalmente. No que diz respeito diretamente à ciência e à tecnologia, a Encíclica inclui muitas das conclusões e cenários futuros que se podem encontrar em artigos e livros científicos sobre desenvolvimento sustentável, crise ecológica, alterações globais e mudanças climáticas antropogênicas. Muitas dessas conclusões e cenários podem, por exemplo, encontrar-se no meu livro “Humans on Earth. From Origins to Possible Futures” .

 

IHU On-Line - Em 2010, o senhor afirmou que as alterações climáticas e o aquecimento global iriam aumentar a probabilidade de haver tornados em Portugal. Qual é o cenário dessas ocorrências desde então em seu país?

Filipe Duarte Santos - Efetivamente tem havido uma tendência de aumento do número de tornados em Portugal Continental. Contudo, o problema é mais geral. Isto porque a mudança climática tende a aumentar a frequência e a intensidade de alguns fenômenos meteorológicos extremos. A região do Mediterrâneo, incluindo o sul da Europa, é considerada um “hotspot”  para a mudança climática. É uma região onde os impactos dessa mudança serão particularmente graves. Em grande parte devido à diminuição da precipitação média anual, que já se verifica nessa região, e que tem tendência a se agravar no futuro. 

 

IHU On-Line - Quais são os fatores climáticos fundamentais que estão por trás de eventos como os tornados? Em que medida essas ocorrências têm se intensificado?

Filipe Duarte Santos – Em decorrência do aumento da temperatura média global da atmosfera e da maior quantidade média de vapor de água na atmosfera, esta acaba se tornando mais convectiva. Isto tende a aumentar a frequência e intensidade dos fenômenos convectivos tais como a precipitação intensa em intervalos de tempo curtos, que provoca inundações, e os tornados.

 

IHU On-Line - A partir do campo de estudo da geofísica, quais são as principais mudanças climáticas que já se deram e que estão em curso, e que irão impactar a forma como a vida existe na Terra?

Filipe Duarte Santos - As emissões antropogênicas de gases com efeito de estufa, principalmente o dióxido de carbono, CO2 (proveniente da combustão dos combustíveis fósseis e das alterações no uso dos solos), o metano, CH4, e o óxido nitroso, N2O, estão intensificando o efeito estufa na atmosfera, provocando alterações climáticas. Segundo o quinto relatório do Painel Intergovernamental das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas - IPCC , publicado em 2014, as concentrações atmosféricas desses gases em 2011 eram de 391 ppmv (partes por milhão em volume), 1.803 ppbv (partes por bilhão em volume) e 324 ppbv, excedendo os valores pré-industriais (século XVIII) em 40%, 150% e 20%, respetivamente. 

A mudança climática antropogênica caracteriza-se pelo aumento da temperatura média global da atmosfera e dos oceanos, pelo aumento da frequência e da intensidade de alguns fenômenos meteorológicos extremos. Por exemplo: ondas de calor, eventos de precipitação intensa em intervalos de tempo curtos, secas e ainda pela subida do nível médio global do mar.

 

IHU On-Line - Em que sentido é preciso repensar os conceitos de desenvolvimento e progresso que norteiam as sociedades do nosso tempo para que as mudanças climáticas não representem riscos à vida na Terra? De que forma Laudato Si’ inspira a discussão?

Filipe Duarte Santos - De acordo com a Encíclica, é necessário mudar o nosso paradigma de consumismo que implica uma utilização intensiva de combustíveis fósseis — carvão, petróleo e gás natural. A combustão dos combustíveis fósseis e as alterações no uso dos solos, especialmente o desmatamento, lançam para a atmosfera grandes quantidades de dióxido de carbono. Este é um gás que provoca o efeito estufa. Laudato Si’ preconiza um novo modelo de desenvolvimento que tenha em atenção a solidariedade com os pobres e o respeito pela natureza e pelos recursos naturais. Estou convencido de que, se os povos seguissem o modelo que o Papa Francisco nos apresenta, o desenvolvimento sustentável seria possível.

 

IHU On-Line - Nessa lógica, qual é a importância das políticas de gestão de recursos naturais e de ambiente adequadas?

Filipe Duarte Santos - Apenas um exemplo: um celular tem um teor de ouro muito mais elevado do que o teor de ouro do minério das minas atuais mais produtivas, ricas em ouro. Por outras palavras: pode se retirar mais ouro de uma tonelada de celulares do que de uma tonelada de minério de ouro da mina mais rica em ouro do mundo. O mesmo acontece com a prata que existe nos nossos celulares.

Num planeta finito, os recursos naturais também são finitos. Ainda há muitos recursos naturais para explorar, mas a exploração intensiva associada ao modelo do consumismo e às profundas desigualdades sociais está degradando o ambiente. Isso vai tornar alguns desses recursos escassos. Temos de construir uma sociedade mais equitativa e justa, temos de gerar uma economia circular, temos de respeitar a natureza, temos de preservar a biodiversidade, temos de travar a mudança climática antropogênica. Se não o fizermos, as gerações futuras terão um planeta com maiores desigualdades econômicas e sociais, maior número de conflitos violentos, mais migrações, um ambiente muito degradado, recursos naturais perigosamente escassos e um clima mais adverso.

 

IHU On-Line - Em que medida a Encíclica aponta para uma compreensão de vida na Terra que pressupõe o bem comum como seu fundamento?

Filipe Duarte Santos - A Encíclica reflete os conhecimentos científicos atuais sobre o ambiente, os recursos naturais e o clima. Aponta soluções para os grandes problemas da humanidade, incluindo as alterações globais e a crise ecológica. Na minha opinião, vai haver uma grande resistência dos setores financeiro e econômico à escala global às propostas do Papa Francisco. A Encíclica é um documento muito corajoso que permitiria atingir um desenvolvimento sustentável e se baseia nos atuais conhecimentos científicos sobre esses temas.

 

IHU On-Line - Qual é a importância da transdisciplinaridade e também do diálogo entre as religiões para a busca de soluções aos problemas climáticos que enfrentamos?

Filipe Duatre dos Santos - Aquilo que diz o Papa Francisco na sua recente Encíclica é partilhado por outras religiões e por muitas pessoas, algumas que não são praticantes de nenhuma religião. A transdisciplinaridade é essencial para se encontrar a via para um desenvolvimento sustentável. Ou seja, para um desenvolvimento que deixe aos nossos filhos, netos e aos seus descendentes uma Terra que lhes permita uma vida melhor para todos, com menos desigualdades, sem crise ecológica, com recursos naturais relativamente abundantes e sem uma profunda mudança climática antropogênica. ■

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