Edição 463 | 20 Abril 2015

Fazendo gênero. Nossos corpos, nossas regras

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Andriolli Costa

Desde 2013 ele passou a se apresentar como Eric. O nome ele escolheu, mas sua identidade de homem trans nunca foi alvo de escolha, mas de descoberta e aceitação. Os familiares, na medida do possível, foram compreensivos. Ainda hoje escorregam em artigos ou pronomes de tratamento adequados. No entanto, comemora, ao menos não o haviam expulsado de casa.
de Eric Seger expõe e desmistifica a corporalidade do homem trans. Foto: Arquivo Pessoal

“Eles entenderiam melhor se eu assumisse a narrativa de que eu era um homem em corpo de mulher. Se dissesse que estava no corpo errado.” No entanto, isso não era verdade para Eric. Nunca foi. “Meu corpo nunca esteve errado. Eu sempre fui homem, mesmo que não me parecesse com o que se espera de um homem”, esclarece. Eric Seger, aos 28 anos, nos lembra que a questão de gênero transcende a questão biológica.

Maria Fernanda faz do corpo uma mensagem política de autoafirmação. Ostenta com orgulho os pelos debaixo do braço, cultivados ao longo de quase dois anos. Uma lembrança para a sociedade — e para ela mesma — de que não precisa seguir padrões de qualquer tipo para ser mais ou menos mulher. Simpatizante das vertentes mais radicais do feminismo, concorda com a ideia de que o homem (como classe, não indivíduo) é um inimigo. Uma relação semelhante à aproximação desconfiada entre patrão e empregado, que não perde de vista a estrutura de dominação.

“Não é questão de ódio, mas de medo. Eu me relaciono sexualmente e afetivamente com homens, sou amiga deles, mas em última instância eles ainda são homens”, lembra, mencionando casos de violência e abuso que ocorrem todos os dias. O esclarecimento, entretanto, não a livrou do sofrimento. Por diversas vezes esteve em relacionamentos abusivos, marcados por chantagens e jogos emocionais. 

“Quando vivemos essas situações, não percebemos o abuso. Para chegar ao ponto de admitir isso em uma entrevista, foi preciso primeiro admitir para mim mesma”, assinala. Assim como ela, uma em cada três mulheres em todo o mundo sofre violência por parte de seus parceiros, segundo a ONU. Militantes ou não. Maria Fernanda Salaberry, também aos 28 anos, nos lembra que gênero é um campo de enfrentamento. 

Pouco depois de iniciar seu processo de transição, já com mais de 30 anos de idade, Luisa entrou em depressão e esteve reclusa por longos períodos. Tinha medo da reação que as pessoas viriam a ter. Familiares, conhecidos da rua, colegas de trabalho, todos pareciam pressioná-la. Antes de qualquer cirurgia a dignidade começou a retornar a sua vida com a alteração de seu nome social. Os implantes de silicone e a redesignação sexual, por sua vez, vieram para torná-la uma pessoa completa. Não era uma “troca de sexo”, como se diz no popular. Era uma readequação. Algo que ela mesma pôde atestar juridicamente, ao dar entrada, como advogada, em seu próprio pedido de alteração documental.

“Eu queria me olhar no espelho e me ver com uma aparência feminina. Antes disso, meu subconsciente parecia bloquear qualquer relacionamento que eu pudesse ter.” A vontade de estar com homens veio apenas com a transição pronta. Não com a cirurgia feita, mas com a identidade feminina formada. Luisa nunca se sentiu gay, mas uma mulher (trans) heterossexual. Essa não é a regra, e há diversos casos de gays e lésbicas entre os transgêneros, o que gera ainda mais incompreensão. Luisa Helena Stern, 48 anos, nos lembra que sexualidade e identidade de gênero são tópicos totalmente independentes.

