Edição 463 | 20 Abril 2015

Informação. Arma contra violência de gênero e garantia à saúde pública

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Márcia Junges e Ricardo Machado

Jeane Félix da Silva entende o debate sobre sexualidade e gênero como questões de saúde pública que precisam ser trabalhadas com jovens e profissionais de saúde

Ainda que as questões de gênero e sexualidade não sejam os únicos temas de fronteira da contemporaneidade, são dois pontos cujo debate suscita controvérsias, sobretudo quando se leva em conta a educação de jovens e crianças. Na contramão dos avanços realizados nas últimas décadas, está o não debate sobre sexo e gênero. “A escola, assim como as instituições de ensino superior, precisa(m) promover reflexões sobre essas questões de modo a promover uma cultura de respeito às diferenças e diversidades sexuais e de gênero”, sustenta Jeane Félix da Silva, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“Temos visto na mídia, quase todos os dias, casos de homo/lesbo/transfobia e de violências de gênero. Não podemos tratar esses casos como ‘naturais’, precisamos desconstruir a lógica heteronormativa que faz vítimas todos os dias e acredito que a escola é um caminho para essa desconstrução”, argumenta Jeane. Para a pesquisadora, trazer à tona as discussões sobre gênero e sexualidade é uma forma de levar em conta a saúde pública. “Todos os dias, no nosso país (embora não apenas nele), mulheres sofrem consequências de abortos clandestinos; a população de lésbicas, gays, travestis e transexuais é violentada devido à intolerância e ao preconceito; jovens se infectam pelo HIV ou por outras doenças sexualmente transmissíveis; crianças e mulheres são abusadas sexualmente”, justifica.

Por fim, a entrevistada defende a promoção do trabalho junto aos jovens e aos profissionais de saúde de forma mais ampla. “É preciso fortalecer o trabalho com temas como sexualidade, saúde sexual e saúde reprodutiva, gênero, entre outros, nas escolas; voltar a investir nas ações de sexualidade do Programa Saúde na Escola; desenvolver outros projetos, programas, políticas que abordem os temas junto aos/às jovens”, completa.

Jeane Félix da Silva possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, onde também realizou mestrado em Educação. Doutorou-se em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, onde, atualmente, faz pós-doutorado na mesma área, realizando tutoria pedagógica no Curso de Especialização em Saúde Coletiva e Educação em Saúde, oferecido em parceria com o Ministério da Saúde.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Qual a importância de se debater em sala de aula questões de gênero e diversidade sexual? 

Jeane Félix da Silva - Gênero e sexualidade atravessam a vida de todos/as nós. Relacionam-se às nossas escolhas e vivências afetivas e sexuais, aos modos como nos constituímos como sujeitos nessa cultura, aos modos como nossas identidades sexuais e de gênero vão sendo produzidas. Nesse sentido, a escola, assim como as instituições de ensino superior, precisa(m) promover reflexões sobre essas questões de modo a promover uma cultura de respeito às diferenças e diversidades sexuais e de gênero. Temos visto na mídia, quase todos os dias, casos de homo/lesbo/transfobia e de violências de gênero. Não podemos tratar esses casos como “naturais”, precisamos desconstruir a lógica heteronormativa que faz vítimas todos os dias e acredito que a escola é um caminho para essa desconstrução. Não tenho, todavia, uma visão romântica de que a escola vai resolver tudo, principalmente porque na escola também estão pessoas conservadoras, que não se importam com as violências contra LGBTs e contra mulheres, que acham que esses temas não devem ser abordados formalmente pelos currículos. Temos visto retrocessos na abordagem desses temas nas escolas e no âmbito das políticas públicas, a exemplo do Programa Saúde na Escola , que é uma parceria entre os Ministérios da Saúde e da Educação; também reduziram as ações voltadas a esses temas, indicando um recuo, por parte do governo, na abordagem dessas questões. Por tais razões, acredito que gênero e sexualidade são temas que precisam ser trabalhados nas escolas e que não podemos abrir mão de abordá-los. 

 

IHU On-Line – Por que debater gênero e sexualidade significa, também, discutir saúde pública?

Jeane Félix da Silva - Porque todos os dias, no nosso país (embora não apenas nele), mulheres sofrem consequências de abortos clandestinos; a população de lésbicas, gays, travestis e transexuais é violentada devido à intolerância e ao preconceito; jovens se infectam pelo HIV ou por outras doenças sexualmente transmissíveis; crianças e mulheres são abusadas sexualmente. Entre tantos outros, esses são alguns exemplos do quanto as questões de gênero e sexualidade precisam ser refletidas, inclusive (talvez principalmente) nas escolas. Tratar esses temas como secundários (ou simplesmente invisibilizá-los) tem efeitos diretos na saúde pública, uma vez que as pessoas vítimas de violências e abusos podem desenvolver doenças e infecções em decorrência desses abusos e que, em parte expressiva dos casos, essas pessoas são atendidas pelos serviços públicos de saúde. Acredito que refletir sobre gênero e sexualidade pode prevenir abusos, violências, infecções, gravidezes não planejadas, etc. Não se trata de abordar esses temas apenas do ponto de vista da promoção da saúde e da prevenção de doenças, é importante abordá-las no sentido dos prazeres, das identidades, das experimentações, do respeito individual e coletivo, mas, também nessa direção, acredito que estamos atuando no campo da saúde. Nesse sentido, é fundamental que profissionais de saúde estejam preparados para atender de modo acolhedor, respeitando as dores dos/as usuários/as, reduzindo, assim, as vulnerabilidades institucionais que são comuns em casos de aborto e violência contra mulheres e LGBT, em que, muitas vezes, se responsabilizam as vítimas pelo modo como estavam vestidas, por estarem em um determinado lugar tarde da noite, por estarem “dando pinta”, etc. Precisamos rever essa lógica, pois a vítima NUNCA É CULPADA. Isso é também produzir saúde!

