Edição 464 | 27 Abril 2015

O trabalho que estrutura o capital desestrutura a sociedade

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Ricardo Machado

Ricardo Antunes examina a atual morfologia do trabalho e a possibilidade de um regime contratual análogo à escravidão com o PL 4330

“O PL 4330 é o mais virulento e forte ataque do empresariado aos direitos do trabalho obtidos ao longo de um século e meio de lutas.” Assim, de forma contundente, começa a entrevista com o professor e pesquisador Ricardo Antunes, que conversou com a IHU On-Line por telefone. “O PL 4330 é a terceirização global do trabalho. Então quando os defensores dizem que a lei da tercerização vai garantir o trabalho é, naturalmente, um discurso falacioso e falso. Esse projeto nasceu para reduzir salários, reduzir direitos, aumentar a rotatividade, demitir mais facilmente a classe trabalhadora. Estes são os fundamentos”, critica. 

Na opinião do pesquisador, o discurso de que a terceirização poderia trazer maior especialização às empresas é pura ideologia e, ao contrário, fragiliza os trabalhadores. “Um exemplo de nossos dias é a crise da Petrobras, cuja corrupção não foi criada pelos trabalhadores, mas deriva de uma simbiose nefasta entre o grande empresariado e alguns setores da alta burocracia estatal que aceitaram ser corrompidos”, pontua. Ricardo Antunes argumenta que há uma movimentação no Congresso que se aproveita da crise política atual para projetos que atendam o capital contra o trabalho. “A Câmara foi fechada para os representantes dos trabalhadores (que foram reprimidos) e aberta para os representantes do patronato (que foram bajulados); é um desequilíbrio evidente, não houve sequer um equilíbrio formal”, sustenta.

Ao fazer tal análise, no entanto, o pesquisador reitera que todo este processo é resultado de uma certa negligência dos governos Lula e Dilma. “O PT foi, desde o início, um governo — este foi o traço característico do PT e de Lula no governo — da conciliação nacional”, complementa. Ao pensar no futuro, Antunes propõe que o “projeto político terá que ter uma face indígena (...) no trabalho comunal e comunitário indígena, da preservação da água, da natureza, dos bens, da fauna, da flora”, destaca. Por fim, aponta: “O trabalho que estrutura o capital desestrutura a humanidade”.

Ricardo Antunes possui mestrado e doutorado em Ciências Sociais, respectivamente, pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e pela Universidade de São Paulo - USP. Realizou pós-doutorado na University of Sussex, no Reino Unido, e obteve o título de Livre Docência pela Unicamp, onde atualmente é professor titular de Sociologia. É organizador de Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil (São Paulo: Boitempo Editorial, 2006), de Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil Vol. II (São Paulo: Boitempo Editorial, 2013) e está lançando o livro Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil Vol. III. É autor, entre outras obras, de O continente do labor (São Paulo: Boitempo Editorial, 2011), Adeus ao trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho (São Paulo: Cortez, 2010) e Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho (São Paulo: Boitempo Editorial, 1999) — a última, publicada também nos Estados Unidos, Inglaterra/Holanda, Itália, Argentina, Venezuela, Colômbia, Portugal e Índia.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - O que a aprovação do PL 4330 significa para o mundo do trabalho no Brasil?

Ricardo Antunes – O PL 4330 é o mais virulento e forte ataque do empresariado aos direitos do trabalho obtidos ao longo de um século e meio de lutas, desde meados do século XIX, quando a classe trabalhadora brasileira — assalariada e urbana, ainda incipiente — fez suas primeiras greves tentando obter direitos que diziam respeito à regulação do trabalho. A primeira greve que se tem notícia, de 1858 (tento lembrar aqui de memória), já era uma luta pelo direito ao trabalho regulamentado que passou a ser uma pauta imperiosa da luta trabalhadora.

