Edição 465 | 18 Mai 2015

A experiência inaciana e o caminho espiritual de Bergoglio

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges e Ricardo Machado

Marcelo Fernandes de Aquino analisa as relações entre os Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola e a postura eclesiástica do Papa Francisco

O caminho espiritual do Papa Francisco é marcado pelo reconhecimento dele próprio de que é um pecador acolhido por Deus, perspectiva que ele estende à Igreja. “Penso que em sua trajetória espiritual ele soube decantar a experiência evangélica de sentir-se pecador de estados psíquicos mais próprios de sentimentos ou complexos de culpabilidade. Esta experiência ele está propondo à Igreja”, analisa Marcelo Fernandes de Aquino, em entrevista por e-mail à IHU On-Line

A origem de tal postura, explica Aquino, está relacionada aos Exercícios Espirituais de Loyola. “Esta experiência é ritmada pelo discernimento — palavra decisiva nos Exercícios Espirituais feitos em chave inaciana — das várias moções que afetam o coração humano. É o ritmo das consolações e das desolações, ou do aumento da fé, da esperança, do amor altruísta, ou do seu contraditório, a desconfiança, a desesperança e o amor autocentrado”, descreve.

Outro momento marcante da formação pessoal, política e religiosa de Bergoglio foi durante a feroz repressão militar na Argentina, momento em que foi, ainda jovem, provincial da Companhia de Jesus. “Pe. Bergoglio não desposou a tese do recurso à luta armada pela guerrilha urbana, por ele discernida como expressão de uma visão reducionista da história argentina. Nesse processo vivido por ele e pelos jesuítas argentinos, o provincial Pe. Bergoglio poderá ter sido autoritário aos olhos de quem aderia à resposta armada à violência da ditadura militar. Mas certamente nunca foi um conservador”, avalia o entrevistado.

Marcelo Fernandes de Aquino é graduado em Filosofia na Pontifícia Faculdade Aloisianum, Itália, e especialização em Filosofia na Hoschschule für Philosophie, em Munique, Alemanha. Graduado e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma. È mestre e doutor em Filosofia pela mesma universidade. Pós-doutor em Filosofia pelo Boston College, Estados Unidos, foi reitor do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte, MG. Atualmente é o reitor da Universidade Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Seria adequado afirmar que o modo de proceder de Jorge Mário Bergoglio como Padre e, depois, como Papa Francisco corresponde à sua experiência espiritual feita na escola dos Exercícios Espirituais segundo Santo Inácio de Loyola ?

Marcelo Fernandes de Aquino - Penso que sim. Papa Francisco é, antes de mais nada, um mestre espiritual que embasa seu sentir mais profundo do mistério de Deus, do mistério do ser humano, do próprio mistério da Igreja, da realidade da natureza, da sociedade, da cultura a partir da meditação e da contemplação do amor de Deus em Jesus de Nazaré. Como mestre espiritual, Papa Francisco se deparou com a Igreja Católica Romana precisando do óleo do perdão de Deus e de muitas pessoas que foram feridas por ministros religiosos iníquos ou por estruturas eclesiásticas que se tornaram distantes do Evangelho de Jesus Cristo, como, por exemplo, a gestão do IOR, o chamado banco do Vaticano. Como mestre espiritual ele mesmo se reconhece pecador, acolhido pelo abraço misericordioso do Crucificado contemplado como amigo. 

Penso que em sua trajetória espiritual ele soube decantar a experiência evangélica de sentir-se pecador de estados psíquicos mais próprios de sentimentos ou complexos de culpabilidade. Esta experiência ele está propondo à Igreja como um longo e, quem sabe, sofrido colóquio em que a Igreja se reaproxima de Jesus como de um amigo misericordioso. Esta experiência é ritmada pelo discernimento — palavra decisiva nos Exercícios Espirituais feitos em chave inaciana — das várias moções que afetam o coração humano. É o ritmo das consolações e das desolações, ou do aumento da fé, da esperança, do amor altruísta, ou do seu contraditório, a desconfiança, a desesperança e o amor autocentrado. Quer me parecer que Papa Francisco está redescobrindo a vitalidade do Evangelho no cotidiano da vida da Igreja mediante uma purificação do afeto que se desgarrou do Evangelho e se tornou mundano. Mas, sobretudo, penso que ele está lendo o coração de uma Igreja que se coloca em estado de eleição. Sua inteligência, sua afetividade, sua liberdade vêm sendo testadas para ver se o testemunho de Jesus ainda ressoa em todos nós. Esta é a raiz da maravilhosa liberdade interior de que Papa Francisco dá provas. Finalmente, ele vem exercendo o ministério da consolação junto aos filhos e filhas da humanidade ferida pela comunicação da alegria e da paz que emanam do encontro com o Senhor ressuscitado. 

