Edição 465 | 18 Mai 2015

O amor e a misericórdia são categorias centrais da teologia e prática de Francisco

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João Vitor Santos e Patricia Fachin

Leonardo Boff aponta os conceitos de amor e misericórdia como centrais no pontificado de Francisco. Para o teólogo, são posturas que renovam e quebram a centralidade europeia

Para o teólogo Leonardo Boff, já nos primeiros momentos do pontificado Bergoglio deu sinais que trazia mudanças, que queria movimento no comando na Igreja. “Ele introduziu rupturas na forma secular de apresentar o exercício e a missão do Papado”, destaca. Boff chama atenção para o fato de Francisco não se apresentar como o membro de uma corte, e sim como um pastor que não só conduz o rebanho, mas o ouve. Muito disso orientado pela leitura que faz da Teologia da Libertação, tomando como princípios ideias de amor e misericórdia. “O amor e a misericórdia são categorias centrais de sua teologia e prática na linha da tradição de Jesus. Não era este o sentimento face aos portadores de poder sagrado, anteriores ao Papa Francisco”, completa, em entrevista concedia por e-mail à IHU On-Line.

A origem latino-americana desse Papa também está cheia de significados. Leonardo Boff encara o Papado de Francisco como “uma nova dinastia de Papas que não virão mais da velha e, de certo modo, envelhecida cristandade europeia”. Segundo ele, há uma abertura para outro mundo católico, com realidades e particularidades muito distintas da europeia. “Na Europa, vivem apenas 25% dos católicos. Mais de 65% nas Américas e na África e o restante na Ásia. Com isso, surge uma figura de Papa mais ligada à pastoral, à inculturação nas várias culturais regionais, e por isso mais pastor que doutor”, exemplifica.

Leonardo Boff é teólogo da libertação, escritor, professor e conferencista, além de assessor de movimentos sociais e das comunidades eclesiais de base. É autor de mais de 60 livros nas áreas de teologia, espiritualidade, filosofia, antropologia e mística, entre os quais citamos Ecologia: grito da terra, grito dos pobres (Petrópolis: Vozes, 2015); São Francisco de Assis. Ternura e vigor (8. ed. Petrópolis: Vozes, 2000); Ética da vida (Rio de Janeiro: Sextante, 2006); e Virtudes para outro mundo possível II: convivência, respeito e tolerância (Petrópolis: Vozes, 2006). 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quais são as diferenças entre a Teologia do Povo,  de Francisco, e a Teologia da Libertação ?

Leonardo Boff - As diferenças são de método, e não de conteúdo e de objetivos. Ambas se propõem à libertação. A Teologia do Povo parte do povo oprimido ou da cultura silenciada e busca a libertação através da potenciação dos valores vividos pelo povo, com seu ethos próprio, suas festas e tradições. A Teologia da Libertação, como veio formulada, primeiramente, por Gustavo Gutiérrez,  se preocupava, antes de tudo, na identificação das causas que levaram o povo a ser oprimido. Para isso se utilizaram de forma meramente instrumental, sem incorporar a ideologia subjacente, das categorias da tradição crítica, elaborada principalmente por Marx.  Este mostrava que o pobre, na verdade, é feito pobre, é um empobrecido como consequência da exploração que a classe capitalista faz sobre a classe operária. 

A versão argentina evita a questão de classe, parte do povo oprimido como um dado imediato, sem precisar identificar as causas que o levaram a esta situação. Talvez tenha evitado o recurso da tradição crítica para evitar a desconfiança e perseguição dos militares que se opunham a qualquer sinal que denotasse presença de categorias marxistas. Mas essa é uma interpretação minha. Cabe enfatizar que estas teologias não se opõem, mas se compõem. E, também, nem uma quer ser alternativa à outra, pois ambas assumem os mesmos objetivos.

 

IHU On-Line - Que novidade o Papa Francisco apresenta? E para onde ele quer levar a Igreja?

Leonardo Boff - A novidade é a própria figura do Papa Francisco. Ele introduziu rupturas na forma secular de apresentar o exercício e a missão do Papado. Prefere ser chamado bispo de Roma que coordena toda a Igreja na caridade (por isso é Papa de toda a Igreja) e não pelo poder sagrado, codificado pelo direito canônico. 