Consolidação das Leis do Trabalho

Quando nós tivemos a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT,  normalmente citada pela história oficial como uma outorga do governo varguista, condensaram-se lutas importantes do operariado brasileiro desde os primeiros anos do século XX. A greve geral de 1917 é um momento singular destas lutas. Eu pude estudar os anos 1930 a 1935, analisando todas as principais greves que ocorreram e foram noticiadas pela imprensa à época. Estas greves reivindicavam melhores salários, descanso semanal, salário mínimo, salários iguais para homens e mulheres, lutas que após quase uma década e meia — o Vargas  começa seus decretos em 1931 —, ou seja, somente em 1943, resultaram em todas as leis promulgadas nos primeiros 12 anos de governo varguista, consolidadas na CLT.

A CLT tem um caráter bifronte. No seu lado claramente positivo, que diz respeito à regulação do trabalho, ela tem uma contribuição decisiva, pois foi uma resposta às reivindicações presentes nas greves da época: tratar de modo equânime o conjunto da ação social protetora do trabalho de modo que haja, ao menos, um patamar mínimo de direitos obtidos. Mas é bom lembrar que a CLT excluía os trabalhadores do campo, o que era um compromisso de Vargas com o setor de onde ele era originário, mas os trabalhadores urbanos passaram a ter direitos. A CLT se transformou naquilo que venho chamando a atenção há algum tempo: em uma verdadeira “constituição do trabalho no Brasil”. Os trabalhadores veem na CLT o próprio código protetor dos direitos do trabalho.

No capítulo sindical, entretanto, a CLT foi claramente coibidora e restritiva, ao instaurar o sindicalismo de estado no Brasil, com forte ingerência estatal.

Terceirização Global

O aspecto mais nefasto e mais perverso do PL 4330 é que ele claramente acaba com os direitos do trabalho na medida em que, no seu Artigo 4º, permite “o desenvolvimento de atividades-fins, inerentes ou acessórias às atividades econômicas da empresa”. O PL 4330 é a terceirização global do trabalho. Então, quando os defensores dizem que a lei da terceirização vai garantir o trabalho é, naturalmente, um discurso falacioso e falso. Esse projeto nasceu para reduzir salários, reduzir direitos, aumentar a rotatividade, demitir a classe trabalhadora. Estes são os seus verdadeiros e nefastos fundamentos. Essa coisa de que as empresas se especializam é, em grande medida, ideologia pura. Se a terceirização realmente qualificasse a força de trabalho, o que explicaria o fato de que os acidentes de trabalho ocorrem com mais intensidade nas atividades terceirizadas?

O primeiro ponto é que a aprovação deste projeto significará o seguinte: rumo à terceirização global. Segundo ponto, rasga-se a CLT como código do trabalho no Brasil. Terceiro ponto, guardadas as diferenças do tempo histórico, este projeto de lei equivale a uma regressão à escravidão do trabalho no Brasil, a uma espécie de escravidão moderna típica de nosso tempo, onde a burla de nossos direitos, a depressão salarial, a diminuição de tudo o que foi conquistado, o aumento do trabalho e, até mesmo, a diminuição ou não representação sindical passam a ser impostos. Quando se diz que os sindicatos vão representar os trabalhadores terceirizados de determinada empresa é evidente que isto é falacioso, porque o que leva à corrosão do salário do trabalhador terceirizado é, além dos itens que eu já lembrei, a rotatividade nos postos de trabalho e sua instabilidade, que dificulta enormemente sua organização em sindicatos. O trabalhador não sabe quanto tempo ficará em uma empresa, não sabe quanto tempo a empresa durará, não sabe quanto tempo o contrato com a contratante vai perdurar. Há muita instabilidade. E quem ganha é sempre o capital.

Corrupção e terceirização

Um exemplo de nossos dias é a crise da Petrobras, cuja corrupção não foi criada pelos trabalhadores, mas deriva de uma simbiose nefasta entre o grande empresariado e alguns setores da alta burocracia estatal que aceitaram ser corrompidos. Ou seja, os trabalhadores estão fora disso, porém o resultado é a demissão em torno de 200 mil trabalhadores e trabalhadoras terceirizados, que estavam em empresas terceirizadas que prestavam contratos para trabalhar nos canteiros das obras da Petrobras. Isso ocorre porque não há a vigência do regime da CLT, o que significa dizer que existem alguns constrangimentos do empregador para demitir trabalhadores, como garantias, pagar direitos, justificar as demissões. O terceirizado, mesmo que a legislação diga que vai contemplar isso, na prática ela não vai fazer. Vai burlar como vem burlando há décadas. 