Quando o filho de Fabiane nasceu, seu primeiro brinquedo foi uma bonequinha negra. O pai quis protestar — mais por boneca, que por negra. Em nada adiantou. Não seriam coisas tão pequenas que determinariam a masculinidade de seu filho, ela sabia. Quem, afinal, havia inventado que aquele era um brinquedo só de meninas? Para Fabiane, categorizar o mundo entre coisas de menino e de menina nunca fez muito sentido. Ainda assim, mesmo na idade adulta, as oportunidades continuavam a seguir essa lógica. Para ela, diziam, bastava o magistério. Era uma atividade adequada para uma mulher, e ela estaria cercada de crianças e de outras senhoras. Ignorou. Formou-se em Direito.

Longe de escritórios de advocacia ou de estágios no Ministério Público, ela encontrou seu lugar logo cedo em uma ONG de empoderamento feminino, a Themis, e nela permanece atuando até hoje. Para ela, ser mulher nunca se reduz à maternagem, mas a consciência adquirida acabou incorporada em sua vida. Algo que transparece na educação de seu filho, com 10 anos de idade. “Esses dias mesmo ele pegou meu sutiã do chão, colocou e começou a brincar.” Ela se divertiu com a cena, e entrou na onda. “É, tá faltando um pouco de peito aí, hein?” Fabiane Simioni, 35, recorda que aquilo que consideramos masculino ou feminino é construído com base em convenções sociais.

 

Vivências de gênero

Eric, Maria Fernanda, Luisa e Fabiane nos lembram de muitas coisas, mas a principal delas é de que ainda há muita confusão e desinformação envolvendo questões de gênero na nossa sociedade. Conforme o avanço das décadas, o antigo adágio de que a anatomia é o destino vem paulatinamente caindo por terra. Tanto que, para evitar uma distinção baseada entre pessoas trans e pessoas “normais”, utiliza-se o termo cissexual para se referir àqueles que se identificam com o gênero ao qual foram impostos. Mas, se gênero não é sinônimo de sexo biológico, e muito menos está ligado à orientação sexual, como é possível defini-lo? 

O psicólogo cis Lucas Goulart, militante da ONG Somos e membro do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero UFRGS — o NUPSEX, esclarece que gênero é uma construção social. Ou seja, para além do macho e da fêmea, é a forma como os papéis de masculino e feminino são atribuídos, transformando os sujeitos em homens e mulheres. A orientação sexual, por outro lado, diz respeito ao interesse sexual por pessoas. E ainda que muitas vezes haja relação entre os dois termos, aquele que se identifica como gay não deseja ser uma mulher. O fato indica apenas que ele é um homem gay.  

Basta olhar o cotidiano para ver como as questões de gênero estão presentes desde o nascimento até o fim da vida. Não se trata apenas de escolher um enxoval azul ou rosa para os bebês, ou de comprar carrinhos para um e panelinhas para o outro. Parte desde a decisão de ter ou não uma criança, e as consequências disso. “Volta e meia aparece no jornal uma matéria sobre um pai ‘herói’ que criou sozinho um filho após o abandono da mãe”, resgata Lucas. “Mas se a mídia escrevesse uma matéria para cada mãe solteira que faz o mesmo, não haveria jornal para dar conta.”

Entretanto, o assunto não se restringe às questões do feminino. O garoto proibido de fazer dança ou cursar uma faculdade de artes plásticas por ser coisa de menina; o rapaz que se fecha com os amigos para não parecer emotivo e afeminado; ou a pessoa trans que desenvolve transtornos psicológicos por temer a reação dos pais, todas essas são questões de gênero, que se inserem em uma lógica fundamentalmente machista e patriarcal. 

Tal lógica é desgastante, e afeta a todos. Mesmo os homens, ainda que sejam seus maiores beneficiados. Deles, a sociedade exige demonstrações de força e resistência que não combinam com cuidados com o corpo ou emotividade. Segundo o Centro de Referência da Saúde do Homem, de São Paulo, a cada mês cerca de 60% dos pacientes procuram o local já apresentando enfermidades em estado avançado. 

Ser o “homem da casa” é uma responsabilidade adoecedora. Contudo, é sempre importante relembrar que os homens — ainda que possam sofrer com restrições em relação a seu gênero — são ainda privilegiados socialmente, cabendo a eles questionar esses privilégios. Discutir questões de gênero não é apenas retirar privilégios de um grupo, mas é libertar a todos.