 

IHU On-Line – Como é, atualmente, o trabalho junto aos jovens que vivem com o vírus HIV?

Jeane Félix da Silva - No Brasil, as ações de prevenção junto aos jovens acontecem, em geral, nas escolas (embora no âmbito das políticas públicas essas ações tenham deixado de ser prioridade), nos serviços de saúde (em menor proporção), em organizações não governamentais e grupos/redes de jovens. As metodologias empregadas vão desde as tradicionais palestras e debates em aulas ao desenvolvimento de projetos, exibição e discussão de filmes, uso de redes sociais, etc. Há bastante transmissão de informações sobre as formas de prevenção e poucas reflexões sobre as possibilidades de viver com HIV ou de ser acometido por outras doenças sexualmente transmissíveis. Não é novo dizer isso, mas precisamos investir em ações que superem a mera transmissão de informações (até porque as informações estão por toda parte, à distância de um clique), que dialoguem sobre os efeitos da infecção, as possibilidades de tratamento, os desafios de uma vida com acompanhamento frequente de profissionais de saúde e da ingestão diária de medicamentos, incluindo os seus efeitos colaterais. Acredito que o desafio está em trabalhar com metodologias que se aproximem dos/as jovens, que dialoguem com seus desejos e suas experiências, por meio de aplicativos para celular e do uso das redes sociais, além de ir aos seus espaços de socialização. Na minha experiência com o tema, tenho visto que o que mais funciona é fazer com (e não para) os/as jovens, ouvir suas demandas e necessidades para desenvolver estratégias que sejam adequadas a elas.

 

IHU On-Line – De que ordem são os desafios no tratamento deste público? Como as questões patológicas impactam em outros âmbitos de sua vida?

Jeane Félix da Silva - Os desafios, do meu ponto de vista, estão relacionados ao fato de que os/as jovens mudaram, seus espaços de socialização são outros, as linguagens utilizadas por eles/as mudam a todo instante e nós, profissionais de educação, de saúde, familiares, etc. não conseguimos acompanhar essas transformações. Continuamos transmitindo informações e refletindo pouco sobre os efeitos de uma infecção na vida de uma pessoa. Além disso, é preciso se dar conta de que ter informação não é suficiente para mudar comportamento e que, para alguns/as jovens, o risco pode ser prazeroso. Outro desafio é desconstruir a lógica do amor romântico que vulnerabiliza muitos jovens, mulheres e homens. Ouvi de vários jovens soropositivos/as com quem trabalhei que a infecção ocorreu no âmbito de relações estáveis, com pessoas que amavam e que deixaram de se prevenir quando uma relação de confiança foi estabelecida, o que às vezes aconteceu após dois ou três encontros.

Para um/a jovem que vive com HIV os impactos da soropositividade podem ser de várias ordens, por exemplo: é preciso ir com frequência ao serviço de saúde e, em vários casos, tomar medicamentos cotidianamente; acostumar-se com os efeitos colaterais desses medicamentos é outro impacto da infecção nas suas vidas com o qual é preciso aprender a lidar; os efeitos de alguns medicamentos na aparência física (por exemplo, o surgimento da lipodistrofia, que seriam alterações anatômicas provocadas pela distribuição irregular da gordura corporal); contar ou não contar o diagnóstico a parceiros/as afetivos e sexuais, à família, aos colegas de trabalho, amigos/as. A AIDS é uma doença com efeitos morais bem marcados que têm origem na ideia inicial (e equivocada) de que ela atingia apenas pessoas dos chamados grupos de risco — gays, usuários/as de drogas e prostitutas. É preciso aprender a lidar com todos esses efeitos e isso não é nada simples. Por isso, argumento que é preciso refletir sobre essas questões no âmbito das escolas (e também das instituições de ensino superior).

 

IHU On-Line – Tendemos a perceber as biopolíticas de Estado como aspectos inibidores de nossas liberdades, entretanto, do ponto de vista da saúde pública, algumas práticas biopolíticas — campanhas de vacinação, políticas públicas, etc. — permitem controlar epidemias. Nesse sentido, quais são os desafios para manter um equilíbrio entre o bem-estar coletivo e a autonomia dos sujeitos?