Constituição silenciada

A Constituição diz que o salário mínimo deveria garantir a dignidade do trabalhador e da trabalhadora, com alimentação, educação, vestimenta, lazer, mas alguém imagina que com o salário mínimo de hoje (menos de R$ 800) seja possível ter uma sobrevivência que garanta a manutenção de uma vida digna? Por certo, não. Se a Constituição é burlada diuturnamente, o que não dizer deste projeto que estamos em via de ver consubstanciado contra a classe trabalhadora. 

 

IHU On-Line - Que modelo de trabalho emerge deste cenário?

Ricardo Antunes – O modelo é o da lei da selva do mercado. Há 12 milhões de terceirizados, que vivem hoje em uma situação em que frequentemente não conhecemos os nomes destes trabalhadores nas empresas, principalmente porque os terceirizados estão na base — trabalhadores da limpeza, trabalhadores nos hotéis, os trabalhadores que fazem comidas nos restaurantes. O modelo que se quer implementar é o da “escravidão moderna”, abarcando a população economicamente ativa do Brasil, que tem hoje em torno de 100 milhões de trabalhadores aptos e em disponibilidade para o trabalho, dos quais uns 40 milhões já poderiam ser convertidos em novos terceirizados, em novos escravos modernos.

 

IHU On-Line – Qual o contexto político e social que faz emergir uma legislação trabalhista tão retrógrada?

Ricardo Antunes – Um contexto, primeiro, de crise profunda do governo Dilma. Uma candidatura que foi eleita em uma disputa difícil, dizendo que não faria ajustes fiscais nem implementaria as medidas defendidas por Aécio Neves ou Marina Silva (se lembrarmos também dos debates do primeiro turno). Ela disse que nem que a “vaca tossisse” mexeria nos direitos dos trabalhadores, e sua primeira medida foi o ajuste fiscal, que afetou o seguro desemprego, o abono salarial. Não houve nenhuma medida, por exemplo, da taxação das fortunas, de tributação mais dura e efetiva aos bancos. Estas medidas sintetizadas no plano Dilma-Levy, em seu nefasto ajuste fiscal, trouxeram um novo desgaste ao governo, adicionado ao desgaste anterior, causado pela corrupção na Petrobras. 

A somatória dos dois, um retroalimentando o outro, e considerando, inclusive, a prisão do secretário de finanças do Partido dos Trabalhadores, o que adiciona mais combustível à questão da corrupção, leva a um terceiro ponto sensível: o governo Dilma foi eleito com base no mesmo pacto de aliança, no mínimo esdrúxula, capaz de colocar deus e o diabo na mesma mesa em que o PMDB tem o papel de dar o respaldo majoritário para consolidar uma maioria parlamentar, sob condução de um governo ultramoderado do PT e dos seus aliados. Esse pacto foi feito desde o governo Lula e vale também para o governo Dilma e ele está corroído pela base, hoje, com a rebelião do PMDB. 

Esse quadro de crise profunda que mencionei se acentua pela crise mundial, ampliada pela diminuição significativa do preço das commodities, sendo que o modelo de expansão do mercado interno, que deu pulsão e força ao governo Lula, também se exauriu, porque os assalariados se endividaram. Por conta de todos estes elementos aqui tão somente indicados, este modelo do PT ruiu, faliu completamente. Neste momento, o PMDB, percebendo um relativo vazio de poder coroado pelos equívocos do núcleo político de condução do governo Dilma — e olha que com um núcleo político desses quase não é preciso ter inimigo externo — fez com o que o Parlamento brasileiro (Câmara e Senado) transformasse a Presidente, que de condutora se tornou uma dependente do Parlamento.  