 

Feminismo e enfrentamento

Se gênero é um campo de enfrentamento, a era da internet e das redes sociais torna esses embates mais públicos e frequentes. De maneira que, muitas vezes, o assunto pode parecer ultrapassado e o discurso “vitimista”. No entanto, não é preciso muito para perceber que ainda há tanto a ser discutido. E nem mesmo os direitos já conquistados com anos de luta são pontos pacíficos. 

Em dezembro de 2014, o deputado federal do PP-RJ, Jair Bolsonaro, defendeu o pagamento de salários menores para mulheres, frente ao iminente risco de gravidez.  “Poxa, essa mulher daqui a pouco engravida e fica seis meses de licença-maternidade. Quem que vai pagar a conta? O empregador. Quando ela voltar, vai ter mais um mês de férias. Ou seja, ela trabalhou cinco meses em um ano.”

De modo parecido, quando a passista Fabiana Vilela desfilou grávida este ano, no carnaval de São Paulo, não faltaram aqueles para botar em xeque a necessidade de dar assento no ônibus ou de deixar a gestante passar na fila do banco. O patriarcado tem dificuldades em abrir mão de qualquer direito, por mais simples que seja.

Fabiane Simioni, advogada e ativista, defende que é para a resolução de situações como essa que surgem os movimentos feministas. Feminismo não é o contrário de machismo, mas um processo político de transformação da sociedade. “É a ideia radical de que homens e mulheres devem ter direitos iguais, como diz o chavão.” Fabiane não nega as diferenças entre os sexos, mas luta para que estas não se reflitam em hierarquias e posições desiguais de poder. E, no mundo do trabalho, a gravidez é um dos exemplos mais evidentes deste tratamento desigual. 

“Ainda hoje temos mulheres que são estimuladas dentro da empresa a programarem a maternidade, em uma política invasiva e coercitiva”, expõe. É o caso de uma empresa de telemarketing de Juiz de Fora, que estabeleceu uma escala de gravidez para suas funcionárias.  Quem quisesse ter filhos, deveria obedecer ao período estabelecido pelo local. Na época, o ministro Claudio Brandão, do Tribunal Superior do Trabalho, se posicionou. “O empregador tem o controle do trabalho do empregado, mas não da sua intimidade, da sua privacidade. O empregado não deixa de ser cidadão quando vai trabalhar.”

É por essas e outras que a advogada, que também dá aula em um curso de aperfeiçoamento em Direitos Humanos na UFRGS, sempre chama a atenção de seus alunos para essas temáticas. No entanto, ela deixa claro: ninguém precisa virar ativista ou feminista depois de sua disciplina. “Ainda assim, para entender o feminismo, é preciso fazer um exercício de alteridade. O rechaço a priori é ruim para todos. Ouvir essa vivência pode ser libertador para quem consegue dar o primeiro passo.” 

Um processo natural para o homem que simpatiza com a causa das mulheres é buscar o engajamento nos movimentos feministas. Foi o que fez o publicitário cissexual Lucas Rodrigues Koehler, antes de compreender seu papel nesta luta. “Eu sou branco, hétero e homem. Eu não posso assumir o protagonismo desta causa, mas posso ser um apoiador.” A reflexão amadurecida só veio com o passar do tempo. No início, questionava o porquê certos grupos eram tão contrários à participação do homem no movimento. Mais do que isso, tentava dizer para as próprias mulheres o que deveria ser o feminismo e como agir. A paciência e a empatia foram fundamentais para compreender que a melhor forma de ajudar era apoiar de fora. Hoje, faz o papel contrário. É ele quem explica a outros homens o modo adequado de apoiar o movimento. 

“A energia que as mulheres gastam explicando para os homens o que eles fazem de errado poderia ser muito melhor empregada empoderando mais mulheres”, propõe Fabiane. Na capa do Facebook da ativista Maria Fernanda Salaberry, uma assertiva parece pôr um ponto final na ideia: “Ninguém pergunta por que os patrões não fazem parte do sindicato dos trabalhadores. Então, por que questionar o motivo de os homens não fazerem parte do feminismo?”.

