Edição 467 | 15 Junho 2015

O descompasso entre os mundos digital e educacional no ensino de línguas

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Leslie Chaves

Para Rafael Vetromille-Castro, apesar de os recursos tecnológicos posicionarem os estudantes como protagonistas no uso da língua, ainda são utilizados como coadjuvantes nos processos de ensino-aprendizagem

Não é necessário fazer uma análise profunda para constatar a intensa inserção das Tecnologias de Comunicação e Informação - TICs nos diversos espaços e ocasiões da vida em sociedade. Um desses ambientes é a sala de aula. De acordo com Rafael Vetromille-Castro, o uso das tecnologias na educação está “em estágio avançado de normalização”. O professor, que prefere usar o termo Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação – TDICs para se referir aos aparatos tecnológicos, afirma que há aproximadamente 15 anos foi iniciado um movimento ordenado e institucional de investimento em infraestrutura tecnológica nos estabelecimentos de ensino. “A inserção das TDICs no ambiente educacional hoje é ampla, seja por caminhos institucionalmente constituídos, seja pela utilização fortuita e individual dos recursos tecnológicos nos espaços de aprendizagem, especialmente quando não os pensamos restritos aos muros escolares”, constata o pesquisador, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Entretanto, essa inserção em sala de aula, e no espaço escolar de uma maneira geral, não garante o uso efetivo das tecnologias nos processos didáticos. As TICs, ou TDICs, ainda ocupam uma posição coadjuvante em todos os níveis educacionais, seja nos currículos de ensino, nos projetos político-pedagógicos, ou nas práticas pedagógicas de cada professor. “Nossos professores, de modo geral, estão saindo das licenciaturas com nenhuma ou pouca reflexão coletiva sobre o uso das TDICs e entrando em salas de aula com alunos cujas práticas de linguagem cotidianas passam por recursos tecnológicos digitais”, aponta Vetromille-Castro.

Ao longo da entrevista, o pesquisador também abordou os principais aportes, temas de interesse e a importância dos estudos em Linguística Aplicada sobre o uso das TICs nas práticas pedagógicas, e mais especificamente em relação ao ensino de línguas. “Vejo a questão metodológica da aprendizagem de línguas com as TDICs e a questão de formação ampla do cidadão por meio das práticas sociais da linguagem em meio digital, não somente como contribuição valorosa, mas como compromisso da área”, ressalta.

Rafael Vetromille-Castro é graduado em Letras pela Universidade Federal de Pelotas - UFPel, mestre em Linguística Aplicada pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Católica de Pelotas - UCPel e doutor em Informática na Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Atualmente é professor do Programa de Pós-Graduação em Letras stricto sensu da UFPEL, do qual é coordenador, e professor na área de língua inglesa do Centro de Letras e Comunicação da mesma universidade. É um dos autores da série Fundamentos de EaD I (2010), II e III (Pelotas: Editora Universitária/UFPel, 2012), e organizou, junto com Christiane Heemann e Vanessa Ribas Fialho, Aprendizagem de línguas - a presença na ausência: CALL, Atividade e Complexidade (Pelotas: Educat, 2012). 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como se dá a inserção das Tecnologias de Informação e Comunicação - TICs no ambiente educacional atualmente?  

Rafael Vetromille-Castro - De fato, ao observarmos de maneira ampla, é possível dizer que as TICs (ou, se preferirmos, as Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação - TDICs) estão em estágio avançado de normalização, recorrendo a um termo de Bax (2003) . Encontramos os recursos tecnológicos digitais sendo utilizados na modalidade online, offline ou híbrida. Nos últimos 15 anos, aproximadamente, foi iniciado um movimento de provimento de infraestrutura tecnológica, representado pela instalação de laboratórios de informática, com ou sem acesso à Internet, em escolas públicas e privadas de nível fundamental, médio, tecnológico e superior. Mais recentemente, governos municipais, estaduais e federal distribuíram, por meio de políticas públicas específicas, dispositivos móveis para as instituições, como laptops e tablets. Todas essas iniciativas compõem um movimento ordenado e institucional. Entretanto, de alguns anos para cá, testemunhamos a disseminação (ou popularização, se preferirmos) das tecnologias móveis, representadas pelo acesso a tablets de uso pessoal e, notadamente, aos smartphones. Adicionamos a isso planos de acesso à Internet com custo de centavos por dia e o espraiamento de redes wi-fi abertas em estabelecimentos comerciais, de ensino e até mesmo em espaços públicos. Em suma, a inserção das TDICs no ambiente educacional hoje é ampla, seja por caminhos institucionalmente constituídos, seja pela utilização fortuita e individual dos recursos tecnológicos nos espaços de aprendizagem, especialmente quando não os pensamos restritos aos muros escolares.

 

IHU On-Line – Como o campo de pesquisa em Linguística Aplicada tem abordado a questão do uso das TICs nas práticas pedagógicas de uma maneira ampla?