Isso se deflagrou a partir de dois momentos: primeiro, a tentativa do PT de ter candidatura própria contra a candidatura à presidência da Câmara de Eduardo Cunha; segundo, quando a Operação Lava Jato indicava entre potenciais partícipes do esquema da Lava Jato os nomes de Renan Calheiros,  presidente do Senado, e de Eduardo Cunha,  presidente da Câmara. Essas foram as duas gotas que fizeram o copo transbordar. O PMDB de certo modo rompeu, de fato, o seu pacto com o governo, com a Dilma, e começou a tomar aquelas medidas que deixavam o governo Dilma com uma saia justa enorme. Foi corroída em poucos dias sua base parlamentar e não parece que será fácil recompô-la. As dificuldades para a aprovação do ajuste fiscal, a brutal redução da maioridade penal e agora a aprovação do PL 4330 são provas de até onde o Parlamento brasileiro — instituição a mais odiada hoje pela população — é capaz de chegar. 

Desfaçatez

É nesta contextualidade que agora temos esta medida nefasta, a qual o empresariado brasileiro mostra toda a sua desfaçatez de classe, com grande apoio midiático, grandes canais de televisão que praticam a terceirização global dando completa conivência. É estarrecedor que os debates na televisão só tenham um lado, o que argumenta ser favorável à terceirização, feito por “sociólogos das organizações” que ganham polpudos sobressalários das empresas para as quais prestam consultorias. 

Tudo isto leva o empresariado com a volúpia de quem percebe o momento de instigar o “golpe parlamentar” novamente. Um breve parêntese: o Congresso também dá “golpes” dentro da formalidade institucional (quando João Goulart,  na crise de 1964, foi aconselhado para sair do Palácio do Planalto em Brasília, pois corria o risco até de ser preso pelos militares golpistas, e optou por vir ao Rio Grande do Sul, onde teria algum respaldo, o Congresso brasileiro decretou a vacância do cargo — o que foi uma mentira, porque o Goulart não havia abandonado o cargo da presidência).

Então, voltando ao argumento anterior, há a possibilidade de novo “golpe”, agora contra a totalidade da classe trabalhadora. Tanto que a primeira aprovação, duas semanas atrás, do projeto nefasto do senhor Mabel, foi obtido a ferro, na marra, como se diz no linguajar popular. E agora está sendo rediscutido, inclusive, por quem o apoiou. Esse é um projeto que precisa ser lido com cuidado e debatido, é inaceitável que ele seja votado de um dia para o outro sem discussão. A Câmara foi, como pudemos ver pelas televisões, fechada para os representantes dos trabalhadores e aberta para os representantes do patronato. Trata-se de um desequilíbrio evidente, não houve sequer um equilíbrio formal. Nós estamos na era do desequilíbrio, com as forças do capital impondo “goela abaixo” e tendo a Câmara como um gendarme dos seus interesses. 

Crise social e política

Esta crise social e política, sobre a qual apresentei muitas dimensões, é o que levou a este verdadeiro “golpe parlamentar”, ainda que ele não seja ilegal. Golpe no sentido que expliquei anteriormente, uma situação de crise política que cria uma maioria que permite “dar o bote”. Um golpe legitimado juridicamente; não houve nenhuma ruptura da legalidade na Câmara, mas houve o impedimento de um debate público em uma questão tão vital como esta. É importante repetir: o Parlamento brasileiro, hoje, é a instituição mais odiada pela população, tem um nível de reprovação estrondoso.

 

IHU On-Line - Nos governos Lula e Dilma a terceirização saltou de 4 milhões para 12,7 milhões de trabalhadores. Apesar da bancada do PT ter votado contra o PL 4330, o que isso significa? Que contradições ficam evidentes?

Ricardo Antunes – Ficam evidentes muitas contradições, vou tentar tratar de algumas das mais importantes. Primeiro, é evidente que o PT, em nenhum momento, desde que tomou posse em 2003, até agora, abril de 2015, tomou medidas que permitissem caracterizá-lo como um governo de esquerda ou um governo que defenda os interesses da classe trabalhadora. O PT foi desde o início um governo — este foi o traço característico do PT e de Lula no Governo — da conciliação nacional. O empresariado ganhou (e ganha) muito dinheiro e o Lula ganhou a confiança do empresariado. Lula cansou de dizer que “nunca os banqueiros ganharam tanto dinheiro aqui no Brasil como no seu Governo”. E ele está certo! Mas o mesmo se poderia dizer do agronegócio, cuja avaliação do Lula é a de que os donos do agronegócio “são os verdadeiros heróis do Brasil”, frase escandalosa que dá a dimensão da degradação a que chegou o ex-líder operário quando esteve na Presidência da República. E mais, nos governos do PT não houve a revisão de nenhuma privatização; o primeiro governo Lula ampliou o superávit primário, liberou os transgênicos, privatizou a previdência pública. No final do primeiro governo Lula se tentou uma legislação trabalhista e sindical que era destrutiva e que, por sorte, naquele momento não passou. 

