Edição 465 | 18 Mai 2015

O Papa peronista, jesuíta e reformador

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João Vitor Santos e Patricia Fachin | Tradução: Gabriel Ferreira

Austen Ivereigh mergulhou na vida de Bergoglio e o considera um “reformador”. O substrato para essa reforma está nas formas peronista e jesuíta do Papa

Se fosse preciso definir o Papa Francisco em apenas três palavras, certamente o jornalista inglês Austen Ivereigh usaria: peronista, jesuíta e reformador. Para ele, a combinação da definição dessas três palavras constituem as características de Bergoglio. Como argentino, conheceu de perto o peronismo  e passou a ser influenciado por essa forma de relação com o povo. “Mas isso não fez dele um pró-peronista acrítico: foi crítico feroz tanto de Menem,  como de Kirchner.  Via o movimento peronista como a expressão legítima dos valores dos argentinos comuns”, explica, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Da formação jesuíta, Francisco traz a inquietação na busca por uma Igreja evangelizadora. “Como Santo Inácio, Francisco está buscando restaurar na Igreja a orientação missionária e voltada para fora, que é típica dos jesuítas”, destaca. É por essa linha que Ivereigh desenrola a ideia de reforma do Papa. No entanto, o jornalista inglês ainda vai além. Para ele, Francisco merece o título de “reformador” não só pelo que propõe no Papado, mas pela história de mudanças que fez. “Eu o chamo de ‘grande reformador’ porque ele tem se mostrado resoluto em seu objetivo de convocar a Igreja para voltar à sua missão essencial. Isso faz dele um reformador na tradição das reformas católicas ao longo dos séculos”, explica.

Austen Ivereigh é jornalista e vive em Londres. Foi editor da revista britânica The Tablet e diretor de Assuntos Públicos do ex-arcebispo de Westminster, o cardeal Cormac Murphy-O'Connor. Fundador e coordenador do Catholic Voices, que capacita as pessoas a colocar o caso da Igreja Católica nos meios de comunicação, ainda contribui para revistas e jornais. 

Ele é doutor em Filosofia pela Universidade de Oxford com a tese intitulada 1993 “Catholicism and Politics in Argentina: an Interpretation, with Special Reference to the Period 1930-1960”, publicada no livro Catholicism and Politics in Argentina, 1810-1960 (New York: St Martin's Press; Basingstoke: Macmillan in association with St Antony's College, Oxford, 1995). Ele também é editor do livro The Politics of Religion in an Age of Revival: Studies in Nineteenth-Century Europe and Latin America (London: Institute of Latin American Studies, 2000). 

Estudioso da Igreja latino-americana, produziu uma pesquisa para analisar o fenômeno que é Francisco.  O trabalho culminou no livro The Great Reformer: Francis and the Making of a Radical Pope [O Grande Reformador. Francisco e a construção de um Papa radical, em tradução livre] (Henry Holt; 1st edition, 2014). 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como religioso, Bergoglio esteve sempre dedicado a reformar, fazer mudanças? Como essa postura reformadora apareceu enquanto foi arcebispo de Buenos Aires e provincial dos jesuítas na Argentina?

Austen Ivereigh - Quando eu comecei a ler seus muitos artigos, escritos ao longo de 20 anos como jesuíta, nas décadas de 1970 e 1980, eu fiquei surpreso pela clareza que ele possuía, desde o começo, sobre sua missão como um reformador. As pessoas que o conheciam já naquela época ficavam espantadas com a clareza de sua visão, mesmo estando na casa dos 30 anos, quando ele se tornou provincial. Ele tinha dois objetivos principais para a reforma dos jesuítas, a qual ele continuou como Arcebispo: ordenar as atividades de acordo com uma finalidade missionária, focada nas necessidades pastorais e materiais das pessoas comuns, e combater a “mundanidade espiritual”.

