Edição 467 | 15 Junho 2015

Neofeminismo e arte popular na América Latina

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Ricardo Machado

A pesquisadora mexicana Eli Bartra analisa o feminismo e arte popular do México a partir de nosso momento atual

Os ecos de 1968 ainda ecoam em nossas sociedades. Tanto as feministas norte-americanas da California quanto as representantes latino-americanas da Cidade do México beberam desta inspiração desobediente e potente em transformações. “Nós, as feministas do México, fomos influenciadas pelo movimento estudantil de 1968, pelo movimento dos direitos civis e o movimento negro norte-americano”, frisa a professora e pesquisadora Eli Bartra, em entrevista por e-mail à IHU On-Line

“Na Cidade do México, esse movimento começou com a tomada de consciência de pequenos grupos que se centravam para além da questão política pessoal, defendendo a descriminalização do aborto, a defesa das mulheres agredidas e contra a violação; estas foram as bandeiras de luta que atravessaram todo o feminismo mexicano até os dias atuais”, recupera Eli. Segundo a entrevistada, à época do surgimento do movimento, estas lutas tratavam-se de movimentos de rebeldia classificados como “escandalosos” por grande parte da sociedade.

Ao pensar as questões relacionadas à arte, Eli destaca que a arte popular não deve ser compreendida como algo imutável. “A arte popular sempre se transforma. Não é estática, ainda que siga sendo tradicional. Ela muda o tempo todo. Ocorre que atualmente vão se criando numerosos artesanatos e objetos de arte popular sob as exigências do mercado”, contextualiza. “No entanto isso não é novo e tampouco negativo, mas, ao contrário, positivo. O fato que alguém de fora da comunidade ou mesmo de fora do país peça que uma artesã faça um ou outro trabalho, como por exemplo os quadros de Frida Kahlo, não pode ser interpretado como algo negativo, pois isso só contribui e enriquece o campo”, complementa. 

Eli Bartra é professora na Divisão de Ciências Sociais e Humanidades da Universidad Autónoma Metropolitana - Xochimilco, no México. Dedicada aos estudos sobre feminismo é reconhecida internacionalmente e autora do livro Creatividad invisible: Mujeres en el arte popular (México: Pueg-Nnam, 2004). 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como o movimento feminista depois da década 1970, chamado “Nova onda”, emergiu no México? Quais são suas particularidades?

Eli Bartra – De forma resumida, o neofeminismo ou a Nova Onda, começa no México no princípio da década de 1970 influenciado diretamente pela feminismo da California. Tanto as feministas da California quanto nós, as feministas do México, fomos influenciadas pelo movimento estudantil de 1968, pelo movimento dos direitos civis e o movimento negro norte-americano. Na Cidade do México, esse movimento começou com a tomada de consciência de pequenos grupos que se centravam para além da questão política pessoal, defendendo a descriminalização do aborto, a defesa das mulheres agredidas e contra a violação; estas foram as bandeiras de luta que atravessaram todo o feminismo mexicano até os dias atuais. Tratava-se de um movimento de rebeldia, espontâneo e um tanto “escandaloso”, no princípio, contra todas as formas de opressão sexista. 

 

IHU On-Line – Que conquistas políticas foram sendo construídas ao longo das últimas décadas do século XX que resultaram na participação efetiva do público feminino nas questões sociais?

Eli Bartra – Ao longo dos anos tivemos conquistas importantes. As mulheres se incorporaram pouco a pouco na política formal em diversos cargos políticos eletivos, mas ainda são uma franca minoria. O aborto deixou de ser crime na Cidade do México, embora no restante do país continue sendo criminalizado. Sem dúvida há avanços, mas não tantos como se esperaria que ocorressem depois de séculos de luta e 45 anos de neofeminismo. As mulheres foram inseridas no mundo do trabalho, principalmente no trabalho informal, porém o trabalho doméstico continua sendo quase uma exclusividade feminina. Percebemos mudanças nesse âmbito, mas ainda poucos.

 

IHU On-Line – Que relações há entre a arte popular mexicana e a participação social feminina?