Mitos

Em relação ao governo do PT, portanto, o primeiro mito que é preciso desmontar é de que se trata de um governo de esquerda. Ele sequer tentou ser um governo de esquerda, foi um governo de coalizão e conciliação entre os setores das grandes frações da burguesia financeira, contemplando também os setores industriais, do agronegócio, a burguesia dos serviços, bancos — todos tiveram uma “força” muito significativa nos governos do PT. 

Então, por que se ampliou a terceirização? Por um duplo movimento. Primeiro, há brechas na legislação brasileira que permitem a terceirização, e quando o empresariado brasileiro tem uma brecha legal, ele a implementa, seja a ferro quente ou a sangue frio. 

Está no Supremo Tribunal Federal - STF, depois de ter sido discutido pelo Tribunal Superior do Trabalho - TST, a solicitação de uma empresa questionando a divisão entre atividade-fim e atividade-meio, ou seja, a terceirização vem sendo implementada pelo empresariado praticamente em todos os setores, empresas privadas e públicas, de maneira crescente. 

Mas a questão que se coloca hoje é a seguinte: é preciso dizer com todas as letras que a terceirização, seja das atividades-meios, seja das atividades-fins, é nefasta para a classe trabalhadora, ela indignifica o trabalho ainda mais. A classe trabalhadora já é aviltada pela condição do assalariamento, da superexploração do trabalho, das burlas salariais. A terceirização é tudo isso e mais um tanto que já dissemos anteriormente. É preciso que o movimento sindical seja mais corajoso; muitos setores do movimento sindical aceitaram a terceirização e se vê até hoje que existem algumas centrais sindicais que não têm compromisso com a classe trabalhadora, que estão defendendo a terceirização, que tem uma concepção patronal. 

Sindicatos

Seria muito importante que os sindicatos comprometidos com a classe trabalhadora definissem um preceito: a proibição do trabalho terceirizado também nos sindicatos seria um primeiro exemplo. Se o sindicato de trabalhadores terceiriza trabalho, fica difícil ele convencer o empresariado de que a terceirização é nefasta; os sindicatos devem lançar uma campanha pelo fim do trabalho terceirizado. 

Por que o projeto da terceirização passou? Porque o PT, no Executivo Federal, nunca se consubstanciou como um governo dos trabalhadores e das trabalhadoras. Em segundo lugar, porque a pressão do empresariado é lenta, gradual, segura e, por fim, letal. Agora estamos no momento letal, agora eles querem dar o lance final. Impor uma legislação que irá permitir, por exemplo, que os aviões brasileiros sejam pilotados por pilotos terceirizados, só para dar um exemplo chocante.

 

IHU On-Line – Em que medida as transformações no mundo do trabalho são subsidiárias também do enfraquecimento das coletividades de massas, como os sindicatos, por exemplo?

Ricardo Antunes – Esse enfraquecimento é decisivo. Primeiro, o terceirizado roda de trabalho como se fosse uma roda de caminhão no asfalto. Então, como se organiza uma classe trabalhadora cuja taxa de rotatividade é altíssima? Como se organizam trabalhadores que lutam desesperadamente por um emprego? Porque pior que o emprego selvagem, ainda mais nefasto, é o desemprego. A terceirização, se esse PL nefasto for aprovado, se tornará um fenômeno exponencialmente ainda mais amplo, pois se nós temos terceirização de atividades de limpeza, restaurantes, transportes, há décadas — mas que eram atividades marginais no passado —, passaremos a enfrentar a terceirização total. E é isso que é imperioso impedir. Atualmente vemos o setor público corroído por terceirizações que, aliás, é preciso dizer, não reduzem custos, mas com muita frequência aumentam as despesas e criam polos potenciais de corrupção na empresa pública. Isso tudo cria núcleos privados de interesse ao lado do funcionalismo público e estão corrompendo funcionários públicos para poder ter uma vantagem recíproca nessa terceirização do setor estatal. 