A expressão “mundanidade espiritual” ele tomou do teólogo Henri de Lubac.  Ela significa a tentativa de interpretar o Evangelho do ponto de vista de uma ideologia, ou de um interesse mundano. Ou, ainda, utilizar o Evangelho a serviço de quaisquer outros objetivos que não seja o Cristo e Sua missão. Missão essa que é fazer o amor curativo de Deus pela humanidade ser conhecido. Eu o chamo de “grande reformador” porque ele tem se mostrado resoluto em seu objetivo de convocar a Igreja para voltar à sua missão essencial. Isso faz dele um reformador na tradição das reformas católicas ao longo dos séculos, tipificada por sua própria estrela-guia, São Francisco de Assis. 

 

IHU On-Line - Por que você afirma que é impossível entender Bergoglio sem entender a história da Argentina? Como a história argentina influenciou a teologia desenvolvida por Bergoglio?

Austen Ivereigh – Francisco é profundamente argentino em muitos aspectos e seu pensamento e sua teologia são muito influenciados pela tradição católica nacionalista daquele país, a qual teve sua expressão política no Peronismo. No meu livro, mostro como ele esteve próximo de um grande número de pensadores na Argentina, Chile e Uruguai, os quais tiveram uma interpretação nacionalista da Teologia da Libertação,  conhecida como a Teologia do Povo. Sendo bastante simplista, é um ramo da Teologia da Libertação que rejeita as interpretações marxistas e de esquerda — isto é, pós-iluministas — da sociedade e da história ao invés de valorizar o conceito de povo como um conceito cultural.

Isso levou a uma importante diferença: os teólogos del Pueblo valorizavam fortemente as devoções populares e a religiosidade das pessoas comuns, enquanto os teólogos mais “científicos” tendiam a olhá-las como pré-modernas. Bergoglio foi sempre duro para que seus jesuítas, e posteriormente seus padres, estivessem presentes com o povo nos santuários e nas peregrinações. 

 

IHU On-Line - Após ter sido eleito Papa, que relação se pode fazer desse espírito reformador de Francisco com as obras de Inácio de Loyola ? Quais as influências que os escritos do criador da Companhia de Jesus deram para sua formação?

Austen Ivereigh – Francisco é profunda e inteiramente jesuíta de toda uma série de modos, mas, acima de tudo, em sua visão de reforma. Sob vários aspectos, a renovação que Bergoglio procurou implementar dentro da Província jesuíta argentina estava baseada na Companhia de Jesus  primitiva. Como Santo Inácio, Francisco está buscando restaurar na Igreja a orientação missionária e voltada para fora, que é típica dos jesuítas.

Um modo de ver a reforma de Francisco é como uma restauração da ordem da Primeira e da Segunda Semana dos Exercícios Espirituais.  Na Primeira, do retiro de quatro semanas de Santo Inácio, as pessoas simultaneamente se reconhecem a si mesmas como pecadoras e, ao mesmo tempo, como pessoas amadas e perdoadas incondicionalmente por Deus. Essa experiência abre então suas mentes e corações para, na Segunda Semana, seguir a Cristo na Igreja.

Francisco acredita que a Igreja tem de oferecer a experiência da Primeira Semana a fim de trazer as pessoas à Segunda. É, acima de tudo, uma experiência de Deus que converte, mais do que de argumentos intelectuais ou doutrinários.

 

IHU On-Line - Qual foi o contexto social, político e teológico que faz surgir Bergoglio na Argentina? O que o Peronismo tem a ver com Bergoglio?

Austen Ivereigh – Bergoglio era um adolescente durante os dois primeiros períodos de Perón no poder (1946-1955) e, embora àquela época ele obviamente não fosse um peronista — ele estava envolvido na Ação Católica,  que estava na linha de frente do conflito Igreja-Estado nos anos finais —, ele sempre respeitou profundamente os valores que Perón procurava canalizar e articular.

Bergoglio era próximo dos oficiais do Exército que tomaram parte do breve terceiro período de governo de Perón antes de sua morte em 1974, e foi o capelão de um movimento peronista de base, o Guardia de Hierro. Quando Perón morreu, Bergoglio o descreveu como “ungido pelo povo” — ungido por el Pueblo —, no qual ele acreditava. Mas isso não fez dele um pró-peronista acrítico: ele foi um crítico feroz tanto de Menem, nos anos 1990, e de Kirchner, nos anos 2000. Contudo, ele via o movimento peronista como a expressão legítima dos valores dos argentinos comuns.