Ele deu centralidade à categoria de “Igreja povo de Deus” e não uma comunidade-sociedade hierarquicamente organizada. Com isso conferiu uma igualdade fundamental a todos os fiéis da comunidade eclesial e fez dos portadores de poder sagrado servidores do povo, com “cheiro de ovelha”, e por isso mais pastores que autoridades eclesiásticas. Despaganizou a figura do Papa, libertando-o de todos os símbolos de poder. Especialmente a capinha sobre os ombros toda ornada (mozzeta), expressão do supremo poder dos imperadores. 

É o primeiro Papa que se enfrenta diretamente com o sistema do capital, como a causa maior do sofrimento de grande porção da humanidade. Não fala dos pobres. Vai lá onde estão, abraça-os e convive com eles.

 

IHU On-Line - Como a ideia de colegialidade aparece no Papado de Francisco e quais seus significados?

Leonardo Boff - A ideia da colegialidade faz parte de sua concepção de como deve ser o exercício do bispo de Roma e do Papa da Igreja universal, não de forma monárquica e absolutista, mas de forma descentralizada e compartida. A categoria foi introduzida pelo Vaticano II.  No entanto, nunca ganhou praticidade, pois, novamente, tudo se centralizava na figura do Papa. Esse fato era chamado pela teologia de “cefalização”, como algo exacerbado e desequilibrador das relações internas na Igreja. Agora, a colegialidade pertence ao próprio exercício de governo da Igreja. 

Com isso invalida o que se sabe: onde impera o poder, aí não existe amor e desaparece a misericórdia. Com Francisco, o amor e a misericórdia são categorias centrais de sua teologia e prática na linha da tradição de Jesus. Não era este o sentimento face aos portadores de poder sagrado, anteriores ao Papa Francisco.

 

IHU On-Line - Que perspectivas o senhor vê para o Papado de Francisco? Quais seus maiores desafios?

Leonardo Boff - Creio que o Papa Francisco inaugura uma nova dinastia de Papas que não virão mais da velha e, de certo modo, envelhecida cristandade europeia. Na Europa, vivem apenas 25% dos católicos, enquanto no terceiro e quarto mundo (se nos é permitido ainda falar assim) vivem as grandes maiorias. É mais de 65% nas Américas e na África e o restante na Ásia. Com isso, surge uma figura de Papa mais ligada à pastoral, à inculturação nas várias culturais regionais, e por isso mais pastor que doutor ou professor e mestre da fé. Será o testemunho de um cristianismo despojado, pobre, próximo das pessoas, e por isso atrai mais pelo fascínio do que pela endoutrinação. 

Seus maiores desafios residem ao fato de viver em Roma e de ser, de certa forma, refém de hábitos clericais seculares, palacianos, principescos que imperam ainda no Vaticano e em seus palácios. Tais hábitos mais escandalizam os fiéis do que remetem à figura do Nazareno, homem do povo, pobre e amigo dos pobres. No clero e nos bispos tradicionais do mundo inteiro, que foram socializados neste modelo de bispo, de padre ou de religioso/a encontrará críticos, resistentes e até opositores diretos. 

 

IHU On-Line - Que conceitos norteiam a fundamentação teológica de Francisco?

Leonardo Boff - A singularidade deste pontificado reside no fato de que não pode ser enquadrado em nenhuma escola teológica e em nenhum estilo conhecido de exercício de seu poder. Ele é único, extremamente original e surpreendente. Antes de tudo, concebe a Igreja como uma casa aberta na qual todos podem aceder, sem nenhuma precondição doutrinária ou moral. É como um hospital de campanha que acolhe especialmente os vulneráveis e os que andam, desgarrados, em busca de algum sentido de vida. Abriu a Igreja ao mundo moderno sem os senões e as severas críticas tão enfatizadas pelos Papas anteriores. 

Do mundo moderno passou ao mundo dos pobres, feitos os primeiros destinatários de sua ação pastoral. E do mundo dos pobres passou para o cuidado do grande pobre que é o planeta Terra, ameaçado em sua vitalidade que pode comprometer o futuro de nossa civilização. Para ele, o importante não é a Igreja em si, mas a humanidade e a Terra e de que maneira a Igreja pode colaborar na sua salvaguarda. 

Qual a sua teologia? A Tradição de Jesus que não é feita de doutrinas, mas de exemplos de amor, de misericórdia, de alegria de sermos filhos e filhas de Deus. É o evangelho vivo que se expressa no encontro com o Cristo simples, pobre e amigo dos pecadores. Estimo que seja o primeiro Papa dos últimos 500 anos que ouviu os reclamos dos reformadores do século XVI. Eles pediam uma reforma na cabeça e nos membros e uma volta à viva vox evangelii, uma volta à viva voz do evangelho. Este que significa o encontro íntimo, confiante e amoroso com o Salvador e Libertador de todos os seres humanos.