No setor privado, as consequências da terceirização são conhecidas há mais tempo. Este quadro todo faz com que estes segmentos de trabalhadores e trabalhadoras terceirizados tenham uma grande dificuldade de organização sindical. Há depoimentos de trabalhadoras não terceirizadas que dizem que, quando elas começam a conversar entre si, criam momentos de sociabilidade e coágulos de solidariedade. No entanto, nas empresas terceirizadas, opera-se a “lei da selva”, pois temendo embriões de organização interna dos trabalhadores e para evitar greves dos terceirizados, transferem-se os trabalhadores e as trabalhadoras, separando em empresas diferentes para evitar a formação de um núcleo primeiro de solidariedade. As empresas terceirizadas dificultam a própria organização dos trabalhadores no local de trabalho, porque a rotatividade não para, qualquer trabalhador pode sair de um espaço para o outro, de uma empresa para outra etc. Tudo isso visa fraturar ainda mais a classe trabalhadora entre os que têm sindicato e entre os que não têm sindicato. Isso visa, é evidente, enfraquecer a solidariedade, a organização e a representação unitária dos trabalhadores e das trabalhadoras.

 

IHU On-Line – Em contrapartida, em que medida o enfraquecimento político de categorias do século XX, como os sindicatos, são uma espécie de efeito colateral do mesmo contexto social que faz emergir movimentos sociais característicos do século XXI, como da Multidão?

Ricardo Antunes – Multidão, para mim, não tem o estatuto de um conceito. Antonio Negri  cria o conceito de Multidão para mostrar, segundo ele, ou para tentar demonstrar, que as classes não mais dão conta da realidade, e hoje teríamos um movimento, um polo mais disforme, diferenciado, heterogêneo, que ele define como multidão. Multidão para mim é uma descrição, não um conceito. Não é por acaso que também na Europa ganhou corpo, a partir dos trabalhos, por exemplo, de Guy Standing  e vários outros, a ideia do precariado. Mas a ideia do precariado, segundo estes autores europeus, estaria relacionada a uma nova classe perigosa que não é mais nem parte da classe trabalhadora (diferente daqueles, são vários aqui que utilizam o conceito de precariado para caracterizar o nível acentuado de precarização dos extratos mais rebaixados do proletariado brasileiro, por exemplo). 

Portanto, uma coisa é defender a tese do proletariado como uma classe diferenciada e outra é conceber, como eu faço, o precariado como a ponta mais explorada e precarizada da classe trabalhadora. O conceito de Multidão, para substituir o conceito de classe, assim como o conceito de precariado para uma nova classe que não a seja a trabalhadora, são absolutamente insuficientes, eurocêntricos e não resolvem o problema. E estas minhas formulações aparecem detalhadas em meus livros mais recentes. Aliás, nas próximas semanas devo lançar a edição de 20 anos do livro Adeus ao trabalho? (São Paulo: Ed. Cortez, 16ª Edição revista e atualizada, 2015), e ainda tenho a felicidade de ter tido meu livro Os Sentidos do Trabalho (São Paulo: Boitempo) publicado em vários países, sendo que o último foi na Índia. Neles tento compreender a classe trabalhadora hoje, o que denominei como “classe-que-vive-do-trabalho”.

Trata-se da classe que apresenta uma nova morfologia do trabalho onde estão presentes o operariado industrial, o operariado agrícola, os trabalhadores de serviços, mas também os trabalhadores da agroindústria, os trabalhadores dos serviços industriais, de tal modo que aí entram os metalúrgicos, os bancários, trabalhadores do cultivo da cana, da produção e corte de aves e suínos para exportação, do call center (que são mais de 1,6 milhão no Brasil — com alto componente de feminização da força de trabalho), da indústria hoteleira, do comércio, de hipermercados. Por exemplo, o “wallmartismo” passou a ser uma expressão usada para definir este novo jovem proletariado ultraexplorado que trabalha no setor de serviços (hipermercados). O nosso desafio é compreender o sentido abrangente, contemporâneo, heterogêneo e diferenciado que compõe a classe trabalhadora hoje. 