 

Relações de poder

Pensar questões de gênero não é simplesmente reconhecer as diferenças, mas identificar a disparidade das relações de poder. É nesse sentido que se diz que este é um campo de constante enfrentamento. No entanto, para a publicitária e ativista Maria Fernanda Salaberry, é mais que isso. “Gênero não é uma guerra. Guerra é quando os dois lados atacam. Gênero é um massacre.” Ao seu lado estão os dados. No Brasil, a cada 10 minutos uma pessoa é estuprada, conforme o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Outra pesquisa, do IPEA, aponta que 88% das vítimas de estupro no país são do sexo feminino. 

Nos grupos feministas, é comum a utilização do termo “sororidade”. Diz respeito à relação de fraternidade e solidariedade que deve existir entre todas as mulheres. Com base nisso, Maria Fernanda pontua: “Certa vez ouvi outras feministas dizendo que sororidade é mostrar para as mulheres que elas podem conviver bem com os homens. Não! Dizer isso é uma irresponsabilidade. Existe um risco efetivo”. 

Para ela, a questão é levar em conta a socialização. A sociedade forma os homens para dominar e as mulheres para obedecer. Assim, mesmo aquele que não tem o desejo de oprimir acaba o fazendo sem perceber. “Você não pode chegar até a Faixa de Gaza e dizer que todos podem parar de se preocupar e serem amigos, sabendo que os exércitos estão a postos.”

Maria Fernanda milita por um feminismo radical. “Aquele que questiona o patriarcado desde as raízes”, explica ela. No entanto, ainda que sua denominação não derive de “radicalismo”, certas posturas mais extremas impactam mesmo dentro do próprio feminismo. “Muitas dizem que o feminismo radical é muito teórico. Mas não é a teoria que incomoda, é a postura de vida.”

A discussão, segundo ela, diz respeito à hierarquia e à exploração. “A sociedade forma as mulheres para executarem tarefas para os homens. Não só tarefa de educar os filhos, mas de fazer sexo com o cara.” Certas correntes, inclusive, afirmam que qualquer tipo de penetração é uma violência. Propõe então o lesbianismo político, para marcar de vez o afastamento dos homens. Maria Fernanda não segue essa linha, e continua a se relacionar com homens. Ainda assim, reconhece: “O patriarcado é o mais antigo sistema de exploração de todos os tempos. E ele só funciona até hoje porque as vítimas têm uma relação afetiva com seus exploradores”.

 

Questão de identidade

Ícone do feminismo do século XX, Simone de Beauvoir apontava em um famoso aforismo que não se nasce mulher, torna-se uma. Ao dizer isso, ela se referia ao modo como a sociedade molda o indivíduo dentro do que se espera dele. Tais expectativas mudam com as décadas, e podem ir de uma “gentil e submissa dona de casa” até a mulher independente e empreendedora dos dias de hoje — mas de quem ainda se cobra apartamento limpo e um filho bem educado. Revisões do pensamento de Beauvoir, propostos pela teoria queer, exploram como esta afirmação é válida para todos os corpos e sujeitos.

“De acordo com autores da psicologia do desenvolvimento, é a partir dos quatro anos que a criança passa a ter noção do gênero que lhe é estabelecido. Que existem aqueles tidos como homens, os tidos como mulheres e que cada um exerce papéis diferentes na sociedade”, esclarece Lucas Goulart. E é normalmente nessa idade, também, que a criança começa a perceber as possíveis inadequações. Assim, chegamos à questão de identidade de gênero — a forma como a própria pessoa se reconhece diante da socialização que recebe.

