Edição 463 | 20 Abril 2015

Sexualidade, vivência e pesquisa. “O pessoal é político!”

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Márcia Junges e Andriolli Costa

Fernando Seffner reflete sobre as estratégias de percepção da sexualidade a partir de sua própria experiência

A sexualidade não é apenas um interesse de pesquisa para Fernando Seffner. Faz parte de sua própria vivência, de sua trajetória pessoal e profissional. E é a partir deste lugar de fala — da experiência e da reflexão — que ele expõe, nesta entrevista por e-mail à IHU On-Line, a evolução das formas de ver a temática. 

“Como alguém que progressivamente foi assumindo que sentia afetos, desejos e amor por outros homens, fiquei muito tempo afirmando em rodas de amigos que a sexualidade era um assunto do privado”, relembra. Nada que ocorria entre quatro paredes era de interesse de ninguém. Este pensamento, entretanto, se transforma com a emergência da AIDS e a militância pelo ativismo LGBT ao qual se engajou durante a juventude. “Sexualidade passou a ser algo de luta, de construção social”, esclarece. Durante muito tempo, afirmar-se gay era um ato de libertação. “A sexualidade era para ser mostrada, o pessoal é político!”

No entanto, mesmo que ainda se veja marcado por essa afirmação de luta, Seffner reflete que neste ponto a sexualidade não era apenas um traço da identidade que se manifestava no privado, ela era a identidade toda. E quando “tudo o que fazemos e gostamos, todos os amigos que temos, passam a estar absolutamente relacionados com o que se diz, se pensa e se pratica na esfera da sexualidade, isso pode empobrecer a vida”.

O pesquisador estabelece os nexos entre sexualidade e o conceito de dispositivo de Foucault; trata do modo como filmes, livros e demais obras culturais permitem estratégias pedagógicas de gênero para além dos ambientes escolares. Reflete ainda sobre como o pertencimento religioso dos homens marca seus modos de compreensão da sexualidade, na esfera pública e na esfera da intimidade.

Fernando Seffner é graduado em História e Geologia pela UFRGS, com mestrado em Sociologia e doutorado em Educação pela mesma universidade. Atualmente é professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, na linha de pesquisa Educação, Sexualidade e Relações de Gênero.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – De que maneira podemos compreender o conceito de sexualidade?

Fernando Seffner - Com certeza sexualidade é um termo que não encontra consenso fácil em sua definição, por razões tanto políticas quanto históricas. Prefiro falar das estratégias que em geral se conjugam para produzir o conceito de sexualidade. Faço isso expondo partes do que eu mesmo já acreditei “ser” a sexualidade. 

Em minha trajetória pessoal/profissional se cruzam três pertencimentos: entendo-me como homem homossexual (ou seja, compreendo o que seja sexualidade a partir deste lugar de desejo); estou de longa data envolvido no ativismo LGBT bem como na luta de apoio e prevenção da AIDS (ou seja, assumo que sexualidade é objeto de luta e disputa política) e tomei desde muitos anos a sexualidade como categoria de pesquisa — ou seja, sou um pesquisador na área, marcado por uma posição teórica informada pelos estudos feministas e pós-estruturalistas, hoje em dia com interesse nas teorizações queer e nos estudos pós-coloniais.

Ainda vale dizer que me ocupo em estudar os modos de produção, manutenção e modificação das masculinidades, então sou um homem que estuda homens, e isso marca também o que penso sobre sexualidade. É do interior deste intrincado jogo de possíveis posições de sujeito que tenho produzido minhas compreensões acerca da sexualidade. 

O pessoal é político

Exemplificando. Como alguém que progressivamente foi assumindo que sentia afetos, desejos e amor por outros homens, fiquei muito tempo afirmando em rodas de amigos que a sexualidade era um assunto do privado, das quatro paredes, que estava fora do alcance de normas e legislações. Sendo assim, por motivos de proteção da intimidade e respeito à privacidade simplesmente não se devia falar, nem perguntar, apenas respeitar.

Eu adorava dizer “aquilo que se faz entre quatro paredes não interessa a ninguém além dos que estão dentro das quatro paredes”. Na época, isso parecia ser o melhor, não vivíamos uma identidade gay. Éramos apenas alguns amigos que tinham se descoberto gostando de homens, falávamos mais de sexo do que de sexualidade, e víamos como possível saída para evitar a discriminação que se deixasse “em paz” a sexualidade de cada um, a começar pela nossa! 

