Edição 466 | 01 Junho 2015

A recepção do pontificado de Francisco no país mais secular da América Latina

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Patrícia Fachin

Pablo Bonavía destaca a postura do Papa ao colocar o doutrinal a “serviço do anúncio e vivência original da fé” e a repercussão no Uruguai

O Uruguai, considerado o país mais secular da América Latina, vive um momento de “transição” em relação ao papel e à centralidade da religião na vida das pessoas, disse Pablo Bonavía à IHU On-Line, em entrevista concedida pessoalmente quando esteve na Unisinos, participando do II Colóquio Internacional IHU – O Concílio Vaticano II: 50 anos depois. A Igreja no contexto das transformações tecnocientíficas e socioculturais da contemporaneidade. A atual situação eclesiástica do Uruguai é consequência de “um período de certa pobreza em nível de proposta eclesial”, explica. Segundo ele, a “pastoral ‘agressiva’” realizada depois do Concílio Vaticano II e de Medellín cedeu lugar a “um período de empobrecimento, de incapacidade de oferecer uma proposta para a sociedade como um todo”, com o término do episcopado de Monsenhor Carlos Partelli.  

Na avaliação dele, os desafios da Igreja uruguaia “são grandes” e a “figura do Papa Francisco pode significar um estímulo” no sentido de enfrentá-los. Contudo, enfatiza, “ainda veremos se as provocações de Francisco e se o entusiasmo pelo carisma pessoal dele poderá se converter em uma compreensão de sua proposta de Igreja, que passa precisamente por sair ao encontro dos desafios da sociedade, sem prepotência”.

Para Pablo Bonavía, a principal mensagem de Francisco nos dois anos de seu pontificado concentra-se numa sugestão de “voltar ao Jesus dos Evangelhos, ao elementar de Jesus, e isso não somente no sentido de recuperá-lo no mais original e radical cristianismo, mas também de atualizá-lo e ressignificá-lo”. Isso significa, pontua, afirmar que “a vivência do Evangelho tem o primeiro lugar. A pastoralidade que ele vive e aplica envolve não subordinar a vida da Igreja ao doutrinal, mas colocar o doutrinal a serviço do pastoral”.

Pablo Bonavía é sacerdote uruguaio do clero diocesano de Montevidéu. É coordenador do Observatório Eclesial da Ameríndia e professor de Teologia na Faculdade de Teologia Monseñor Mariano Soler. Foi coordenador-geral da Ameríndia Continental até 2008.

Confira a entrevista. 

 

IHU On-Line - Qual é a expressividade da religião, e do catolicismo em especial, no Uruguai?

Pablo Bonavía – O catolicismo no Uruguai está num momento de transição, porque vivemos um período de certa pobreza em nível de proposta eclesial. Houve uma capacidade de apresentar propostas após Medellín, com uma pastoral “agressiva” — no bom sentido da palavra —, com a presença de laicos e a partir de uma imagem de Igreja comprometida com a dignidade do ser humano. Mas, logo após o período do episcopado de D. Carlos Partelli, que era o bispo de Montevidéu, e que participou do Concílio Vaticano II e de Medellín, veio um período de empobrecimento, de incapacidade de oferecer uma proposta para a sociedade como um todo, e a Igreja tornou-se mais autorreferencial e encerrada em sua dinâmica interna, com pouca capacidade de diálogo com a sociedade. Os desafios que temos nesse momento são grandes e a figura do Papa Francisco pode significar um estímulo, porque realmente necessitamos voltar a sentir que todos somos sujeitos na Igreja. 

Tivemos um período em que o laicato se sentiu marginalizado, e o grande desafio hoje é desenvolver uma pastoral recorrendo aos desafios que vêm de Francisco e também da sociedade latino-americana. Precisamos voltar a dizer a todos os integrantes da Igreja que eles são sujeitos e que suas experiências valem. 

 

IHU On-Line – O que significa ser sujeito em diálogo com a Igreja? 

Pablo Bonavía – Ser sujeito na Igreja significa dizer que a experiência de cada pessoa e de cada comunidade é levada em conta e valorizada pela Igreja local e que, por pertencerem à Igreja local, podem pertencer à Igreja universal. Há um costume de que as ordens venham da autoridade, mas isso pode ser invertido, porque as autoridades têm de saber escutar não somente as pessoas que consideram importantes, mas também o povo comum e os setores marginalizados da sociedade. Ser sujeito significa dizer que a experiência original de cada cristão vale e que cada cristão não é simplesmente um soldado que acata ordens. 

 

IHU On-Line - Com o pontificado de Francisco, percebe alguma mudança na Igreja uruguaia e até mesmo um entusiasmo de uruguaios em se tornarem cristãos? Como os uruguaios têm recebido o pontificado? 