 

IHU On-Line - Em que medida a Evangelii Gaudium  propõe uma renovação nos ares da Igreja? Como ela orienta o pontificado de Francisco?

Leonardo Boff - Na Evangelii Gaudium aparece aquilo que praticamente fora esquecido na pregação cristã, especialmente dos Papas que se entendiam antes como mestres e doutores da Fé: o elemento de alegria, presente na própria palavra Evangelho. O anúncio deve produzir leveza de espírito, entusiasmo pela vida e verdadeira alegria espiritual por sermos resgatados por Cristo e feitos filhos e filhas de Deus, não apenas os batizados, mas toda a pessoa que vem e que existe neste mundo. 

O texto ainda critica tão duramente os que se fixam em doutrinas e não revelam em seus gestos e rostos a expansão primaveril do Evangelho. Chama-os de caras de vinagre, gente de Sexta-feira Santa e outras palavras severas que fazem de meu livro Igreja: Carisma e Poder (1984), condenado especialmente pelas críticas feitas aos hábitos rígidos da hierarquia, quase um livro de piedade.

O Papa Francisco trouxe uma verdadeira primavera para a Igreja e lhe devolveu o caráter de lar espiritual que se havia largamente perdido. A instituição eclesiástica parecia antes um pesadelo do que um motivo de alargamento das dimensões do coração e da alma. A Evangelii Gaudium orienta o pontificado para esse conjunto de valores jesuânicos, derivados da prática do Jesus histórico. Valores que, durante o tempo, foram recobertos por títulos de magnificência tão poderosos que devíamos quase fazer um ato de fé de que se tratava verdadeiramente de um homem no meio dos homens.

 

IHU On-Line - A partir dos discursos de Francisco, é possível dizer que ele está propondo reformas? De que ordem são essas reformas? Como aparecem na prática?

Leonardo Boff - A grande reforma é o modo como fala, atua, se movimenta e entra em diálogo com todo mundo. Nele aparece a bondade e a benevolência de nosso Deus. Ele não apenas comparece como um grande líder religioso, mas como um líder político, escutado com respeito. Interfere em função da fome, da paz, das guerras com grande número de vítimas. Conclama os dirigentes dos povos ao diálogo e ao encontro para além das diferenças.

Para mim esta é a grande reforma, pois nos remete ao que fazia Jesus quando esteve entre nós, sempre do lado dos mais fracos, sensível ao sofrimento humano, profético contra aqueles que perderam a capacidade de sentir e de chorar face à miséria humana que eles mesmos produzem. 

Em termos internos, a reforma da Cúria está em curso. Não podemos delinear ainda seus contornos. Mas será uma cúria mais simples, de hábitos severos, diria, até pobres, realmente a serviço das Igrejas locais e ao que afeta à universalidade da Igreja. Tudo indica que irá inserir mulheres no governo, pois elas constituem mais da metade da Igreja Católica. Um ponto me parece relevante: as questões que antes eram interditas de serem discutidas, até sob pena de punições caso fossem abordadas publicamente, como as questões de moral sexual, dos contraceptivos, de matrimônios desfeitos, de divórcios e novas núpcias, da situação dos homoafetivos, agora têm a discussão estimulada pelo Papa Francisco. Quer se certificar do sentimento dos cristãos e não apenas dos bispos e dos padres. 

É difícil prever qual é o resultado desta abertura. Seguramente podemos dizer que a Cúria não será mais como antes. Se orientará pela conversão pastoral com misericórdia e compreensão da situação humana e dos cristãos. Se alguém cair, sempre haverá para ele a chance de se levantar, pois os sacramentos, particularmente a eucaristia, não são feitos para os santos, mas para aqueles que mais energia interior e força precisam.

 

IHU On-Line - Como as discussões das questões ecológicas aparecem na fala do Papa?

Leonardo Boff - Desde cedo o Papa Francisco tem se preocupado com as questões ecológicas. Sem falsa modéstia posso dizer que, através do embaixador argentino no Vaticano, pude fazer chegar ao Papa, a pedido dele, materiais sobre a questão ecológica. Especialmente um documento que ajudei a elaborar para o núcleo teórico de uma nova Organização das Nações Unidas - ONU a ser postulada por mais de 100 países — o documento se intitula “Declaração Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade” — e ainda outros materiais.