 

IHU On-Line - Como foi o processo que fez com que os jesuítas levassem Bergoglio ao ostracismo? O que estava por trás?

Austen Ivereigh – Bergoglio era um provincial de muito sucesso que encheu a Companhia de Jesus argentina de muitas vocações no final da década de 1970 e na de 1980. Ele tinha uma presença dominante e cativante que tornou-se um problema, tanto para os jesuítas mais velhos na Argentina e em Roma. Discordavam da direção que ele estava tomando. É uma história dramática e complexa, e eu a conto em detalhes em The Great Reformer pela primeira vez.

 

IHU On-Line - Como se dá a volta de Bergoglio como arcebispo de Buenos Aires? 

Austen Ivereigh – Ele tornou-se Bispo auxiliar em Buenos Aires pelas mãos do novo Arcebispo, Cardeal Antonio Quarracino,  de quem ele era próximo e que admirava profundamente Bergoglio.

 

IHU On-Line - Que tipo de tensionamentos a figura de Bergoglio, um Papa latino-americano, traz à centralidade europeia da Igreja?

Austen Ivereigh – Francisco representa, de muitas maneiras, uma mudança profunda na Igreja universal, na qual a América Latina — sobretudo enquanto articulada no grande encontro dos bispos do continente em Aparecida,  em 2007 — é agora a fonte para toda a Igreja. A mudança de uma para outra é um dos grandes dramas narrados em The Great Reformer.

 

IHU On-Line - Como Francisco agencia questões como diálogo inter-religioso, educação, política e a própria reforma da Cúria através do seu discurso sobre os pobres?

Austen Ivereigh – Para Francisco, reforma significa abrir o centro para a periferia. Significa incluir sempre a voz dos pobres e manter a Igreja concentrada nas necessidades concretas do povo. Ele é um mestre em construir relações.

 

IHU On-Line - O que significa “lo concreto católico” e como isso se manifesta no pontificado? 

Austen Ivereigh - Significa rejeitar ideologias e abstrações e permanecer sempre enraizado na realidade, sobretudo as necessidades pastorais concretas do povo.

 

IHU On-Line - O que significa a dessacralização da figura do Papa? Como esse processo de dessacralização se manifesta no pontificado de Francisco e contribui para sua teologia e para a Igreja?

Austen Ivereigh – Francisco está empreendendo uma “revolução da normalidade”. É crucial que o Evangelho seja apresentado sem adições e que o Papa seja uma pessoa “normal”.

 

IHU On-Line - O senhor afirma que a grande reforma de Francisco “é uma mudança de cultura dentro da Igreja”. Quais são as evidências dessa reforma e como ela está acontecendo na prática? 

Austen Ivereigh – O quanto a Igreja está disposta a incorporar, em sua cultura e em suas estruturas, a reforma à qual Francisco está convocando os católicos, ainda é uma questão em aberto.

 

IHU On-Line - Há oposição a essa postura reformista? Como ela se manifesta? Quais são as razões dessa oposição?

Austen Ivereigh – Francisco está indo além dos limites da Igreja, e isso deixa algumas pessoas nervosas.■

 

Leia mais...

- Livro explora origens argentinas do Papa Francisco. Resenha do livro The Great Reformer: Francis and the Making of a Radical Pope, feita por Arthur Liebscher e reproduzida em Notícias do Dia, do sítio do IHU, em 16-01-2015;

- Francisco, O Grande Reformador. Biografia do Papa escrito por Austen Ivereigh. Artigo de John Cavadini, publicado nas Notícias do Dia, em 12-02-2015, no sítio do IHU;

- A América Latina surge como a nova “Igreja fonte” com o Papa Francisco. Artigo de Austen Ivereigh, publicado nas Notícias do Dia, em 16-03-2015, no sítio do IHU.

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