Foi assim para Luisa Stern, da ONG Igualdade. “Eu sonhava em ser mulher quando crescesse. Já me imaginava mulher.” Ela conta que desde a infância sentia sua identidade feminina sendo formada, ainda que para conseguir processar e compreender o que acontecia fosse preciso bem mais tempo. Quando a decisão foi tomada, no entanto, ela a assumiu sozinha e em silêncio. Não contou aos amigos, colegas ou familiares — nem mesmo à sobrinha, com quem morava na época. “Tem a ver com a questão da minha autonomia. Falar com alguém seria como se eu estivesse pedindo permissão para ser assim.” Não era o caso. Luisa é o que sempre foi. E agora, tanto por dentro quanto por fora.

Eric Seger de Camargo foi cursar Educação Física, na UFRGS, para se entender. “Eu fui buscar uma verdade do corpo, que para mim não fechava. Porque havia uma verdade por trás do meu próprio corpo que eu não conseguia entender.” Não encontrou. Ao menos não ali. O curso apenas reforçou estereótipos de masculino e feminino. Frustrado, buscou outros horizontes. Em uma disciplina de Psicanálise e Arte, escreveu um artigo sobre arte queer, inspirado no vídeo The Gender Obsolescence. Nele, homens e mulheres cis e trans desmascaravam-se perante a sociedade. “A pessoa que entregou esse artigo nunca mais voltou. No outro semestre, já pedi que os professores alterassem meu nome na lista para Eric”, relata. 

“Para que a pessoa trans possa se desenvolver, é fundamental ter um grupo de pessoas que acreditam em ti e te legitimam socialmente”, reflete. Neste sentido, ele encontrou todo o apoio no NUPSEX, onde atualmente é bolsista de Iniciação Científica. E esta legitimação se dá em um nível muito maior do que o de simplesmente utilizar a colocação pronominal adequada. 

“Quando eu digo que quero ser tratado no masculino, espero que as pessoas me tratem como homem. E eu sinto a diferença quando não é para valer. A pessoa me trata de maneira adequada, mas na real parece que está falando com Napoleão Bonaparte”, confidencia Eric. “Algo como: Ah, você é Napoleão? Bom, se você está dizendo eu acredito...”

 

Disforia de gênero

Para conseguir os tratamentos hormonais ou o encaminhamento para cirurgias pelo SUS, as pessoas trans no Brasil devem passar por atendimento em uma das quatro Unidades de Atenção Especializadas credenciadas. O Hospital das Clínicas de Goiânia (GO) — cujo projeto está em vias de ser encerrado, o Hospital das Clínicas da FMUSP (SP), o Hospital Universitário Pedro Ernesto (RJ) e o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RS). Neles, dependendo da disponibilidade do local, é possível realizar não apenas a hormonioterapia e a redesignação sexual, mas também a tireoplastia — para feminilização da voz — e a mamoplastia masculinizadora para os seios. 

Em Porto Alegre, esse tipo de trabalho no HC é realizado dentro do Programa de Transtorno de Identidade de Gênero, o Protig. O nome já está sendo mudado, mas ainda segue a antiga forma de se relacionar com a transexualidade — como um transtorno, uma parafilia, da mesma forma que a homossexualidade foi tratada durante muitas décadas. O novo Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais norte-americano - DSM-5, traz mudanças a esta visão, propondo o termo “Disforia de gênero”. As mudanças vêm ocorrendo, mas de forma lenta.

 “Cada vez mais, na psicologia, estamos vendo a questão da identidade como sendo autocentrada”, explica Lucas. “Ou seja, se a pessoa se coloca como homem ou mulher, é isso o que faz da pessoa homem, mulher, ou pessoa não binária.” Aquele que deseja se submeter ao processo transexualizador, ou mesmo solicitar juridicamente a mudança de seu nome social, deve apresentar um laudo psicológico atestando sua “disforia”.