Rafael Vetromille-Castro - Entendo como representativo olhar o uso das TDICs nas práticas pedagógicas a partir da Aprendizagem Mediada por Computador (CALL) . Recorrendo ao trabalho de Reis (2009) , percebemos que as pesquisas em Linguística Aplicada se ocuparam basicamente de três campos ou, como denomina a autora, três fases. A primeira, de 1998 a 2002, investigou mais detidamente a inserção de tecnologias nas aulas de línguas estrangeiras. Na sequência, de 2002 a 2006, pesquisadores concentraram esforços em pesquisar a implementação e a elaboração de materiais didáticos por meio de tecnologias. A última fase apresentada pela autora — de 2006 a 2008 — reuniu de modo mais destacado a avaliação de atividades de linguagem no contexto digital e relatos de experiência sobre o ensino mediado por computador. Mesmo após sete anos desde o levantamento de Reis, ainda encontramos pesquisas em Linguística Aplicada voltadas à inserção, à implementação e à avaliação das tecnologias nas práticas pedagógicas. Pessoalmente, entendo que tais interesses se mantenham relevantes em virtude do surgimento ininterrupto de novas ferramentas, voltadas para novas práticas sociais e demandando novas reflexões.  Há pesquisadores imprimindo esforços para a compreensão de novos gêneros que possuem as TDICs como suporte, há a questão do discurso — especialmente no que tange à emergência dos sites de redes sociais — sem esquecer das pesquisas sobre letramentos (incluídos aqui, sem juízo de valor, os termos “letramento crítico”, “letramento digital”, “multiletramentos”).

 

IHU On-Line – De que maneira as pesquisas em Linguística Aplicada sobre o uso das TICs nas práticas pedagógicas podem contribuir para o desenvolvimento dessa interface entre educação e tecnologia?

Rafael Vetromille-Castro - As contribuições são inúmeras, contabilizando, inclusive, os temas que mencionei anteriormente. No entanto, tenho me posicionado favorável a um enfoque maior da área em dois pontos: o primeiro, mais voltado para a aprendizagem de línguas, seria o de desenvolver e investigar metodologias para o desenvolvimento linguístico nas quais as TDICs desempenhem papéis tão preponderantes quanto aqueles que tais recursos ocupam nas práticas sociais de linguagem em dada língua adicional. Em um contexto de comunicação global amplo e instantâneo, o qual demanda competência comunicativa e é fomentado pelo uso disseminado das TDICs, não me parece recomendável que insistamos em deixá-las de fora ou em um plano meramente acessório. 

O outro ponto diz respeito ao impacto que o uso das tecnologias digitais tem nas práticas sociais de linguagem e à decorrente demanda pela construção de um processo reflexivo em âmbito educacional sobre o papel e o poder das TDICs. Notamos essa necessidade especialmente quando acessamos sites de redes sociais, espaços onde há uma suposta liberdade extrema e um alto potencial de exposição dos indivíduos. Em vez de deixar as tecnologias como elementos marginais no processo educacional, proponho que as incluamos em diversas fases do processo educacional: nos currículos escolares, nos projetos político-pedagógicos de cursos universitários (principalmente os de formação de professores) e nas práticas pedagógicas de cada professor. Em todas essas fases, independentemente da disciplina, há práticas sociais de linguagem que trazem implicações locais (como a solução de um mal-entendido entre colegas de aula) a repercussões mais profundas (como questões de assédio moral, preconceito, dentre outras). Entendo tais pontos como nevrálgicos para uma área que se propõe a debater e refletir práticas sociais e seus desdobramentos na comunidade linguística.

 

IHU On-Line – Que contribuições a inserção das TICs no ambiente educacional pode trazer para os processos de ensino-aprendizagem especificamente de língua estrangeira?

Rafael Vetromille-Castro - Vejo a questão metodológica da aprendizagem de línguas com as TDICs e a questão de formação ampla do cidadão por meio das práticas sociais da linguagem em meio digital não somente como contribuição valorosa, mas como compromisso da área.

 

IHU On-Line – Em relação à formação de professores, em geral, os cursos de licenciatura em língua estrangeira estão preparando os docentes para atuar no sistema de ensino-aprendizagem em ambiente digital ou híbrido? De que forma? Quais são os pontos de avanço e de deficiência nesse aspecto?   

Rafael Vetromille-Castro - Tenho uma visão muito particular sobre a preparação do docente de língua estrangeira para o uso das TDICs. Excetuando as licenciaturas em língua estrangeira a distância, as quais possuem a obrigação curricular de tratar do tema, com alguns cursos ofertando disciplinas como “Fundamentos da EAD” e “EAD Instrumental”, diria que as iniciativas em preparar os docentes para contextos digitais ou híbridos são esparsas e dependentes de contextos muito peculiares. Não há um movimento formal e nacional forte para a inclusão obrigatória de disciplinas que abordem a temática, como houve, por exemplo, com a inserção de cadeiras de Libras em todas as licenciaturas. Se me é permitida a analogia, entendendo e reconhecendo o mérito e a motivação de inserção da Língua Brasileira de Sinais nos currículos, vejo a necessidade de movimento semelhante para disciplinas que tratem das TDICs nos currículos de formação docente. Nossos professores, de modo geral, estão saindo das licenciaturas com nenhuma ou pouca reflexão coletiva sobre o uso das TDICs e entrando em salas de aula com alunos cujas práticas de linguagem cotidianas passam por recursos tecnológicos digitais. Tais recursos têm colocado os alunos como protagonistas no uso da língua, mas, quando chamados a engajarem-se em atividades formais de aprendizagem, são muitas vezes relegados a um papel de coadjuvante. Há, é claro, experiências que colocam o aluno e seu conhecimento/interesse tecnológico no centro do processo. O que percebo como lacuna, no entanto, é um movimento consistente, robusto e minimamente organizado nesse sentido. É um grande e bom desafio.

