Edição 460 | 16 Dezembro 2014

A contemplação como resposta em Thomas Merton

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Márcia Junges e Andriolli Costa

Doutor em Ciências da Religião, Sibélius Cefas Pereira apresenta a trajetória do monge trapista, defendendo que o ato de contemplar — mais que uma fuga do mundo — aprofunda o sentido do viver

“Merton certamente se via marcado por uma ambiguidade”, descreve Sibélius Cefas Pereira, doutor em Ciências da Religião. “Por um lado o desejo imenso de dedicar-se a Deus na opção radical da solidão monástica. Por outro, levava consigo essa ânsia e necessidade de tornar sua opção uma força de serviço e compaixão ao mundo, o que traria consequências acentuadas sobre o sentido de se ser monge no mundo atual.”

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Cefas reflete que, diferente do que se apresenta no senso comum, a experiência religiosa — sobretudo no contexto da opção monástica — representaria uma fuga do mundo. Trata-se, para ele, exatamente do contrário. “A experiência contemplativa, a busca de uma vida plena em Deus, aprofunda o sentido do viver, adensa a espessura do tempo.” Sendo um monge contemplativo, recolhido ao diálogo silencioso da oração e da meditação, Merton não se furtou ao diálogo com o mundo, abrindo sua alma e coração ao leitor e comprometendo-se com causas sociais. Em um contexto de Guerra Fria, corrida armamentista, racismo, confrontos e lutas, descreve Cefas, “Merton fez parte daquele arco de figuras públicas dos anos 1960 que de alguma forma traduziam os anseios e sonhos da coletividade, assim como seu contemporâneo Martin Luther King”.

Nas palavras do próprio Merton, “a vida contemplativa não é nem pode ser uma simples evasão, uma pura negação, uma fuga do mundo em face dos seus sofrimentos. Antes de tudo seria uma ilusão essa tentativa. Ninguém pode retirar-se completamente da sociedade dos seus companheiros”. Assim, em uma era de opulência, hiperconsumismo, ambição econômica insaciável e espetacularização da vida, o pesquisador mais uma vez recorre ao místico trapista. “Tendo a tirar uma lição central em Merton, que é o convite para o desapego e o esvaziamento. Penso estar aí um aprendizado que pode vir da experiência contemplativa e talvez uma saída enquanto modo de viver para os nossos impasses civilizatórios.”

Sibélius Cefas Pereira é graduado em Teologia e Letras. Mestre em Linguística pela UNICAMP e Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF. Professor da PUC-Minas em Poços de Caldas, atua na área de Filosofia, em interface com outros campos. É autor do livro Thomas Merton: contemplação no tempo e na história (São Paulo: Paulus, 2014), resultado de tese de doutorado sobre Merton sob a orientação de Faustino Teixeira.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quem foi Thomas Merton ? Onde ele nasceu, como foi sua formação acadêmica e como se deu a sua mudança para os EUA?

Sibélius Cefas Pereira - Thomas Merton nasceu em 31 de Janeiro de 1915, no sul da França. Filho de pais artistas (pintores), ficou órfão ainda adolescente. Teve um trajeto incomum de um garoto cosmopolita, que ainda menino vivera na França, Inglaterra e Estados Unidos. Com a morte dos pais, passou a ser criado pelos avós nos EUA. Posteriormente passou por Cambridge, mas tem sua trajetória acadêmica ligada, efetivamente, à Universidade de Columbia, em Nova York, onde se graduou na área de humanidades (Letras), fez seu mestrado com dissertação sobre o poeta William Blake  e chegou a se preparar para o doutorado. 

Foi um tempo em que atuou bastante no campo cultural, escrevendo e mesmo dirigindo revistas literárias e acadêmicas no campus. Depois de uma busca intensa consumada na inadiável conversão, ingressou na Igreja Católica em 1938. Três anos depois, em 1941, entrou para a comunidade monástica da Abadia Getsêmani, em Kentucky, USA, mosteiro trapista da Ordem Cisterciense da Estrita Observância (OCSO). Imortalizou essa fase e experiência de sua vida, revelando o grande escritor que se tornaria, em sua conhecida autobiografia A Montanha dos Sete Patamares (Petrópolis: Vozes, 2005), publicada em 1948 e hoje reconhecida como um clássico da literatura cristã. 

Escreverá, ao longo de sua vida monástica além de seus textos mais densos sobre espiritualidade, inúmeros ensaios sobre temas sociais e culturais, diários e cartas e muita poesia. No conjunto da obra é possível recompor um retrato expressivo e cativante de sua vida, marcada por uma busca intensa de Deus. Sendo um monge contemplativo, recolhido ao diálogo silencioso da oração e da meditação, não se furtou ao diálogo com o mundo, abrindo sua alma e coração ao leitor. Como mestre espiritual que foi, é uma referência incontornável nos estudos da espiritualidade cristã e da experiência religiosa num sentido mais geral. Pode-se mesmo afirmar que sua decisiva contribuição para o cristianismo contemporâneo foi promover uma renovação e redimensionamento da vida contemplativa no mundo contemporâneo. Em Getsêmani viveu por 27 anos, de 1941 a 1968, quando morreu tragicamente em um acidente na Tailândia, onde pela primeira vez saíra do mosteiro para uma visita ao oriente, em contato e eventos com lideranças religiosas budistas, em especial monges. 