Pablo Bonavía – Creio que ainda veremos se as provocações de Francisco e se o entusiasmo pelo carisma pessoal dele poderão se converter em uma compreensão de sua proposta de Igreja, que passa precisamente por sair ao encontro dos desafios da sociedade, sem prepotência.

 

IHU On-Line - Como avalia os dois anos do pontificado de Francisco? O que faz com que ele seja aclamado por pessoas tão diferentes, desde cristãos a ateus? Que mudanças espera dele?

Pablo Bonavía – As mudanças dependem do conjunto da Igreja. O Papa está nos convidando a não esperar dele o que todos temos de fazer. Portanto, a melhor maneira de seguir o Papa é escutar-nos uns aos outros e, sobretudo, escutar aqueles que não têm autoridade na Igreja. Então, o Papa está dizendo que a sua autoridade serve para autorizar a todos os cristãos a tomarem suas experiências e as experiências dos demais e, a partir disso, viver a sinodalidade. Isso significa que as decisões na Igreja devem ser tomadas sem deixar de lado o conjunto da comunidade e das pessoas.  

 

IHU On-Line - Qual a importância de o Papa recuperar a categoria “povo de Deus”, a qual o senhor sempre lembra?

Pablo Bonavía – É muito importante recuperá-la, porque de alguma maneira se deixou de lado essa categoria, porque se considerava que ela estava mesclada com questões ideológicas e políticas. O Papa volta a usar essa expressão do Vaticano II e, sobretudo, insistindo no que se chama de “sensus fidei”. Quando se diz que tem de escutar a todos os cristãos, não se diz isso apenas como uma estratégia pedagógica, mas porque há a convicção de que a unção e a ação do Espírito Santo estão presentes em cada cristão e em cada grupo de cristãos. E, portanto, não escutá-los significa não escutar o Espírito Santo.  

 

IHU On-Line - Como foi o processo de responder aos questionários do Sínodo Extraordinário sobre a Família no Uruguai?

Pablo Bonavía – Parece mentira, mas no momento em que uma proposta chega a um país, o desenvolvimento dela depende também da maior ou menor repercussão que ela tem. No Uruguai, os meses de dezembro, janeiro e fevereiro são meses de desativação de instituições e comunidades, e o primeiro questionário chegou nesse momento, por isso as respostas ao questionário foram respondidas de modo apressado e não deu tempo de processá-las adequadamente. Em relação ao segundo questionário, não sei como foi a repercussão. 

 

IHU On-Line - Quais são os discursos mais importantes feitos pelo Papa Francisco nesses dois anos?

Pablo Bonavía – Sua mensagem principal sugere voltar ao Jesus dos Evangelhos, ao elementar de Jesus, e isso não somente no sentido de recuperá-lo no mais original e radical cristianismo, mas também de atualizá-lo e ressignificá-lo, e de pôr em atenção o que se vive na sociedade de hoje. Portanto, ele nos convida a superar os conflitos em torno do Concílio, porque a principal mensagem do Concílio foi voltar à fonte, voltar a Jesus pelos Evangelhos, mas de uma forma contextualizada. 

 

IHU On-Line - Qual é a diferença de se ter um papa mais pastoral e menos teólogo? Que lugar a doutrina e a pastoral devem ocupar na Igreja?

Pablo Bonavía – Esse é um dos grandes aportes de Francisco: colocar o doutrinal a serviço do anúncio e da vivência original da fé. Não é que o doutrinal não tenha um papel no sentido de precisar aquilo que queremos. Sim, tem um lugar, mas não é um lugar principal; tem um lugar importante de apoio, de confirmar e convidar a revisar a forma como se vive o Evangelho, mas a vivência do Evangelho tem o primeiro lugar. A pastoralidade que ele vive e aplica envolve não subordinar a vida da Igreja ao doutrinal, mas colocar o doutrinal a serviço do pastoral. 

 

IHU On-Line - Que avaliação faz do ex-governo Mujica?

Pablo Bonavía – O governo de Mujica foi um bom testemunho de alguém que governou sem esquecer o seu passado, sem deixar de escutar o povo, principalmente os mais pobres. A vida dele é uma mensagem positiva para a vida política. Como governante, também teve suas dificuldades, sobretudo no que se refere a questionar seus objetivos enquanto governante. Nesse sentido, ele deixou uma série de tarefas, umas incompletas e outras que ainda precisam ser feitas. Apesar das dificuldades que teve, como qualquer governo, ele passou a mensagem de que hoje precisamos recuperar a sensibilidade de uns para com os outros, num mundo em que a prática propõe a indiferença. Por outro lado, foi consciente de que as necessidades de financiar seus projetos sociais o fizeram entrar no que é a vida econômica mundial. Portanto, ao mesmo tempo em que proclamou uma volta ao essencial, se deu conta de que precisava negociar com grupos poderosos e que, nesse sentido, garantir trabalho para os uruguaios implicava ter investimentos, e isso significava não questionar muito os custos ecológicos e sociais dos processos. ■

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