Mas a coisa mudou com a epidemia de AIDS, quando comecei a participar tanto dos grupos que lutavam no apoio e prevenção da doença, quanto nos encontros do ativismo gay na cidade de Porto Alegre. Em muito pouco tempo troquei de discurso. Sexualidade passou a ser algo de luta, de construção social, ela não era apenas um traço da identidade que se manifestava no privado, ela era a identidade toda. 

Durante algum tempo, a coisa mais importante que havia para ser dita a meu respeito era “eu sou gay”, ela totalizava a minha identidade, e a de meus amigos, e a todo momento assegurávamos isso. E foi afirmando um pertencimento ligado à sexualidade gay que fiz amizades, ingressei em instituições, assumi relações. A sexualidade era para ser mostrada, o pessoal é político! 

Pesquisa

Já como pesquisador do tema, entendo esse período como de afirmação identitária, estratégia pela qual sou muito marcado ainda. Ou seja, sustentar a todo instante que sou gay, um homem que tem desejos eróticos por outros homens, remeter o principal traço da minha inserção no mundo a um elemento da sexualidade, e fazer disso uma estratégia de luta e de construção de redes de sociabilidade é ainda algo muito forte na minha vida, e vejo isso também no ordenamento social como um todo.

Mas atualmente me preocupo com um elemento de “captura” que a luta pela identidade baseada na sexualidade traz, pois tudo o que fazemos, tudo o que gostamos, todos os amigos que temos, passam a estar absolutamente relacionados com o que se diz, se pensa e se pratica na esfera da sexualidade, o que pode empobrecer a vida. 

Aqui já é possível arriscar, com o uso de algumas ideias de Foucault,  o que penso ser a sexualidade: é esta superfície de estimulação de corpos, de estimulação de prazeres, de formação de conhecimentos, de estruturação de convívios, e de entendimentos sobre o corpo, com as quais justificamos crenças, comportamentos e relações ligados ao corpo e prazer, mas que podem repousar sobre objetos, mercadorias, instituições, eventos, muito afastados do que entendemos como “fazer sexo”.

 

IHU On-Line – Como a concepção de dispositivo de Michel Foucault nos ajuda a compreender a construção das sexualidades? Que dispositivos de poder estão em jogo nos processos sociais para fazer emergir determinados discursos de sexualidade?

Fernando Seffner - Esta questão tem tudo a ver com meu momento atual. Após dez anos inserido no PPGEDU UFRGS, linha de pesquisa Educação, Sexualidade e Relações de Gênero, desenhei um programa de estudos para compreender de modo mais elaborado as informações que coletei nos estudos sobre masculinidades. Em outras palavras, tento agora problematizar minha própria trajetória de pesquisa na abordagem dos processos de produção das masculinidades, a partir de três fontes: o histórico das disciplinas e seminários que buscaram aumentar minha compreensão do tema, ofertados no PPGEDU UFRGS a cada semestre; as informações produzidas no conjunto de pesquisas sobre o tema das masculinidades, das quais ou fui o pesquisador principal, ou integrei a equipe de pesquisa; e o conjunto de teses, dissertações e monografias das quais fui o orientador. 

Estou empreendendo este programa de estudos com duas estratégias. A primeira delas é levantar o vocabulário conceitual utilizado ao longo destes anos na produção das pesquisas. Isto inclui termos como heteronormatividade, pedagogias do gênero e da sexualidade, masculinidades, sexualidades, políticas públicas de saúde e direitos sexuais; gênero, direitos humanos, diversidade, diferença, identidade, norma, entre outros. Entender a utilização destes conceitos é a tarefa aqui. 

A segunda estratégia é situar o que já foi pesquisado na intersecção de três categorias teóricas: a noção de dispositivo em Foucault (rede de relações intencionada) posta para ajudar a entender os contextos específicos de produção de masculinidades; a noção de biopolítica/biopoder em Foucault (estratégias de governamento de populações) empregada para pensar as políticas públicas e as relações de poder que envolvem as masculinidades; e a noção de pedagogias culturais, com destaque para as pedagogias do gênero e da sexualidade, com o intuito de situar no campo da educação os processos de produção, manutenção e modificação das masculinidades contemporâneas. 

Dispositivo

O conceito de dispositivo ocupa aqui um lugar importante. Por herança marxista, me acostumei a analisar a disposição das coisas (pessoas, instituições, objetos, políticas públicas, movimentos sociais, representações, imaginários) como ordenada por alguma vontade superior, em geral conectada com o “mal”, a dominação de um grupo sobre outro. 