 

IHU On-Line - Como Papa Francisco se relaciona, reconhecendo e criticando, com o legado cultural da modernidade pós-renascimental europeia?

Marcelo Fernandes de Aquino - Padre Jorge Bergoglio, antes, durante e, eventualmente, depois do exercício do ministério petrino de Bispo de Roma foi, é e será um discípulo de Jesus de Nazaré crucificado e morto por nós, e ressuscitado por Deus. Os discípulos da fé abraâmica sempre estiveram dentro das fronteiras das várias ilustrações que ciclicamente enunciam uma palavra de interpretação da presença humana no mundo com outros humanos e induzem à práxis da construção da cidade humana. 

Os chamados livros deuterocanônicos do Primeiro Testamento no cânone católico-romano são páginas de finíssima literatura bíblica tocada pela ilustração do helenismo que se difundiu após Alexandre Magno.  Vejam-se os temas ligados aos núcleos semânticos “Sabedoria”, “Logos” e “Espírito”. Os primeiros teólogos cristãos sem dúvida se moviam nos espaços intersticiais em que se encontraram o helenismo e a apocalíptica judaica nas orlas mediterrâneas do império romano, tempo da chamada Antiguidade Tardia. Esse retrospecto é importante porque desenha o dinamismo de crítica ao ideal de captura plena da realidade na malha categorial de um sistema filosófico qualquer por parte da noética de inspiração bíblica. 

Dito de outro modo, mais próximo da espiritualidade jesuíta: Deus semper maior! Agostinho e Tomás de Aquino inauguram, na tradição latina do pensamento teológico cristão, modelos de encontro com Platão,  Aristóteles,  Plotino,  Proclo,  Porfírio,  representantes expressivos do cognitivismo grego clássico e helenista. Ao tentarem absorver a realidade finita ou na ideia ou na forma substancial acabaram prisioneiros de um reducionismo que foi criticado pelos grandes autores cristãos. Papa Francisco é herdeiro desta atitude intelectual de crítica a qualquer forma de reducionismo intelectual.

Formação Intelectual

Ele passou pelo processo da formação intelectual que a Companhia de Jesus propunha aos seus estudantes nas décadas dos anos 1960 e 1970. Ou seja, frequentou autores das humanidades clássicas e contemporâneas (José Hernández , Borges , Guardini,  Hopkins, passou pelo encadeamento sistemático da formação filosófica de matriz neoescolástica vigentes nos escolasticados jesuítas da época, frequentou autores da Nouvelle Théologie (de Lubac  e também Congar ). Seu percurso formativo na Companhia de Jesus o inseriu entre os que, mesmo dialogando com autores da modernidade renascimental e mesmo pós-cristã, criticam o reducionismo intelectual que se desenhou a partir da Metafísica cartesiana da subjetividade. Ou seja, a partir da desconstrução moderna da ideia de Deus pela posição autorreferencial assumida pelo eu. Sem ter sido um frequentador assíduo das obras de Kant,  Hegel,  Marx,  Nietzsche,  tomou distância do reducionismo latente ou explícito nesses autores. Seu “Mestre da Suspeita” foi sem dúvida Inácio de Loyola e sua escola de Exercícios Espirituais. Seu mestre na prática do discernimento espiritual, penso ter sido Padre Fiorito, jesuíta argentino que lhe transmitiu a afeição por Pedro Fabro,  o afável companheiro de Inácio de Loyola na nascente Companhia de Jesus. O mestre espiritual Padre Bergoglio tornou-se progressivamente um “Mestre da Suspeita” na perspectiva da mística inaciana.

 

IHU On-Line - Quais são as consequências desse itinerário intelectual e espiritual?