Lucas Goulart atua constantemente nesta área, graças ao projeto Direito à Identidade: Viva seu Nome — uma parceria com o NUPSEX, a Igualdade e o G8-Generalizando, grupo de assessoria jurídica da UFRGS. Ele relata que seu parecer não é psicologizante, e explicamos como a pessoa construiu sua vida daquela maneira e como a mudança de nome pode minimizar a situação de vulnerabilidade. Ainda assim, reconhece que não é a melhor maneira. “Nenhum cis precisa passar por alguma avaliação para atestar ser homem ou mulher”, problematiza. “Nós tentamos não patologizar, mas ainda é tratado como doença. A melhor solução seria não necessitar de parecer algum.” A solução, no entanto, não parece estar próxima. Isto porque, com exceção de casos específicos, com o SUS não é possível realizar cirurgias plásticas por motivo estético. Por isso, certa patologização acaba sendo necessária.

Mas nem todos os pareceres são assim. Para a realização da cirurgia de redesignação sexual pelo SUS, o órgão exige pelo menos dois anos de tratamento psicológico. Correm, entre os pacientes desses centros, críticas sobre a exigência de um comportamento idealizado de homens e mulheres por parte dos pacientes. “Em alguns hospitais de referência, a equipe médica exige que a mulher trans tenha aquele ar de Amélia, de dona de casa, enquanto aqui fora a mulherada quer se livrar deste estereótipo”, relata Luisa. Muitas vezes se cobra da mulher trans até mesmo um jeito de sentar adequado, como se fossem estes signos capazes de dizer o que é ou não ser mulher.

Em Porto Alegre, segundo Eric, o clima poderia ser mais acolhedor. “Não é como se eles estivessem te ouvindo, mas te interrogando. Eles sempre ficam perguntando sobre a sua infância, como se tentassem descobrir o que houve de errado.” Eric entende que a prática vem dos protocolos da psiquiatria, e não dos profissionais em si, mas sugere que estas práticas sejam desafiadas.

Outras críticas dizem respeito ainda à cobrança por uma heteronormatividade. Eric conta que se relaciona com homens e mulheres, mas tem uma preferência. “Eu sou mais gay, na real, mas eu digo que sou bi.” Eric já relatou a uma assistente social sua preferência. No entanto, quando outra residente preenchia seu questionário, perguntou quando havia sido sua última relação sexual com uma mulher. “Com mulher?”, respondeu, deixando o subtexto claro. Ela confirmou. “Não passava pela cabeça dela outra possibilidade. Se eu digo que sou homem, então tem que ser com meninas, né?”

Do contato que já teve com outros pacientes, ouviu que o teatro é a melhor solução. Sente-se, por vezes, como se aqueles que seguem a cartilha do homem ou da mulher ficam mais próximos da cirurgia. “É uma coisa meio Big Brother, meio Jogos Mortais”, sintetiza. 

A psicóloga e pesquisadora do Protig, Bianca Machado Borba Soll, relata que muitas vezes os pacientes já chegam ao Programa com um discurso pronto. “Eles leem na internet que para fazer a cirurgia é preciso agir de tal jeito, mas aqui nós seguimos critérios diagnósticos. Nenhum critério diz que é preciso ser heteronormativo, mas diz em relação à identidade.” 

Segundo ela, esta triagem é importante para não encaminhar para a cirurgia alguém que manifesta insatisfação com o corpo, mas que em verdade não deseja a redesignação do sexo. Pode ser fruto de um surto, por exemplo. “Os critérios falam de um desconforto com suas características sexuais, do desejo de ter características de outro sexo biológico.” Algo que seja realmente grande, a ponto de a pessoa decidir se submeter a uma cirurgia de risco. “Às vezes há quem nos procure para ‘retirar o pênis’, mas relata que ainda sente prazer com ele, e o utiliza para relações sexuais. Então, será que a intervenção cirúrgica é realmente o melhor caminho?”

Para Lucas Goulart, nossa sociedade ainda tem uma visão muito limitada e binária de gênero e sexualidade que é ligada aos genitais. “E isso faz com que essas pessoas não consigam acessar os seus direitos, seja no dia a dia, seja no mercado de trabalho.” Isso se comprova ao observar as estimativas. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais - ANTRA, 90% das travestis e transexuais no Brasil estão no mercado da prostituição. 