O conceito de dispositivo tem servido para arejar minhas percepções, e gosto de pensar que as coisas se dispõem em linhas, curvas e diferentes regimes, que conjugam desejos e vontades. No caso das masculinidades, a produção de desejos tem sido muito intensa, o homem é cada vez mais alvo de novas disposições, o que em parte explica o que muita gente chama de “crise da masculinidade”. 

Tenho procurado situar as produções já feitas em masculinidade com o recurso a algumas características que Foucault estabelece para o dispositivo: um conjunto heterogêneo de coisas; sua articulação em rede; a operação do dispositivo tendo em vista um propósito estratégico, que se explica pela economia das relações, e não é fruto de uma vontade em particular; sua íntima vinculação com as relações de poder e resistência; um exercício que delimita o campo do que é permitido pensar ou não, o que é aceito como científico ou não. No momento, certamente ainda estou um pouco longe de concluir algo sobre os estudos de masculinidade a partir da noção de dispositivo, mas é nesta direção que estou me movendo. 

 

IHU On-Line – Suas pesquisas mais recentes investigam as conexões entre religião e sexualidade, assumindo o pressuposto de que pertencimentos religiosos dos indivíduos são questões da esfera pública, e não do domínio privado. O que isso significa?

Fernando Seffner - Tenho procurado estabelecer diálogos entre questões da ordem da sexualidade e outros marcadores sociais. Já de longa data, o principal marcador é gênero. Também aqui variei de posição. Por muitos anos pensei a sexualidade como ordenando o gênero, do tipo nasceu macho (sexo, sexualidade), vai ser homem (gênero). Mesmo assumindo que o gênero era dotado de autonomia, esta era relativa, estava atrelada a imposições da sexualidade. 

Hoje em dia lido com gênero e sexualidade como dotados de autonomia, e assumo que suas conexões são fruto de posições específicas de sujeito, de conjunturas particulares. A partir de teorizações queer, tenho até mesmo pensado que o gênero marca o campo da sexualidade de forma muito mais efetiva do que nunca imaginei antes. 

As pesquisas sobre religião começaram no âmbito do projeto de pesquisa Respostas Religiosas à AIDS no Brasil, coordenado pelo Prof. Richard Parker , da Columbia University. Inicialmente marcadas pela conexão doença, religião e sexualidade, hoje em dia trilhei outros caminhos, e tenho buscado entender como o pertencimento religioso dos homens marca seus modos de compreensão da sexualidade, na esfera pública e na esfera da intimidade. 

Difícil dizer se cheguei a alguma conclusão, mas certamente tenho percebido o trânsito entre posições que são assumidas conforme o contexto, ou seja, o que se aprende a dizer e fazer quando se é interpelado pela religião, e o que se pode negociar de modo diferente quando estamos afastados do cenário religioso, mas não desconectados dele. 

Todo mundo negocia posições e possibilidades e limites, e o marcador religioso não é isento disso. Cada um estabelece modos próprios de pensar a equação que envolve os ditames da religião e as interpelações eróticas que circulam pelo social, e os homens não são diferentes, e não creio que se deva considerar isso como algo ruim ou equivocado. Essa é a capacidade de agência dos homens, e novamente aqui o conceito de dispositivo é frutífero para pensar as opções estratégicas, intencionadas, mas pouco ordenadas.

 

IHU On-Line – Filmes, peças de teatro, novelas, músicas, pinturas, entre outras produções culturais, podem ser compreendidas como pedagogias que permitem aprofundar o conhecimento acerca de temas como violência de gênero e masculinidades? Como podemos refletir sobre isso?

Fernando Seffner - A ideia central aqui é de que todo artefato cultural pode ser lido como portador de uma pedagogia cultural. No caso, o que me interessa é perceber as pedagogias do gênero e da sexualidade, uma subcategoria das pedagogias culturais, da qual são (ou podem ser) portadores os artefatos culturais, quaisquer que sejam eles. 

A percepção de que os artefatos culturais são portadores de pedagogias traz pelo menos dois benefícios. O primeiro e imediato é perceber que as estratégias pedagógicas, que visam ensinar algo a alguém, mesmo que de modo difuso e não intencional, não são exclusivas dos ambientes escolares, mas estão disseminadas pela sociedade, e com isso o campo dos estudos em educação se alarga de modo muito instigante.