Marcelo Fernandes de Aquino - Penso que a grande consequência se expressa na ação de Pe. Bergoglio e agora na ação de Papa Francisco. Lembro que Inácio de Loyola legou à Companhia de Jesus o itinerário de uma experiência mística de Deus que se resume em “procurar e encontrar Deus em todas as coisas, e todas as coisas em Deus”. Nadal outro grande dentre os primeiros jesuítas, cunhou a expressão “contemplativo na ação” para significar o perfil de um jesuíta. Perfil de um homem de ação. Papa Francisco não é um teórico. Não passou pela formação doutoral de um intelectual jesuíta. A ação que emana do homem Jorge Bergoglio, o Papa Francisco da Igreja Católica Romana, se arraiga em sua experiência mística de um Deus semper maior que deixa suas pegadas no coração dos homens e mulheres que o procuram. Resgatando a expressão “o divino impaciente”, já aplicada a Francisco Xavier,  penso que Papa Francisco é outro divino impaciente. Sua ação é sustentada por um processo de discernimento às vezes complexo, nem sempre compreensível imediatamente. Cabe perguntar-se: uma certa impaciência voluntariosa do homem Jorge Mário Bergoglio, que não age por impulsos, traria algum tipo de risco em seu processo de eleição agindo já como Bispo de Roma e Papa Francisco? E aqui se toca o tema das tensões que caracterizaram seu tempo de Superior Provincial dos jesuítas argentinos.

 

IHU On-Line - Em que medida o modelo decisório de Francisco se inspira no modo de proceder da Companhia de Jesus?

Marcelo Fernandes de Aquino - O modelo decisório da Companhia de Jesus passou por um tempo de volta às fontes durante o governo do Pe. Pedro Arrupe,  Superior Geral da Companhia de Jesus de 1965 a 1983, sendo que de 1981 a 1983 ele esteve impossibilitado de exercer plenamente sua autoridade. Ou melhor, exerceu sua autoridade pelo testemunho de sua obediência no contexto do seu sofrimento espiritual e físico. No tempo de seu governo geral, Pe. Arrupe liderou o processo de renovação conciliar da Companhia de Jesus. Liderou a implementação da formulação renovada da sua Missão como “serviço da fé e promoção da justiça” no contexto de forte tensionamento interno da Ordem. Implementou o resgate da tradição do discernimento espiritual caído em certo esquecimento. Implementou a reorganização das casas dos jesuítas que passaram a se compreender e a se denominar como comunidades. As grandes obras apostólicas passaram por processo de avaliação estratégica. 

Todo esse conjunto de vivências reverberavam nos indivíduos jesuítas e suas comunidades e províncias. Como se sabe, a obediência é a pedra angular do corpo apostólico da Companhia de Jesus. Ela tensiona o encontro das liberdades em processo de encontrar a vontade de Deus. Não é um processo fácil, nem sempre dá certo, mas nos momentos maiores e mais sofridos vividos pelos jesuítas vem dando certo. Tudo leva crer que a impaciência do jovem Superior Provincial Pe. Bergoglio foi um complicador no quadro de dilaceração institucional vivido na Argentina dos anos sessenta, setenta e oitenta. Durante os anos de feroz repressão de qualquer forma de oposição por parte do regime militar argentino, Pe. Bergoglio não desposou a tese do recurso à luta armada pela guerrilha urbana, por ele discernida como expressão de uma visão reducionista da história argentina. Nesse processo vivido por ele e pelos jesuítas argentinos, o provincial Pe. Bergoglio poderá ter sido autoritário aos olhos de quem aderia à resposta armada à violência da ditadura militar. Mas certamente nunca foi um conservador. Nem entregou nenhum de seus coirmãos jesuítas, nem qualquer outra pessoa, ao aparato repressor argentino. Antes, hoje as evidências apontam para sua ação silenciosa de resgate de muitos das malhas da tortura.

 

IHU On-Line - Poderia explicitar melhor sua afirmação?

Marcelo Fernandes de Aquino - Reconheço que me movo com dificuldade neste terreno, cuja topografia espiritual e cultural não conheço em toda sua profundidade, e no qual desponta a figura emblemática de Perón.  Hoje pode se dizer com mais serenidade que Perón desencadeou o primeiro processo histórico de formação de uma consciência de classe pela população pobre, pelos descamisados argentinos, mantidos apartados do bem-estar de uma economia que era das mais pujantes nos inícios do século XX. 