Estimo que será um documento profético e de grande apelo aos chefes de Estado e a todos os cidadãos do mundo a preservarem a única casa comum que temos, caso contrário iremos na direção de um abismo. Mas infunde em todos a esperança de que este não será o destino da natureza e da Terra que um dia foram assumidas pelo Verbo que lhes garantirá um destino feliz.

O Papa Francisco tem consciência de que o tempo do relógio corre contra nós. Temos urgência de curar as feridas que infligimos à mãe Terra e de controlar o aquecimento global e mitigar seus efeitos maléficos. Quer suscitar a consciência dos cristãos e de todas as Igrejas para assumirmos a missão de sermos os cuidadores e os guardiães desta herança sagrada que Deus nos confiou. 

 

IHU On-Line - Que diálogo inter-religioso Francisco imprime?

Leonardo Boff - O Papa Francisco está reforçando um caminho que vinha sendo construído por muitos no diálogo entre as Igrejas: o de se reconhecerem mutuamente e juntas se colocarem a serviço da humanidade. Francisco não as nega, como aconteceu anteriormente, o título de Igrejas. Para ele, estas Igrejas são portadoras da herança de Jesus, sem a pretensão de exclusividade por parte de nenhuma delas. 

Com as religiões, fez gestos comovedores e altamente corajosos. Ele, por exemplo, entrou numa mesquita e se voltou à Meca, rezando ao único Deus que vem sob outro nome. Também foi ao muro de orações dos judeus e lá rezou como eles. Assim, Francisco se mostra antes um místico do que um teólogo. Ele sente que Deus é servido e amado de muitas formas e por muitos caminhos e que, juntos, devemos manter a chama sagrada do Divino que arde no coração de cada pessoa e no inteiro universo.

 

IHU On-Line - Qual é a importância da Conferência de Aparecida,  em 2007, da qual Bergoglio foi o relator do documento final? Como o resultado dessa conferência aparece no Papado de Francisco?

Leonardo Boff - O documento de Aparecida é para o Papa Francisco uma espécie de mapa pelo qual orienta sua trajetória. É sabido que foi um dos seus principais elaboradores. Restituiu à reflexão o método do ver, julgar e agir e arrancando sempre das realidades concretas a partir das quais se processa o anúncio alegre da salvação. Francisco, por ocasião de sua entronização ao pontificado, deu às presidentes Dilma Rousseff e Cristina Kirchner o referido documento. Disse a elas que aí estava o principal de sua visão de Igreja e de mundo e como deveria ser entendida sua prática de pontífice.

Efetivamente aparece aí a dimensão pastoral dos fiéis e de todos os bispos e padres. E mais: pede-lhes uma conversão pastoral para que se sintam no meio do povo como quem anda como caminhante, para animar, orientar e não deixar que ninguém fique para trás. No meu entender, em tempos de crise da Igreja e do mundo, Deus se apiedou de todos nós e nos enviou um Francisco de Roma. Ele é mais que um nome. É a expressão de um projeto de Igreja e de mundo que se inscreve no arco dos valores da tradição de Jesus, feita de ternura, de bondade, de compaixão e de amor incondicional. Estes temas aprofundei no livro Francisco de Assis – Francisco de Roma: uma nova primavera na Igreja (Rio de Janeiro: Mar de ideias, 2013). ■

Leia mais...

- Os intelectuais que têm algum sentido ético precisam falar sobre a Terra ameaçada. Entrevista com Leonardo Boff, publicada em Notícias do Dia, de 16-10-2012, no sítio do IHU;

- “Com Francisco, diálogo contínuo embora a distância”. Entrevista com Leonardo Boff, publicada em Notícias do Dia, de 17-09-2013, no sítio do IHU;

- Ser mais com menos: eis o futuro da humanidade. Entrevista com Leonardo Boff, publicada em Notícias do Dia, de 24-06-2009, no sítio do IHU;

- Apoio ao Papa Francisco contra um escritor nostálgico. Artigo de Leonardo Boff, publicado em Notícias do Dia, em 07-01-2015, no sítio do IHU;

- Realmente não existem verdades absolutas. Artigo de Leonardo Boff, publicado em Notícias do Dia, em 28-09-2013, no sítio do IHU;

- Como reproduzimos a cultura do capital. Artigo de Leonardo Boff, publicado em Notícias do Dia, em 20-04-2015, no sítio do IHU.

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