O segundo benefício é que o campo da educação, neste diálogo com os ambientes sociais e com as demais ciências humanas, sofisticou suas ferramentas tradicionais de pesquisa, em particular a noção de currículo — aqui se falando em currículos culturais; a própria noção de pedagogias — vinculada em geral às ideias de direção do projeto educativo e método; e as conexões entre política e educação, postas de modo explícito na conhecida afirmação de Paulo Freire, quando diz que todo ato educacional é em si um ato político. Esta frase ganhou novos contornos com a noção de pedagogias culturais.

Para o caso das questões de gênero e sexualidade, o uso destas ferramentas, em especial a noção de currículo cultural, tem permitido perceber que as aprendizagens de que são portadores os artefatos culturais se organizam de modo articulado com a inserção dos indivíduos no mundo, propondo a eles não apenas aprendizados aleatórios — do tipo eu vejo um filme sobre homossexualidade masculina e ali aprendo algo isolado —, mas configuram estratégias mais elaboradas de aprendizado e produção identitária, onde conjuntos de artefatos insistem em certos modos de ser, cada um a partir de sua particularidade. 

Um caso exemplar são as aprendizagens dos modos “corretos” e “adequados” de ser menino e menina, que estão disseminados em muitos artefatos culturais, e agem em sincronia, o que também é melhor compreendido se olharmos para isso tudo com a noção de dispositivo, ou seja, as pedagogias do gênero e da sexualidade, centralmente envolvidas na produção dos modos de viver os gêneros e os desejos da sexualidade, têm distribuição intencionada.

 

IHU On-Line – A discussão a respeito dos direitos sexuais e reprodutivos é de extrema importância para a implementação e garantia da democracia em todas as esferas da vida social. Como podemos refletir sobre esse tema considerando as múltiplas identidades de gênero e sexuais?

Fernando Seffner - Este é um assunto da ordem do dia, em particular no Brasil, e as últimas eleições presidenciais, tal como aquelas de quatro anos atrás, mostraram isso com clareza, com a forte predominância destes temas na pauta dos candidatos. A ideia de que temos na sociedade indivíduos que desejam viver seus desejos de gênero e sexualidade de modo diverso daqueles preceituados pela tradição é altamente incômoda para muitos setores.

Na luta contra essa manifestação da diversidade sexual e de gênero, muitos discursos têm sido mobilizados, em particular o discurso religioso, em toda a sua variedade, e importantes conhecimentos do campo biomédico também. Por outro lado temos uma vigorosa manifestação dos indivíduos que desejam viver seus desejos em outras direções, e o espaço de que já desfrutam na sociedade em termos de visibilidade é bem amplo. 

A disputa se acirra com a proposição de que a partir desta diversidade de gênero e sexualidade se pode estruturar um campo de direitos, ou seja, pensar que os sujeitos que manifestam outros modos de viver seu gênero e sua sexualidade podem ser sujeitos portadores de direitos. Certamente isso assusta os setores conservadores. Esse susto vale tanto para direitos já consolidados, tais como a dissolução do casamento em rito sumário e simples ou o uso de tecnologias de reprodução assistida ou de evitação de filhos. 

Mas são os novos desdobramentos desses direitos que de fato estão no centro das disputas, tais como o direito de casais do mesmo sexo adotarem filhos ou transmitirem herança; o direito a mudar de sexo a partir de procedimentos cirúrgicos e hormonais com a assistência do SUS - Sistema Único de Saúde; o direito a manifestar de modo livre sua preferência sexual em todos os ambientes públicos; o direito de mudar de nome, e assumir a expressão de outro gênero, mesmo sem ter feito cirurgia e sem desejar estes procedimentos, entre outros. 

Essas questões podem parecer afastadas da escola, mas não são. Basta passar uma semana em uma escola qualquer, tanto de ensino fundamental quanto de ensino médio, para verificar como a visibilidade dos novos modos de ser menino e menina, bem como a diversidade de orientação sexual, são expressivos, não apenas entre alunos e alunas, mas entre professores. Basta ver o impacto que já causa nos sistemas escolares a possibilidade de ter um nome social, ou seja, um nome pelo qual desejo ser chamado e tratado na escola, e que pode não ter nada a ver com aquele com que fui matriculado. 