Duas realidades

O conceito eurocêntrico de Multidão ou conceito eurocêntrico de precariado, como ele é concebido pelos autores europeus, ambos não dão conta desta realidade. Dizer que o precariado é uma classe nova do Brasil que não tem a ver com a classe trabalhadora é um equívoco profundo, porque nós sempre tivemos a classe trabalhadora precarizada no Brasil. Basta dizer que a classe trabalhadora, antes de ser classe trabalhadora assalariada, era classe trabalhadora escravizada, era trabalho escravo que tínhamos no Brasil. Desse modo, complexificou-se o conceito de classe, ele se amplia, é preciso pensar a dimensão de classe, gênero, geração, etnia. Mas não recusá-lo, como aparece no conceito de multidão.

É preciso, também, pensar dimensões de classe que dizem respeito a opções sexuais, à questão étnica, etc. A classe trabalhadora brasileira, assim como parte da classe trabalhadora norte-americana e em vários países da América Central, é uma classe trabalhadora de origem africana, negra. O socialismo latino-americano — se um dia houver socialismo na América Latina, e nós socialistas lutamos por isso — terá que ter uma face negra, africana, com sua cultura, com seus valores. O projeto político terá que ter uma face indígena, é impensável o socialismo latino-americano sem pensar nas comunidades indígenas, no trabalho comunal e comunitário indígena, da preservação — que ninguém faz como o índio — da água, da natureza, dos bens, da fauna, da flora.

Trabalho imigrante

Vamos pensar no trabalho imigrante que hoje é decisivo. Os trabalhadores imigrantes que estão na Itália, na Inglaterra, na Espanha, em Portugal, na Alemanha, na Suíça, na Argentina, no Brasil, são parte da classe trabalhadora desses países e o polo mais ultraexplorado da classe trabalhadora global. Por tudo isso, aqui somente indicado, eu não posso ser a favor de teses que no fundo querem desconstruir a classe trabalhadora, como quiseram também desconstruir o trabalho. Tentaram desconstruir o trabalho e erraram. Tentaram desconstruir a classe trabalhadora e também erraram. Tentaram desconstruir as lutas sociais do trabalho, uma vez mais erraram. 

Professores

Por certo eu não compartilho com uma visão tradicional e vulgar do marxismo que acha que só é trabalhador o operário de macacão. O professorado do ensino público primário e secundário que vive hoje uma intensa “exploração” do trabalho — “exploração” no sentido mais que econômico do termo, com salários indignos em função dos reajustes fiscais que fazem com que a hora/aula do professor da educação pública valha o preço de um abacaxi — está sofrendo um processo de proletarização de uma profissão que tinha um atributo especial. Qual era o atributo especial do professor? Aquela atividade laborativa que tem no exercício do intelecto o seu polo central, o que inclusive Marx chamou, com uma lucidez que caracterizava sempre a sua reflexão, de espaço dos trabalhos imateriais, do intelecto. Os professores nas escolas públicas no Brasil, na América Latina e em outras partes do mundo (em Portugal, há alguns anos, houve uma importantíssima greve dos professores das escolas públicas) estão percebendo que seu trabalho intelectual está sendo corroído e levado para o ralo junto com suas condições de trabalho cada vez mais precarizadas. 

Temos que compreender esse conjunto, essa dimensão compósita e heterogênea que compõe a nossa classe trabalhadora que é ampliada, com homens e mulheres que vivem da venda da sua força de trabalho em troca de salário. Em um sentido muito amplo, a classe trabalhadora não vem diminuindo em escala global, mas aumentando. Para isso é preciso não ser eurocêntrico, tem que olhar a Índia, a China, os países asiáticos, a América Latina, a África, para não dizer o equívoco teórico, analítico e conceitual que o trabalho não tem mais relevância. 

 

IHU On-Line – Diante deste complexo cenário, quais são os desafios para o mundo do trabalho no século XXI?