O jovem Jorge Bergoglio certamente se alimentou culturalmente deste processo de conscientização de classe vivido pelo povo mantido nas periferias do bem-estar de uma burguesia mais voltada para a Europa. Povo, pobres, periferia, piedade popular são categorias que emergem dos encontros existenciais do Pe. Bergoglio desde sua juventude. Povoarão a Teologia da Libertação em seu viés argentino, mais distante da Analítica Crítica da economia capitalista feita por Marx e posteriores seguidores. O viés mais cultural-popular proposto por Pe. Bergoglio cheirava mais, por assim dizer, o barro e a lama das favelas portenhas que o perfume da razão ilustrada dos centros e salões de discussão da classe média argentina. Hoje alguns tendem a analisar o embate entre a direita argentina via forças armadas e segmentos empresariais, por um lado, e guerrilha urbana, por outro lado, como uma verdadeira guerra civil da classe média argentina. Quer me parecer que entre a lama e a pobreza que ele via nas periferias e uma razão instrumental desarraigada da nutrição do afeto, Pe. Bergoglio provavelmente terá optado entre as duas primeiras. 

Em todo caso, lembro que se é verdadeira esta leitura, como Provincial jesuíta Pe. Bergoglio organizou um verdadeiro corredor ou rota de fuga para inúmeras pessoas ameaçadas de tortura e de morte pela repressão militar. Hoje é bem mais seguro fazer este tipo de análise. A grande maioria das pessoas envolvidas no drama histórico da Argentina dos anos sessenta, setenta, oitenta eram pessoas honradas — excetuando os torturadores e assassinos —, que queriam o bem e o progresso de seu país.

 

IHU On-Line - A partir de suas afirmações, como entender melhor as linhas programáticas do pontificado de Papa Francisco?

Marcelo Fernandes de Aquino - Para ele trata-se de voltar ao Evangelho de Jesus o Cristo da fé da Igreja. Quer me parecer que a abóboda da Teologia bergogliana, por assim dizer, seu princípio superior e inspirador é o princípio Misericórdia, que inclusive aparece em seu brasão pontifício. Há sinais de sua proximidade ao legado espiritual de Papa Paulo VI.  Este grande e humilde artesão da implementação das linhas programáticas do Vaticano II. 

Destaco brevemente alguns encaminhamentos: 1) reconhecimento da frequente omissão da hierarquia eclesiástica frente à chaga da pedofilia, responsabilização criminal dos padres pedófilos e responsabilização canônica de bispos que acobertaram estes abusos; 2) distensionamento e atitude evangélica para com a Associação de religiosas norte-americanas postas sob injustas acusações por segmentos adversos a elas nos Estados Unidos e Roma; 3) saneamento das zonas cinzentas do IOR, o Banco do Vaticano, e construção de políticas de controle antimáfia na gestão do mesmo; 4) progressiva reconfiguração teológica do múnus petrino do Bispo de Roma, vivido menos no espírito de um “Soberano Pontífice”, chefe de uma monarquia absolutista, e mais no espírito de uma ainda incipiente e não totalmente articulada estrutura sinodal da Igreja; 5) serena e misericordiosa atenção às novas configurações individuais e familiares hoje amparadas por legislação civil respeitosa de conflitantes diferenças a modelos culturais do existir pessoal e familiar.

Concluo, lembrando que a recepção de um Concílio Ecumênico se distende num arco de tempo muito longo. Papa Francisco está retomando um dos fios importantes da meada que tece a comunhão eclesial, e que tinha ficado abandonado nestas últimas décadas. A beatificação de D. Oscar Romero já é um bom sinal desta retomada. ■

Leia mais...

- Será a humanidade absorvida pelo mundo dos objetos, hoje virtuais? Uma pergunta que não cala. Entrevista com Marcelo Fernandes de Aquino, publicada na IHU On-Line 374, de 26-09-2011;

- A pós-metafísica e a narrativa de Deus. Entrevista com Marcelo Fernandes de Aquino, publicada na IHU On-Line 308, de 14-09-2009;

- Liberdade, necessitarismo e ética em Hegel. Entrevista com Marcelo Fernandes de Aquino, publicada na IHU On-Line 217, de 30-04-2007;

- A religião como fato cultural passa a ser apenas objeto da filosofia. Entrevista com Marcelo Fernandes de Aquino, publicada na IHU On-Line 245, de 26-11-2007;

- Os arranjos colaborativos e complementares de ensino, pesquisa e extensão na educação superior brasileira e sua contribuição para um projeto de sociedade sustentável no Brasil. Cadernos IHU ideias - 187ª edição.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição