Edição 461 | 23 Março 2015

A Filosofia como forma de vida

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Castor Bartolomé Ruiz

Pierre Hadot, a filosofia antiga e os exercícios (askesis) do espírito

Castor Bartolomé Ruiz é professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos. É graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003); Os labirintos do poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escritos, 2004) e As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006).

Eis o artigo.

A filosofia moderna, como o resto das áreas de conhecimento, sofreu o impacto da segmentação dos saberes. A ela foi atribuído um segmento específico do saber (a especulação conceitual) e dela foram retiradas outras formas de fazer filosofia que eram inerentes às culturas clássicas. Entre as dimensões podadas da filosofia moderna interessa-nos analisar a estreita relação da filosofia antiga com a forma-de-vida. Ou seja, a questão que se colocava era como a filosofia deveria ajudar a criar uma forma de vida regida por princípios de conhecimento (gnose) apropriados. Esta questão era, na verdade, o objetivo principal da filosofia, ao menos desde Sócrates, século V a.C. até a hegemonia da cultura cristã, século V d.C.

Foram mais de mil anos em que as diversas escolas filosóficas se autocompreendiam como portadoras da missão de construir uma forma de vida própria que se diferenciasse dos outros modos de vida ao oferecer a possibilidade de conseguir a eudaumonia (felicidade) ou, ao menos, diminuir o sofrimento e dar sentido à existência. Sócrates foi o grande ícone deste modo de entender a filosofia. Sua vida esteve dedicada a fazer da filosofia um estilo de vida e ajudar (Paideia) os jovens a construírem um modo de vida pautado pelos princípios filosóficos do bem, do verdadeiro e do belo. O objetivo da filosofia, para Sócrates, não era saber muito ou argumentar melhor, senão saber e argumentar para viver. O estilo de vida, e não o saber, tornava a pessoa um verdadeiro filósofo. O verdadeiro filósofo se distinguia por sua forma de vida.

O modelo socrático da filosofia como forma de vida perdurou, como dizíamos, até o século V d.C. As diversas escolas filosóficas que se sucederam e permaneceram ao longo dos séculos: platônicos, neoplatônicos, aristotélicos, estoicos, epicuristas, cínicos e céticos, divergiam entre si no conteúdo teórico e no método do conhecimento, mas todas elas coincidiam num ponto: a filosofia tem por objetivo construir uma forma-de-vida. Cada escola tinha um ideal de forma-de-vida a ser perseguido e para o qual se direcionava todo o conhecimento desde a física à ontologia, da retórica à lógica, passando pela ética e a política. Os métodos e o ideal da forma de vida eram diferentes, mas todas as variantes de forma de vida propostas tinham outro ponto em comum: conseguir a eudaimonia (felicidade). Para os aristotélicos o ideal de vida era atingir o bios teoreticos (vida contemplativa), para os estoicos era conseguir a ataraxia (não perturbar-se, permanecer impassível, não sofrer) através do controle do hegemonikon (princípio diretor da vontade); para os epicuristas a felicidade se conseguia também atingindo a ataraxia, porém o meio proposto era o desfrute inteligente, comedido e harmonioso dos prazeres da vida; os céticos também propunham a ataraxia como meta da forma de vida, para eles se atingia através da suspensão do juízo, pois nada é verdadeiro ou falso, tudo é relativo. Para os cínicos, o ideal da filosofia deve ser uma forma de vida segundo a natureza, despojando-se de todos os artifícios sociais que escravizam o ser humano. Seu objetivo era conseguir a autarkeia (autonomia), ser livres ao máximo dos entraves sociais e depender o mínimo das necessidades naturais praticando a apatheia (suspensão dos sentimentos).

Por diversas causas que neste momento não podemos desenvolver, esse estreito vínculo da filosofia com a criação de uma forma de vida foi esquecido ou deixado de lado como algo muito secundário, na filosofia moderna. A bem da verdade, ao longo da história da filosofia, muitos grandes filósofos dedicaram parte de suas reflexões a esta questão, mas quase sempre como um apêndice menor submetido ao objetivo maior que era o aparato conceitual. Para os filósofos clássicos, durante mais de mil anos, a relação era inversa. O ingente aparato conceitual das diversas escolas filosóficas tinha por objetivo implementar uma forma-de-vida. O desenvolvimento argumentativo da ontologia, da física, da cosmologia, da lógica, entre outras, só se entendia como saberes auxiliares da forma de vida. Por isso, todas elas enfatizavam a constituição do ethos como objetivo da filosofia e a criação da polis como uma forma coletiva de vida.

Na filosofia contemporânea, alguns pensadores, por diversos motivos, voltaram seu olhar para esta questão esquecida ou mutilada da filosofia,  qual seja a responsabilidade por criar uma forma de vida. Entre estes pensadores destacamos as obras de Pierre Hadot, Michel Foucault e Giorgio Agamben. Cada um deles voltou-se sobre a problemática da filosofia como forma-de-vida e para a ética do “cuidado de si” (epimeleia heatou). Neste texto propomos apresentar alguns elementos da obra de Hadot sobre a filosofia como forma de vida.

 

Pierre Hadot (1922-2010) foi um filósofo que dedicou a maior parte de suas investigações aos estudos da filosofia antiga com ênfase nos estoicismo, epicurismo e no platonismo. A originalidade dos estudos de Hadot reside em que este autor não se limitou a expor de forma erudita o pensamento das escolas antigas, mas mostrou com insistência e agudeza a inextricável relação que existia na antiguidade entre a filosofia e a vida, ao extremo de sustentar a tese de que o objetivo de toda escola filosófica era criar uma forma de vida. Fora desse objetivo, a filosofia perdia seu sentido e se transformava em outra coisa, num saber especulativo qualquer, mas que não poderia ser denominado de filosofia. 

Hadot mostrou que a filosofia era uma forma de vida e que para atingir o ideal proposto era necessário gnosis correta, techne condizente e uma askesis apropriada. As pesquisas de Hadot tiveram uma grande influência no pensamento de Foucault, principalmente na guinada que este autor realizou na década de 1980 para o estudo da ética do cuidado de si na filosofia antiga. Atualmente, Agamben vem publicando uma série de obras com o tema central da forma-de-vida, embora nelas não faz referência a Hadot. Mesmo assim se percebe que Agamben dá continuidade às pesquisas de Foucault em âmbitos que este autor não explorou tanto, mais concretamente a noção de forma-de-vida no cristianismo primitivo e até medieval. Para Foucault e Agamben as pesquisas sobre “o cuidado de si” e “a forma-de-vida” se vinculam à política, concretamente aos modos de resistência contra os dispositivos biopolíticos de controle social. A prática ética do “cuidado de si”, para Foucault, é uma referência para pensar a constituição histórica da autonomia no seio dos dispositivos biopolíticos de controle. As genealogias de algumas práticas que criaram uma forma-de-vida, em Agamben, sinalizam a possibilidade de uma outra política ou da “política que vem”, aquela que não mais captura a vida como elemento útil, pois a vida consegue criar sua própria forma-de-vida, por isso talvez uma forma impolítica.

Nos diversos enfoques destes três filósofos contemporâneos sobre a filosofia e a forma de vida há alguns aspectos comuns, entre eles o estudo de algumas técnicas específicas que os diversos saberes filosóficos e práticas utilizaram para criar uma forma de vida. A filosofia, para conseguir constituir uma forma de vida, necessita criar e utilizar corretamente algumas techne e realizar frequente e corretamente determinadas askesis. Técnicas como os hypomnémata (escritos de si, diários), a melete (meditação), os retiros, os aconselhamentos com um outro, a direção de consciência, a confissão, os jejuns, viver despojado, austeridade de vida, enkrateia (domínio de si) em situações limite, entre outras, eram technes utilizadas pelas diversas escolas filosóficas, cada uma de um modo diverso, para conseguir criar uma forma de vida específica. O sentido da arete (virtude) estava vinculado à consecução da excelência (arete) nas habilidades necessárias para criar em si mesmo uma forma de vida. As hexis (habilidades) requeridas pela arete só poderiam ser adquiridas através de uma askesis persistente e bem direcionada.

Hadot mostrou em seus estudos que a proliferação de askesis ensinadas e praticadas pelas várias escolas filosóficas tinha por objetivo atingir a forma de vida desejada. Entre as askesis praticadas, Hadot destaca a melhete (meditação) e os exercícios espirituais. O ponto nevrálgico da filosofia antiga não era o conhecimento, senão a constituição do “eu”. A ênfase não estava na epistemologia ou na lógica, pois a filosofia era um processo de conversão que afetava a totalidade da existência. Nesse processo é possível passar das trevas da caverna para a luz da consciência de si, ou da paz interior. O conjunto das escolas filosóficas entendiam que o elemento que a filosofia deveria ajudar a superar ou neutralizar para criar uma forma de vida é o sofrimento. Todas elas compartilhavam a convicção de que o sofrimento humano se deriva das paixões, entendidas estas como desejos desordenados e temores exagerados. A paixão desordenada era o vício. Em qualquer caso, toda paixão e qualquer vício operam arrastando a vontade humana consigo sem que esta tenha controle sobre o que sente ou deseja. Uma vontade acorrentada pelo medo e a desordem é uma vontade escrava de si mesma. Sócrates afirmava que não tem maior escravo que aquele que é escravo de si, de suas paixões e vícios. A felicidade deverá ser também uma liberdade, uma libertação dos medos e das desordens que arrastam a própria vontade para a caverna do sofrimento. Como se libertar dessas correntes da natureza? Como dominar aquilo que nos domina interiormente? Como adquirir o poder sobre si mesmo? Como ser livre de tudo que nos atemoriza?

 

II 

Estas questões eram a coluna vertebral de toda a filosofia antiga, por isso a filosofia aparece, primeiramente, como uma “terapia das paixões”. Cada escola tem suas técnicas, seus exercícios e seu conhecimento específico, mas todas sintonizam no objetivo principal da filosofia: transformar de modo profundo a forma de ser do sujeito. Neste contexto, Hadot analisa e destaca a importância que as diversas escolas davam aos exercícios do espírito como técnica filosófica que ajuda o sujeito a obter a enkrateia, domínio de si e conseguir libertar-se daquilo que o domina. Tomando como exemplo os estoicos, Hadot mostra como esta forma filosófica entende que a infelicidade deriva do anseio que as pessoas têm por obter ou conservar determinados bens, com isso eles se arriscam a não obter ou a perder o que tanto desejam, teimando com isso em evitar males que são inevitáveis. A filosofia, para os estoicos, deve ser um estilo de vida que ajude as pessoas a desejar exclusivamente o bem que se pode obter e evitar o mal que é possível evitar. Para os estoicos, o bem e o mal que dependem exclusivamente de nós é o bem e o mal moral. Esse bem e mal moral se cria no momento da decisão da vontade sobre o sentido que esses acontecimentos têm para o sujeito. As demais coisas escapam à nossa vontade e dependem de outros fatores, por isso elas deveriam ser para nós indiferentes, ou seja, não deveríamos ver nelas nenhuma diferença entre ter ou não ter aceitando-os como parte do anake (destino). Todas as coisas sobre as que não temos controle pertencem ao domínio da natureza. Aquilo sobre o que nós temos pleno controle é o bem e o mal moral que podemos ou não fazer e como eles podem nos afetar. Desejar aquilo sobre o que temos controle e manter-nos indiferentes (ataraxia) sobre o que não depende de nós será, para os estoicos, a chave de uma forma de vida harmoniosa e feliz.

Esta forma de vida proposta pelos estoicos, assim como a das outras escolas, não resulta nada fácil de atingir, para conseguir aproximar-se do ideal da ataraxia utilizam-se diversas techne e askesis, entre elas os exercícios do espírito. Hadot constata que não nos foi conservado nenhum tratado específico a respeito dos exercícios do espírito, porém há inúmeras referências nos tratados à prática desses exercícios nas várias escolas. Fílon de Alexandria (20 a.C.-50 d.C.), filósofo neoplatônico judeu, apresenta uma lista de exercícios da terapia filosófica de inspiração estoico-platônica. Entre eles menciona, numa obra, a prática do estúdio (zetesis), a atenção (prosoche), o domínio de si (enkrateia) e a indiferença com as coisas indiferentes. Num outro texto Fílon menciona as leituras, as meditações (meletai), a terapia das paixões, a rememoração (anamnese) do que faz bem, entre outros.

 

III

Hadot indica que, numa aferição dos diversos textos que nos foram conservados a respeito dos exercícios do espírito na filosofia antiga, poderiam se destacar algumas técnicas e exercícios específicos comuns. O primeiro a prosoche (atenção, vigilância), seria a atitude interior fundamental do estoico. Atenção a si, atenção de si. A pessoa deve estar atenta e vigilante a sua própria consciência e ânimo, numa espécie de permanente tensão (agon) interior. Através desta atitude o filósofo se percebe no instante, percebe o instante e se autocompreende como uma obra que se realiza a cada instante. A vigilância de espírito é a regra de vida fundamental que nos permite discernir aquilo que depende ou não de nós. A vigilância de espírito é essencial para que o filósofo consiga vivenciar as situações concretas com intensidade e perceber com correção o que deve fazer. A prosoche é uma técnica que ajuda o filósofo a viver intensamente o presente, o instante. A atenção ao instante é uma das regras fundamentais dos exercícios espirituais estoicos. Acolher com prosoche o instante presente como único te libera das paixões provocadas por um passado que não mais é e por um futuro que ainda não existe. O passado e o futuro não dependem de nós, o instante presente sim. Ter prosoche para o instante permite ao filósofo ter o domínio do exíguo de sua existência, a do instante. 

Uma outra atitude que Hadot destaca dos estoicos em relação à prosoche é sua abertura para o que os estoicos denominavam de “consciência cósmica”. Há uma relação de cada instante com todo o cosmos. Para os estoicos, nada ocorre por acaso, há um destino (anake) que tudo determina. O destino cósmico tem previsto todos os acontecimentos em seus mínimos detalhes, exceto o agir moral de cada sujeito que depende dele. Nada nem ninguém pode modificar o curso do destino, e os acontecimentos ocorrem como têm que ocorrer, por isso, para os estoicos, a vontade humana deve aprender a acolher com resignação o destino que lhe cabe aprendendo a construir uma liberdade interior que lhe permita não ser atingido dolorosamente pelo que acontece inevitavelmente. A consciência cósmica sinalizada pelos estoicos significa aprender a viver o instante presente como algo dependente de um todo, o cosmos, ao qual pertence, aceitando cada momento como derivação necessária da lei universal do cosmos. A prosoche ao instante possibilita o desenvolvimento da consciência cósmica.

Por último, a prosoche deve ajudar o filósofo a viver com atenção os princípios (dogmata) fundamentais da sua forma de vida. Fala-se de uma “regra vital” (kanon) que o filósofo deve ter sempre a mão para dela lembrar e se servir no discernimento do agir. As escolas estoicas e os epicuristas utilizam-se muito da memorização de alguns princípios fundamentais (dogmata) que o filósofo deverá repetir para si permanentemente: “Não deves te afastar dos princípios (dogmata) quando dormes, nem ao acordar, nem quando comes, bebes ou conversas com outros homens” (Epícteto). É conveniente que cada um formule para si a “regra de vida” do modo mais dinâmico e concreto possível. Para tanto, deve colocar perante seus olhos alguns acontecimentos vitais que deverá contemplar à luz da regra fundamental (kanon). 

 

IV

Há um exercício de memorização (mneme) e de meditação (melete) da regra de vida. O exercício da meditação prepara o filósofo para quando as circunstâncias imprevistas se apresentem. Para enfrentar os sofrimentos que podem acontecer, propunha-se a técnica do premeditatio malorum, antecipar a meditação sobre os males possíveis para, interiormente, apreender sua indiferença e não ser atingido por eles. São males que não dependem de nós e, através da memória, poderemos lembrar as máximas que interiorizaremos na meditação para quando o mal chegar recebê-lo com a indiferença do indiferente porque são acontecimentos que dependem da natureza (cosmos). A meditação exigia que cada manhã se examinasse previamente as atividades que iriam se realizar ao longo do dia para assim poder estabelecer os princípios que deveriam “governá-las”. Pela tarde também se meditará analisando, no detalhe, os acontecimentos vividos extraindo uma espécie de avaliação de resultados das ações do dia. Inclusive os sonhos também deveriam ser objeto da meditação.

A técnica da meditação tinha por objetivo dominar o discurso interior para dele ter controle e torná-lo coerente. O controle e a coerência se conseguiam, para os estoicos, através do princípio simples e universal de “discernir o que depende ou não de nós, entre o que depende de nossa liberdade e o que é da natureza”. A técnica da meditação poderia ser exercitada com vários exercícios (tecnhe), o de diálogo interior consigo mesmo, o diálogo com os outros, a escritura, em especial os hypomnémata (escritos de si), a memorização, a imaginação, etc. Todos os exercícios tinham um objetivo: utilizar a filosofia como terapêutica e através dela promover a transformação do sujeito.

 

V

Outras escolas, como os epicuristas que colocam sua ênfase no desfrute ou prazer inteligente e harmonioso das coisas como meio para atingir a ataraxia, também se utilizavam da técnica dos exercícios do espírito para criar sua forma de vida. Dizia Epicuro (341 – 270 a.C.): “Nossa única preocupação deve ser curar-nos”, entendendo por cura a libertação do espírito das preocupações vitais desnecessárias que lhe impedem ser feliz. Epicuro é o filósofo da alegria de viver, que procura na alegria o segredo da felicidade da vida. Contudo, a alegria está permanentemente ofuscada ou ameaçada pelos diversos tipos de sofrimento. Para Epicuro, o sofrimento das pessoas advém do temor das coisas que não se devem temer e do desejo das coisas que não é preciso desejar. Por isso, a existência humana se consome entre o desconcerto produzido pelos temores injustificados e os desejos insatisfeitos. Essa armadilha priva o ser humano do único prazer que tem a seu alcance, o prazer de ser e viver. Ele diferencia entre desejos naturais e necessários (comer, dormir, etc.), desejos naturais e não necessários (boa casa, boa roupa, boa comida...) e desejos nem naturais nem necessários. A meditação sobre a satisfação mínima dos primeiros, a dispensa absoluta dos últimos e a liberdade máxima dos desejos naturais desnecessários propicia uma boa forma de vida. Meditar sobre a simplicidade e a sabedoria é a chave da filosofia epicurista para criar uma forma de vida alegre que nos liberta do que não pode nos fazer sofrer e nos permite desfrutar do que necessitamos. Ao contrário dos estoicos, os epicuristas exercitavam a memória dos momentos bons, prazerosos e alegres, pois há que meditar a memória do que foi bom para nós, gozando dos prazeres do presente. 

Os epicuristas também ensinavam a meditar exercitando a prosoche (vigilância, atenção), porém à diferença dos estoicos, não propunham viver a tensão do momento presente, que é passageiro, mas viver o presente como um momento único de alegria que podemos desfrutar. Para os epicuristas, a felicidade do instante presente deve traduzir-se em harmonia e tranquilidade interior, e não em tensão (agon) vigilante como propunham os estoicos. A conhecida máxima de Horácio carpe diem sintetiza a forma de vida proposta pelos epicuristas: “Enquanto nos dedicamos a falar o avaro tempo foge. Recolhe hoje (carpe diem) sem confiar em deixá-lo para amanhã!”. Para os epicuristas, contemplar a natureza é um dos prazeres maiores, meditar sua beleza e aprender dela a grandeza da vida que permite desfrutar o prazer de viver. Ainda, para esta escola, outro elemento importante para a meditação é a amizade. A amizade está estreitamente relacionada com a meditação, através dela é possível praticar na comunidade os exercícios de vida, entre eles a confissão das faltas e a correção fraterna. Estes dois exercícios estavam vinculados, nas escolas epicuristas, à técnica da confissão. Para os epicuristas, a amizade é em si mesma o exercício espiritual por excelência.

Apesar das divergências teórico-metodológicas entre as escolas, todas elas pretendiam fazer da filosofia uma forma de vida cujo ideal era a liberdade. Embora também houvesse divergências sobre o sentido da liberdade entre as escolas (por exemplo, os estoicos defendiam um determinismo natural dos acontecimentos e, mesmo assim, seu escopo era conseguir a única liberdade possível: a moral), todas as formas de vida enfatizavam a importância da austeridade libertando-se de dependências desnecessárias. A austeridade propiciava o máximo de liberdade. Talvez foram os cínicos quem mais radicalmente viveram a liberdade através do desprendimento de tudo que não era estritamente necessário. É conhecida a biografia de Diógenes, o cínico, morando num barril, com uma única roupa, sendo visitado pelo imperador Alexandre o grande (discípulo de Aristóteles) e quando o imperador lhe ofereceu dar qualquer coisa que pedir, Diógenes lhe pede para se afastar da sua frente porque estava ocultando a luz e o calor dos raios do sol, algo que ele não poderia lhe dar.

 

VI

Esta breve análise a respeito dos exercícios espirituais na filosofia antiga mostra a relevância que tinha para a filosofia criar uma forma de vida. Filósofo era aquele que se diferenciava pelo modo de vida, e não pelas aulas que dava. Um filósofo antes de professor era mestre, por isso quem decidia participar de uma escola filosófica antes de aluno era discípulo. As escolas filosóficas proliferaram durante séculos pelas principais cidades da magna Grécia e do império romano; elas contribuíram decisivamente para a constituição de formas de subjetivação próprias que marcaram o modo de ser das sociedades greco-romanas durante mais de um milênio. Sem as formas de vida que as escolas filosóficas desenvolveram, as sociedades greco-romanas não seriam as mesmas.

Se toda filosofia é uma filosofia do presente, a aproximação de cada autor à problemática da filosofia como forma de vida é regida por um interesse específico. No caso de Hadot, seu interesse consiste em devolver à filosofia contemporânea parte das capacidades que tinha na filosofia antiga e foram perdidas ao longo do tempo. Hadot, diferentemente de Foucault, entende que a filosofia perdeu sua capacidade de criar forma de vida quando foi assimilada pela cultura cristã, a partir do século VI, e a teologia se impôs como saber primeiro deixando à filosofia um lugar secundário.

O cristianismo, quando teve que se expandir da cultura judaica para o mundo, assimilou as filosofias greco-romanas como substrato histórico-conceitual. Não é casual que quase todos os Padres da Igreja, desde o século III até o século V, eram filósofos de formação. Muitos deles eram filósofos que se tornaram cristãos ou cristãos que se formaram como filósofos (S. Agostinho é um caso paradigmático, mas também Ambrosio, Orígenes, Tertuliano, Clemente, Ireneu, Gregório de Nissa, Gregório de Nazianzo, Basilio, entre outros). Se a tradição bíblica e os evangelhos cristãos tivessem permanecido na matriz da cultura oriental e semita em que constituíram o cristianismo, provavelmente, não teria assimilado os princípios das escolas filosóficas como parte de sua identidade religiosa. Na assimilação da filosofia pelo cristianismo ocorreram muitas derivações, encontros e desencontros, mas, no que diz respeito ao papel da filosofia como forma de vida, o encontro teve profundas consequências para ambos saberes e práticas. 

A teologia foi incisivamente influenciada pelas técnicas filosóficas da forma de vida. Os grupos cristãos que, a partir do século II, começaram a se organizar e criar seu modo de vida como uma forma de vida diferente da que regia no império romano, por exemplo, o monacato, assimilaram as técnicas das escolas filosóficas como apropriadas para a formação daqueles que escolhiam essa forma-de-vida nova. Ao longo dos séculos, com o surgimento e consolidação das congregações religiosas, as técnicas da forma de vida passaram a formar parte da herança cultural do cristianismo. Aqueles que escolhiam essa forma de vida religiosa, segundo o ideal proposto por cada congregação ou ordem, passavam por etapas de formação utilizando para tanto muitas das técnicas das escolas filosóficas a fim de ajudar na constituição de uma nova forma de vida e de um novo estilo de subjetivação. Até hoje, podemos constatar que talvez seja na vida das congregações religiosas cristãs que perdura o princípio das escolas filosóficas antigas de criar uma forma de vida diferente. A vida das congregações religiosas se apresenta como uma vida diferente da socialmente dominante, para conseguir viver esse estilo de vida, as pessoas que por ela optarem terão que criar em si mesmas uma forma-de-vida própria. Essa opção, como era a opção das escolas filosóficas antigas, exige um processo de mudança e transformação nos sujeitos. Para atingir essa forma de vida é preciso criar um modo de subjetivação próprio utilizando técnicas e exercícios (askesis) permanentes, entre eles a meditação, o retiro, os exercícios espirituais, a vida austera, caso contrário a vida religiosa corre o risco de ser mera teoria, como a filosofia moderna, sem uma forma-de-vida coerente.

É conveniente lembrar que um dos discursos e práticas mais acuradas a respeito da meditação no cristianismo são os exercícios espirituais ideados por santo Inácio no século XVI. Não é por acaso que Descartes chamou a sua principal obra de “Meditações metafísicas” assim como a obra anterior de “Regras para direção do espírito”. Aluno como foi do colégio jesuíta de La Fleche, embora muito crítico com o conteúdo da escolástica decadente que recebeu, valorizou muito os métodos de direção do espírito e as práticas da meditação que aprendeu como aluno jesuíta. Ele os utilizou posteriormente como ferramentas para pensar não uma forma de vida, mas a forma como se produz o conhecimento. Por estes e outros argumentos, Foucault, diferentemente de Hadot, entende que foi no século XVII, no que ele denominou de “momento cartesiano”, que a filosofia cedeu sua dimensão de ser uma prática de vida para se tornar um mero exercício especulativo sem conexão direta com a forma de vida.  Para Hadot, o fato de a teologia ter assumido o objetivo de criar uma forma de vida, já no século VI, foi o fator principal que retirou da filosofia essa “missão”. Restou para a filosofia a especulação conceitual sobre a verdade sem se responsabilizar pelo modo como se vive a verdade que se pensa. 