Eli Bartra – A arte popular mexicana passou a ser melhor conhecida no período pós-revolução de 1910, nos anos 1920 e 1930. Nesta época muitos intelectuais e artistas se voltaram à arte popular considerando-a “a autêntica expressão do povo mexicano”. Outro grande momento de impulsão da arte popular foi Daniel Rubín de la Borbolla  nos anos 1940 com a criação do Museo de Artes e Industria Populares, o qual foi diretor por mais de uma década. Nos anos 1970 foi criado o Fundo Nacional para o Fomento dos Artesanatos (Fonarte, na sigla em espanhol), quando se passa a não distinguir Artesanato de Arte Popular, o que, ainda que de maneira moderada, representa um apoio às artesãs e aos artesãos. Entretanto, ainda há muito trabalho a ser feito para reconhecer  as mulheres como as principais criadoras da arte popular.

 

IHU On-Line – Como o neozapatismo reconfigurou a arte popular no México?

Eli Bartra – O neozapatismo  configurou de uma maneira muito interessante um certo tipo de arte popular. Escrevi um pouco sobre isso no livro Creatividad invisible: Mujeres en el arte popular (México: Pueg-Nnam, 2004). Acontece que as mulheres da localidade de Chiapas faziam, e fazem, pulseiras de retalhos com a tecidos típicos da região. Em 1994, com a insurgência neozapatista, as mulheres começaram a fazer estas mesmas pulseiras com fuzis e também com “marquitos”  e “ramonas” . Na época pensei que esta arte ia desaparecer rapidamente, que era algo eminentemente efêmero, porém estas pulseiras são feitas até hoje, simplesmente porque seguem vendendo. 

 

IHU On-Line – Que relação há entre este tipo de arte popular e o feminismo?

Eli Bartra – Tais relações são quase nulas. Pouco foi escrito e pesquisado sobre as relações entre arte popular e o feminismo. Ainda que o feminismo tenha se interessado muito por outras artes, desde os anos 1960, a arte popular foi praticamente ignorada. Entretanto, este pensamento chegou às artesãs que vêm tomando cada vez mais consciência sobre os próprios fazeres como criações artísticas. 

 

IHU On-Line – De que forma a cultura e a arte das etnias da região de Chiapas impactou politicamente no contexto mexicano?

Eli Bartra – O que trouxe impacto foram os “marquitos” e as “ramonas” que se espalharam por todos os rincões do país com uma carga político-simbólica muito específica. No entanto, pouco da cultura e da arte de Chiapas teve impacto expressivo fora do Estado. O que, sim, gerou um movimento político foi o neozapatismo e o papel das mulheres, com a Lei Revolucionária das Mulheres Zapatistas,  que foi decisiva para o próprio apoio do neozapatismo, bem como para as demais mulheres indígenas do país.

 

IHU On-Line – Como a arte popular mexicana foi impactada por uma certa “globalização” das figuras de Marcos e Ramona? Quais foram os resultados  práticos desta “globalização” e até “europeização” dos lideres latinos?

Eli Bartra – O impacto principal é, justamente, a comercialização destas figuras. Também se produziu imagens de barro do sub-comandante Marcos em algumas comunidades indígenas como em Oumicho, Michoacán. Não creio que esta “globalização” tenha sido muito significativa, exceto pelo fato de que estas figuras seguem sendo vendidas.

 

IHU On-Line – De que forma ocorre uma certa “adaptação de mercado” das mulheres artesãs e, em última instância, da própria arte popular? Apesar dessas mudanças ainda podemos classificar esse trabalho como arte popular?

Eli Bartra – A arte popular sempre se transforma. Não é estática, ainda que siga sendo tradicional. Ela muda o tempo todo. Ocorre que atualmente vão se criando numerosos artesanatos e objetos de arte popular sob as exigências do mercado. No entanto isso não é novo e tampouco negativo, mas, ao contrário, positivo. O fato que alguém de fora da comunidade ou mesmo de fora do país peça que uma artesã faça um ou outro trabalho, como por exemplo os quadros de Frida Kahlo,  não pode ser interpretado como algo negativo, pois isso só contribui e enriquece o campo. Erroneamente se pensa que isso adultera ou empobrece a arte popular, mas as coisas não são assim.

 

IHU On-Line – Deseja ascrescentar algo?

Eli Bastra – A arte popular é cheia de mitos e devemos fazer um trabalho constante de desmistificação. A arte popular não é uma criação do povo em abstrato, mas de pessoas concretas, de uma geografia particular em um contexto sócio-histórico e cultural específico, com gêneros, sexualidades e idades distintas, de diferentes etnias e racionalidades. ■

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