 

IHU On-Line – Como equalizar as diferentes competências dos professores e estudantes no contato com as TICs durante os processos de ensino-aprendizagem no espaço de sala de aula? 

Rafael Vetromille-Castro - Há iniciativas de formação continuada, como aquelas pelas quais professores tutores da Universidade Aberta do Brasil - UAB  precisam passar para atuar nos cursos superiores a distância. Há outras propostas isoladas, por meio de cursos de especialização. Entretanto, como disse anteriormente, vejo essa equalização possível e robusta a partir de um movimento institucional e político que passe a inserir formalmente a reflexão sobre o uso e o impacto das TDICs nas grades curriculares de cursos de formação de professores de línguas.

 

IHU On-Line – Em que consiste o entendimento da sala de aula enquanto Sistema Adaptativo Complexo - SAC? O que essa perspectiva representa para as pesquisas sobre práticas pedagógicas em ambiente digital ou híbrido? 

Rafael Vetromille-Castro - Entender a sala de aula como um SAC parte da compreensão desse espaço como um organismo dinâmico, aberto e suscetível a fatores externos, não linear, que emerge a partir de certas condições iniciais e se mantém vivo e se desenvolve enquanto há interação entre os elementos que o constituem. Tal perspectiva demanda o tratamento das questões de ensino-aprendizagem dentro de uma ótica do desenvolvimento, não de aquisição. A sala de aula não seria, assim, a mera soma de alunos, professor, cadeiras, livros, computadores, etc., mas aquilo que emerge a partir da interação de todos esses elementos. Em suma, pelo olhar complexo, a aula é mais do que a soma de suas partes. Há uma série de implicações que as Teorias da Complexidade e do Caos trazem para a pesquisa em Linguística Aplicada, como Larsen-Freeman e Cameron (2008)  demonstram na obra Complex Systems and Applied Linguistics (Oxford: Oxford University Press, 2008). À guisa de ilustração, talvez as mais destacadas implicações seriam o abandono do paradigma clássico de ciência — baseado na ordem, na separabilidade e na lógica dedutivo-identitária — e, justamente por demandar uma visão do todo em análise, a necessidade de o pesquisador definir qual é o SAC em estudo — seus elementos, suas condições iniciais, suas fronteiras e comportamentos. A abordagem complexa tem permitido não somente observar a importância da interação para a emergência sistêmica e a consequente aprendizagem, mas, por exemplo, de modo mais pontual, observar o desenvolvimento da interlíngua , por meio de seus comportamentos ao longo do tempo, como observado por Nunes (2014) . 

 

IHU On-Line – Qual é o papel da interação nos processos de ensino-aprendizagem em contextos de salas de aula online ou híbridos?

Rafael Vetromille-Castro - O papel fundamental da interação não é notado apenas quando adotamos uma perspectiva complexa em relação aos processos de ensino-aprendizagem, muito embora seja notável a influência que o estabelecimento de relações interativas entre indivíduos e elementos tem na construção do conhecimento quando lançamos um olhar complexo sobre o fenômeno da aprendizagem. Quando as primeiras experiências com salas de aula online ou híbridas surgiram, vários de nós, pesquisadores, constatamos que algumas situações simplesmente “não funcionavam”. Não rara foi a constatação de que em muitos dos casos de insucesso encontrávamos a mera transposição de um modelo de aula presencial para o virtual, com nenhuma ou pouquíssima adaptação. E esse modelo, via de regra, era baseado na transmissão de conhecimento, na aula expositiva, centrada no professor. Portanto, por ser central em qualquer processo de aprendizagem, a interação não somente serve como um elemento aferidor do potencial de resultado de uma dada aula, como é, em contexto online ou híbrido, uma condição inescapável. Talvez outros pesquisadores não vejam exatamente da mesma forma, mas nossas pesquisas — incluídas aqui aquelas desenvolvidas por pesquisadores de nosso grupo — têm evidenciado a preponderância da interação para contextos de aprendizagem com TDICs.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo que não tenhamos abordado? 

Rafael Vetromille-Castro - Gostaria de agradecer pela oportunidade de compartilhar algumas de minhas visões sobre o tema. Hoje, temos as TDICs muito mais presentes em nosso cotidiano, otimizando nosso tempo e auxiliando em uma série de tarefas. No entanto, justamente pela presença cada vez mais normalizada dos recursos tecnológicos em nossas vidas, julgo fundamental que tenhamos um olhar sempre crítico sobre o recurso e, no nosso caso, analisando seu impacto nas práticas sociais de linguagem e na formação dos cidadãos. ■

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