“Uma boa iniciativa se vê em São Paulo, onde o governo está oferecendo bolsa para travestis estudarem. Afinal, muitas precisam largar a escola porque são expulsas de casa e precisam trabalhar. E como não têm oportunidades, a prostituição acaba se tornando o único caminho”, problematiza Lucas. Para ele, as políticas públicas brasileiras estão avançando — mesmo com a eleição do congresso mais conservador das últimas décadas. “Mas, é claro, enquanto pessoas estiverem morrendo, os diálogos sempre serão muito vagarosos.”

 

Linhas cruzadas

Neste campo tão movediço, corpos e sexualidade se misturam na construção da identidade de gênero que problematiza os binarismos tradicionais. Problematizam, mas não rompem com eles, pois ainda há a diferenciação entre masculino e feminino. No entanto, existem aqueles que alegam se identificar com os dois gêneros. Ou então com gênero algum. Contra o binarismo, vertentes discutem o rompimento da barreira homem e mulher. Pensar em indivíduos e seres humanos, sem divisões estanques.

O Centro de Equidade de Gênero da Universidade da Califórnia, em Berkeley, propõe: “Uma pessoa cuja identidade de gênero não é nem homem nem mulher está entre os sexos ou além, ou é uma combinação de gêneros”. E conclui: “Algumas pessoas não binárias se colocam sob o guarda-chuva dos transgêneros, enquanto outras não”. O reconhecimento do gênero neutro vem aos poucos. Em países como Alemanha e Austrália já é possível registrar uma criança sem especificar o sexo entre masculino e feminino. No Facebook da Argentina, o usuário pode se identificar entre mais de 50 opções de gênero e orientação sexual.

Maria Fernanda Salaberry questiona tamanha diversidade. Para ela, por vezes, é uma questão de exagero. “Você pode deixar que as pessoas transitem entre dois polos, ou acima, ou dos lados. E aí se você se diz abacaxi, você é abacaxi.” No entanto, lembra ela, “propor a extinção das divisões binárias não discute a hierarquia desses lugares”. Ela também se preocupa com as questões práticas. Como fica a questão da identidade de gênero em um hospital? Ou em um presídio?

Eric, ainda que se reconheça como binário, compreende como esta divisão pode não fazer sentido para algumas pessoas. “Tem gente em que o selo do gênero simplesmente não gruda.” Para ele, é preciso estar aberto para compreender as singularidades de cada um. “Alguém que tem o privilégio de não precisar dizer o tempo todo o que é, não pode repetir certas violências”, defende. Para ele, “é uma agressão fortíssima dizer que uma pessoa não é aquilo que ela está dizendo”.

Esse tipo de violência é frequentemente denunciado por homens e mulheres trans, especialmente no que envolve as chamadas TERFS — sigla em inglês para Trans-Exclusionary Radical Feminists. São grupos dentro de vertentes radicais que excluem, agridem e silenciam mulheres trans. Em dezembro passado, por exemplo, diversas ofensas foram pichadas nos banheiros femininos da USP. As mensagens ameaçavam: “Vamos cortar sua pica fora”, e marcavam posição: “Não vamos deixar os machos ocuparem nossos espaços”. Uma das mais simbólicas dizia: “Ser mulher não é usar nossos sapatos”.

Para Eric, há muito a se perder na exclusão das mulheres trans dos movimentos feministas. “Se elas dessem voz a estas pessoas, poderiam entender o que ocorre com uma mulher quando esta sofre uma socialização masculina, e ainda assim abraça a vida de mulher”, propõe. A mesma rusga destes grupos, no entanto, não é vista em relação aos homens trans. Com estes o problema é outro. “Quando elas dizem que sua sororidade não está com as mulheres trans, mas está com os homens trans, é como eu falei sobre Napoleão. Na verdade, elas continuam nos vendo como mulheres.” Esta é a luta de Eric, a do reconhecimento. 

- E o que é ser homem, para você?

Eric pensa um pouco. Encara a mesa do restaurante, e alisa o queixo sob a barba escanhoada na forma de cavanhaque. Por fim, responde.

“Eu não consigo dizer o que é ser homem”, reflete. “Eu apenas sei.” ■

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