Cabe assinalar que esta derivação teológica cristã da forma de vida filosófica foi estudada por cada um dos autores aqui mencionados. Hadot dedicou vários ensaios a este tema. Hadot sublinha, no ensaio “Os exercícios espirituais e a filosofia antiga” , a similaridade que há entre os exercícios espirituais de Santo Inácio e aqueles desenvolvidos na Grécia antiga. Foucault também dedica várias aulas e vários momentos à relação da ética do cuidado de si com o cristianismo . Sua morte prematura lhe impediu de concluir o projeto de fazer uma genealogia das formas de subjetivação no cristianismo medieval, o que ele chegou a denominar de “pecados da carne”. Para Foucault, as práticas do cristianismo a partir do século V assumem uma parte significativa das práticas filosóficas do cuidado de si, porém essa versão do cristianismo provocou uma inversão radical no sentido das práticas e no modo de subjetivação. Se a prática do cuidado de si nas escolas filosóficas visava a constituição da autonomia do sujeito e a promoção de sua vida livre, no cristianismo medieval prevalece o objetivo da obediência e o modelo de subjetivação do súdito. Com isso, as práticas do cuidado de si se voltarão sobre a suspeita da alma para decifrar as tentações do sujeito; nessa matriz, o melhor modo de garantir a reta conduta será a estrita obediência ao superior. Agamben também pesquisou a forma-de-vida no cristianismo primitivo destacando o inédito da problemática que nas novas formas religiosas se estabeleceu entre a regra e a vida . Inicialmente, os grupos cristãos que problematizaram a regra em relação com a vida tinham o princípio de que cada forma-de-vida tinha que criar sua regra própria. Era a regra que tinha que se submeter à vida e não o contrário, como posteriormente ocorre na atualidade na normatização biopolítica da vida cotidiana .

As sociedades do século XXI não mais vivem uma hegemonia religiosa qualquer, elas se caracterizam por serem sociedades pós-metafísicas, contudo nelas a procura pelo sentido da vida não pode ser abolida. A filosofia dificilmente voltará a ser uma escola que requer discípulos, mas também não tem por que ficar reduzida a mera especulação teórica. No vácuo entre o saber e o viver, a filosofia contemporânea tem muito a oferecer para refletir sobre diversas possibilidades de pensar formas de vida, ethos diferentes daqueles que, por exemplo, a sociedade massificada impõe como normais. Com este objetivo, pensadores como Foucault e Agamben decidiram ampliar as pesquisas sobre as formas de subjetivação e as forma-de-vida a fim de explorar nestas práticas possibilidades outras de os sujeitos serem diferentes. 

A forma-de-vida refere-se ao ethos do sujeito. O ponto comum destas perspectivas filosóficas é que a subjetividade humana se constrói como resultado do ethos vivido pelos sujeitos. O ethos não é um elemento externo à vontade ou uma dimensão periférica do sujeito, a vontade e o sujeito são resultados do ethos vivido. As formas de subjetivação, formas-de-vida, são produzidas pelos modelos de ethos que os sujeitos vivem. Pensar a filosofia como forma-de-vida significa conferir à ética a dimensão de prática de vida (ethos), sem reduzi-la a normatividades, leis, ou princípios metafísicos ou naturalistas. Estes aspectos teóricos são muito relevantes para iluminar a prática ética, mas a ética não deve confundir-se com eles,  pois ela é uma forma-de-vida. Este, talvez, seja um dos principais desafios da filosofia do século XXI: como possibilitar que a ética se torne uma forma-de-vida através da qual os sujeitos possam decidir seus modos de constituir-se com liberdade? Esta é a tarefa da ética entendida como ethos, a se constituir numa forma-de-vida.

Se a filosofia se recusar a assumir esta “missão”, esse vácuo estará sendo ocupado, entre outros, pela mídia de massas, os folhetins de autoajuda, etc., discursos em que predomina o doutrinamento massificador e a normalização adestradora. 

A lógica biopolítica utiliza-se das técnicas de massificação e normalização dos sujeitos como meios para produzir formas de subjetivação fáceis de conduzir. A filosofia como foma-de-vida tem a responsabilidade de pensar e viver formas-de-vida críticas, dentro do pluralismo inerente aos modos de viver. O olhar para a filosofia antiga como forma de vida não deveria ser mera erudição, mas uma visita preocupada com alterar nosso presente.

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