O Brasil, que sempre se considerou e assim foi visto como um paraíso de liberdade sexual, tem ficado vergonhosamente para trás neste campo. Nem é necessário sair da América Latina para ver isso, os países que nos rodeiam têm hoje em dia legislações muito abertas ao respeito e valorização da diversidade de gênero e sexualidade, enquanto aqui tratamos a coisa na base das noções de pecado e atos contra a natureza. Na esteira desse debate, outra questão emergiu, com forte impacto na escola pública brasileira: a questão do estado laico, ou seja, de que a religião não deve regrar o espaço público, e a escola é um espaço público. Todas estas discussões devem merecer um olhar atento de professores e professoras.

 

IHU On-Line – Você coordena atualmente o Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero (GEERGE). Este grupo foi pioneiro, pois propôs uma articulação entre os estudos de gênero e de sexualidade pós-estruturalistas, a teoria queer e os estudos foucaultianos. Poderia comentar isso?

Fernando Seffner - O GEERGE vem tendo de fato um papel importante no debate sobre temas de gênero e sexualidade no campo da educação. O trabalho pioneiro feito pela professora Guacira Lopes Louro  não apenas teve impactos no campo dos estudos de gênero e sexualidade, como fortemente no campo da educação. 

Através da noção de pedagogias do gênero e da sexualidade, e das discussões sobre a identidade como posição de sujeito, fruto de interpelações, estas questões foram trazidas ao campo da educação, e aqui tratadas em linguajar próprio do campo. Mais ainda, as reflexões se ampararam teoricamente nos estudos foucaultianos, bem como incorporaram progressivamente uma gama de autores pós-estruturalistas. 

No campo da educação, o diálogo das questões de gênero e sexualidade com as noções de currículo como produção cultural e política, imerso em relações de poder, e mais recentemente as teorizações queer acerca da produção e invisibilidade da norma, perguntando-se acerca da possibilidade de uma pedagogia queer. Hoje em dia são muitos os grupos e pesquisadores no campo da educação que se dedicam aos temas do gênero e da sexualidade, e a escola é cada vez mais um local onde a discussão destes temas se reveste de importância particular.

 

IHU On-Line – Sua formação inicial é em História e hoje leciona a disciplina de estágio em História, participando ativamente da formação de futuros professores. De que modos os temas de gênero e sexualidade se articulam com o exercício da docência?

Fernando Seffner – Tradicionalmente, o ensino de história não contempla questões de gênero e sexualidade, mesmo em propostas mais contemporâneas, em que se busca articular ensino de história com os grandes debates que cercam os alunos. Mas a situação tem se modificado, em particular por conta da enorme importância da escola como lugar de vivência das culturas juvenis, e do espaço que nelas ocupam as questões de gênero e sexualidade. 

Observo isso na supervisão de estágios docentes em História. Todos os semestres temos alunos que decidem inserir em seus planejamentos tópicos relativos a gênero e sexualidade, e neste item estamos bem servidos na produção de conhecimento histórico, pois nunca se publicou tanto sobre história de homens e de mulheres, sobre história e gênero, sobre a diversidade dos modos de viver os desejos eróticos e a sexualidade nas diferentes sociedades.

Também temos tido o lançamento de excelentes obras sobre noções como virilidade e feminilidade, e ótimas obras que problematizam o amor romântico, a instituição do casamento, os modos de gostar e de demonstrar afeto e amor, etc. Claro está que os alunos e alunas do ensino fundamental e ensino médio tem enorme interesse nestes temas, embora a polêmica que em geral acompanha estas aulas. Mas é um caminho que cada vez mais está aberto, e vem sendo trilhado.

 

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum ponto não questionado?

Fernando Seffner - Penso que temos hoje em dia um profícuo campo também de pesquisas e ações na articulação entre as políticas públicas de educação e os movimentos sociais de gênero e sexualidade, que produzem materiais e mantêm ativos debates em temas polêmicos. 

Por fim, certamente temos necessidade de estudos envolvendo os fortes processos de biomedicalização tanto no campo da sexualidade e do gênero — basta ver as novas estratégias de tratamento da AIDS enquanto prevenção e os modos de lidar com a transexualidade como doença — como no campo da educação escolar, onde as dificuldades de aprendizagem dos alunos, os modos de relação com os colegas, as condutas de indisciplina na relação entre alunos e instituição escolar, dentre outras questões, passam a ser encaradas como patologias individuais, transtorno disso, transtorno daquilo, e deixam de ser vistas como produções sociais e questões de poder e resistência.

Na conexão entre estes dois processos de biomedicalização, no campo do gênero e da sexualidade e no campo das relações escolares, temos ainda muito o que pesquisar.

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