Ricardo Antunes – Resgatar os sentidos do trabalho, o que nos obriga a desestruturar o capital. Isso é, também, a principal conclusão do meu livro Os Sentidos do Trabalho. O trabalho que estrutura o capital desestrutura a humanidade. Por exemplo, o trabalho terceirizado estrutura o capital, cria mais valor, mais riqueza privada e desestrutura a humanidade. Na contraposição, o trabalho que estrutura a humanidade, os trabalhos de bens socialmente úteis, sejam eles materiais ou imateriais, isto é, aqueles nós precisamos para nossa sobrevivência, nossos alimentos, roupas, pinturas, esculturas, livros, obras de arte (em um sentido amplo), este trabalho que estrutura a humanidade tem que desestruturar o capital. E este é um imperativo decisivo do século XXI. 

Imperativo do trabalho

O imperativo hoje é fazer com que a vida no trabalho seja dotada de sentido para que a vida fora do trabalho seja também dotada de sentido também. Quem se depaupera, quem se destroça de 8 a 16 horas no trabalho (com seu regime de “metas”, produtividade, etc.) chega em casa exausto. O que este trabalhador faz quando chega em casa? Abre o computador e mantém o celular ligado para estar sempre “antenado” com o trabalho. É uma sociedade de luta por um trabalho que já não mais existe e se exaure da busca prometeica de um trabalho que desapareceu. Nós podíamos trabalhar hoje, algumas horas por dia, alguns dias da semana e ter uma vida fora do trabalho dotada de sentido, mas isso é incompatível com o que Robert Kurz  chamou de “sociedade produtora de mercadoria”, com o que István Mészáros  denomina de “sistema de metabolismo social do capital”, ambos inspirados por Marx. 

Assim, o imperativo do século XXI é: qual é o novo modo de vida que queremos construir? Quais são as nossas questões vitais hoje? O trabalho é uma questão vital. A preservação ambiental é uma questão vital, não é um tema do futuro, nós estamos diante uma sociedade com energia fóssil, com produção destrutiva, que visa eliminar ao invés de preservar. Quem poderia imaginar há duas ou três décadas, salvo os especialistas e estudiosos, que no Brasil haveria um ano sem água, especialmente no Sudeste mais rico? Sabemos que o Universo hoje não tem água para a humanidade, é uma questão universal. Sabemos que o oxigênio vai desaparecer na medida em que, das queimadas aos plantios de gado, da destruição do campo à urbanização da vida rural, da favelização das cidades à industrialização destrutiva, tudo torna-se cada vez mais intenso. Tudo isso coloca como imperativo crucial, qual o modo de vida que nós queremos para o século XXI? Responder a essa questão passa por responder que trabalho nós necessitamos para o século XXI. ■

Leia mais...

- “O governo Lula foi uma surpresa muito bem-sucedida para os grandes capitais”. Entrevista com Ricardo Antunes publicada na edição nº 441, de 28-04-2014; 

- As manifestações e a luta por outro modelo de democracia. Entrevista com Ricardo Antunes publicada na edição nº 434 da IHU On-Line, em 09-12-2013;

- Manifestações expõem fragilidades e limites do projeto constitucional-republicano de democracia. Dossiê publicado na edição nº 428 da IHU On-Line, de 30-09-2013;

- "Não é a classe trabalhadora que irá pagar por uma crise cuja responsabilidade não é sua". Entrevista com Ricardo Antunes publicada no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 11-03-2009;

- "Um 1º de maio getulista em plena era lulista". Entrevista com Ricardo Antunes publicada no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 27-04-2008;

- "Sindicalismo nunca dependeu tanto do Estado". Entrevista com Ricardo Antunes publicada no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 02-05-2008;

- Um crítico da economia política. Entrevista com Ricardo Antunes publicada na edição nº 400 da IHU On-Line, em 27-08-2012; 

- Fenomenologia do lulismo. Artigo de Ricardo Antunes publicado nas Notícias do Dia, de 03-01-2007, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU;

- O migrante e os usineiros. Artigo de Ricardo Antunes publicado nas Notícias do Dia, de 12-04-2007, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU; 

- O reencontro tardio de Lula com Getúlio. Artigo de Ricardo Antunes publicado nas Notícias do Dia, de 03-08-2007, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU;

- "Entre Lula e Alckmin, não sei qual a opção menos nefasta". Entrevista com Ricardo Antunes publicada no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 10-10-2006.

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    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

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