Jeane Félix da Silva - Essa é uma pergunta difícil de responder. Bom, não tenho dúvidas de que, do ponto de vista da saúde pública, é preciso desenvolver estratégias biopolíticas para conter doenças e epidemias. No caso das doenças sexualmente transmissíveis e da AIDS é fundamental que o Estado desenvolva estratégias para assistência às pessoas infectadas pelo HIV e campanhas de prevenção para reduzir o número de novas infecções. O desafio, me parece, é disponibilizar o maior número possível de estratégias de prevenção que se adaptem aos diferentes estilos de vida das diferentes pessoas e ao mesmo tempo ter nitidez que essas estratégias nunca serão suficientes; investir em campanhas de comunicação de massa diferentes daquelas que associam o HIV ao medo e à morte, pois essas campanhas não fazem sentido para os/as jovens; ampliar as ações educativas que refletem sobre o tema no âmbito das escolas. Numa sociedade como a nossa, as pessoas têm direito de fazer suas escolhas, mesmo que o efeito dessas escolhas seja, por exemplo, a infecção pelo HIV, e isso se coloca como um grande limite para quem formula e implementa políticas públicas no campo do HIV/AIDS no nosso país.

 

IHU On-Line – Como o debate sobre diversidade sexual auxilia no avanço tanto nas políticas públicas quanto na construção de uma cultura da tolerância e respeito ao outro?

Jeane Félix da Silva - Não gosto dessa ideia de tolerância. Acho que é preciso promover uma cultura baseada no respeito das escolhas individuais e coletivas, promover uma cultura de respeito aos direitos humanos. O debate sobre a diversidade de possibilidades de viver a sexualidade e as várias identidades de gênero é importante, pois promove a reflexão sobre os direitos humanos de grupos identitários e também os direitos individuais e coletivos. É preciso romper com a lógica fundamentalista que tem ganhado cada vez mais espaço (na mídia e também no âmbito político), é preciso avançar no debate sobre o Estado Laico e sobre os direitos individuais e coletivos. 

É inadmissível retrocedermos em relação aos direitos humanos, ao respeito às diversidades e diferenças de gênero e sexualidade, e temos retrocedido. Desde a década de 1990, com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, no campo da educação, onde a sexualidade deveria ser abordada nas escolas como tema transversal, houve vários avanços no campo das políticas públicas (lançamento de projetos e programas, publicação de materiais didáticos pedagógicos) e isso foi retrocedendo nos últimos quatro anos. Estamos vivendo um momento delicado de secundarização do tema, ao passo que temos visto casos de violência contra LGBT com muita frequência na mídia. O Governo Federal vetou a distribuição de materiais voltados ao trabalho com o tema da sexualidade nas escolas (por parte do Ministério da Educação, foi vetado o Kit Anti-Homofobia, que ficou mais conhecido como “Kit Gay” e, no âmbito do Ministério da Saúde, houve veto de campanhas de HIV voltadas ao público LGBT e de guias educativos que integravam o conjunto de materiais do Programa Saúde na Escola) e reduziu os investimentos técnicos na implementação de ações que abordassem o tema. Isso é inadmissível! Precisamos reverter esses retrocessos.

 

IHU On-Line – Tendo em vista o cenário atual, quais foram os avanços mais significativos na última década e quais são os limites no debate deste tema?

Jeane Félix da Silva - Penso que, atualmente, é possível indicar mais retrocessos do que avanços, infelizmente. Vínhamos de diversos avanços no campo do trabalho com os temas gênero e sexualidade nas escolas, citando alguns: publicação de Parâmetros Curriculares Nacionais (que são da década de 90); publicação de diversos materiais educativos no âmbito do Ministério da Saúde e do Ministério da Educação; implementação do Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas, em 2003 e, em 2007, do Programa Saúde na Escola, ambos desenvolvidos em parceria pelos Ministérios da Saúde e da Educação junto com Estados e municípios, além de Organizações das Nações Unidas; realização de quatro Mostras Nacionais do Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas, que propiciava a troca de experiências entre profissionais que desenvolviam ações nas escolas e unidades de saúde; Curso Gênero e Diversidade na Escola, desenvolvido por universidades em parceria com o Ministério da Educação; outros vários cursos de formação de professores/as e profissionais de saúde para lidar com os temas. Essas ações foram desenvolvidas em todo o país e conseguiram reunir um número expressivo de profissionais, jovens e familiares em reflexões sobre sexualidade, gênero, enfrentamento do racismo, promoção de saúde. Desde 2010, porém, os investimentos nesses processos foram diminuindo, em parte por pressão de parlamentares que integram grupos religiosos e fundamentalistas. Isso poderá ter efeitos sérios em curto e médio prazo. 

Penso que precisamos de um movimento que retome a importância do trabalho com esses temas junto aos/às jovens e aos/às profissionais de educação e de saúde. Não acho que falta informação, falta é um trabalho educativo mais amplo. É preciso fortalecer o trabalho com temas como sexualidade, saúde sexual e saúde reprodutiva, gênero, entre outros, nas escolas; voltar a investir nas ações de sexualidade do Programa Saúde na Escola; desenvolver outros projetos, programas, políticas que abordem os temas junto aos/às jovens. ■

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