É importante ressaltar, ainda, que os seus últimos três anos no mosteiro foram vividos na condição de eremita numa construção à parte da moradia central e coletiva, experiência inédita na tradição trapista. A maior parte dos seus textos desta sua última fase são inseparáveis desta sua particular experiência, algo paradoxal, pois que, se representou uma radicalidade na forma de viver a experiência monástica, representou igualmente um envolvimento ainda maior com os desafios sociais daquele momento.

 

IHU On-Line - Como se deu o seu ingresso na Ordem dos Trapistas e quais são as características fundamentais dessa ordem?

Sibélius Cefas Pereira - Em sua autobiografia recupera elementos do seu trajeto anterior à sua conversão, ocorrida em 1938, e à sua entrada para a ordem em 1941. Um pouco na moldura das Confissões de Agostinho , o que se percebe aí é o itinerário tumultuado de um jovem que explorou ao máximo a vida em suas diferentes oportunidades, mas que trazia em si uma inquietação mais profunda que só encontrou descanso em Deus. 

Quanto à Ordem Cisterciense, o próprio Merton em sua obra Águas de Siloé (Belo Horizonte: Itatiaia, 1957) traça seu histórico. Nas suas palavras, “foi fundada no fim do século XII como uma reforma do monasticismo beneditino. O ideal dos fundadores foi um retorno à perfeita observância integral da Regra de S. Bento , o que significa um retorno à vida cenobítica  em toda a sua simplicidade. [...] Sob São Bernardo de Claraval , os cistercienses tornaram-se a maior ordem contemplativa de seu tempo”. 

Ressalta Merton a particular vocação de São Bernardo para a vida contemplativa, bem como a ênfase dada desde o início, e que de certa forma ficou como marca da Ordem, ao amor, com predileção pelo livro Cântico dos Cânticos , tomado como a referência bíblica que melhor expressava a união mística da alma com Deus. Lembra Merton que a expansão da Ordem trouxe posteriormente um tempo de “declínio e a primeira coisa que desapareceu foi o fogo da contemplação”. 

Uma parte expressiva da obra abordará a reforma do século XVII, liderada pelo padre João Armando de Rancé, abade da Grande Trapa, marcada por uma ênfase na “austeridade”. É deste período que se fixa a identificação “Ordem de Cistercienses da Estrita Observância” (OCEO) ou “Ordem dos Cistercienses Reformados” (Ordo Cisterciensium Reformatorum), que ficará mais conhecida pelo termo “trapistas” — apenas um apelido, lembra Merton. 

Cistercienses

Em outra de suas obras, intitulada Vida Silenciosa (Petrópolis: Vozes, 2002), recompõe o quadro dos Cistercienses chamando atenção para algumas de suas características: simplicidade e austeridade, renúncia e caridade como dos primeiros cristãos, uma valorização ao desapego e esvaziamento interior, mais do que práticas ascéticas exteriores, recolhimento no mosteiro não como fuga e sim como expressão do amor a Deus e do amor entre os irmãos.

Dirá, “o único e principal assunto do contemplativo é Deus e o amor a Deus” e, a partir desta experiência, o amor aos homens só cresce e se aprofunda. Essa relação da contemplação e do amor, tão característica ao próprio Merton, ele já a reconhece como uma das marcas de São Bernardo. A “ordem” ou obediência aí vivida, deve ser entendida mais como um princípio de orientação do que no sentido estreito de regra ou lei. 

Ressalte-se que o único mosteiro trapista — Ordem Cisterciense da Estrita Observância (OCEO) — presente no Brasil é o de Nossa Senhora do Novo Mundo, em Campo do Tenente, PR, cujo abade, Dom Bernardo Bonowit , tem tido uma presença significativa na cena religiosa brasileira, quando através de conferências e retiros tem possibilitado a atualização da espiritualidade da trapa em nosso meio.

 

IHU On-Line - O que Merton queria dizer ao afirmar que ele estava vivendo na “barriga de um paradoxo”, a exemplo de Jonas na baleia?

Sibélius Cefas Pereira - Em 1953 publicou uma obra intitulada O signo de Jonas (Jundiaí: Editora Mérito, 1954). De fato eram notas de seu diário retratando o cotidiano do mosteiro e os primeiros anos como monge. A nota que abre o livro identifica Jesus, como o signo de Jonas, o signo de Sua própria ressurreição. Também reconhece a vida de todo monge como marcada por este signo e identifica particularmente sua vida como “especialmente marcada por esse grande signo” e finaliza com esta expressão enigmática, que ao entrar para o mosteiro, se via para o seu destino na “barriga de um paradoxo”. 

Por um lado, se retomarmos a referência bíblica, lembremos que o tempo que Jonas passou na barriga da baleia foi um tempo oportunizado por Deus para que não mais resistisse ao chamado. De certa forma é o que aconteceu a Merton. Por outro lado, pode ser entendido no sentido da tradição teológica que reconhece em Jesus e em seus seguidores um sinal de contradição para o mundo. Merton certamente se via marcado por uma ambiguidade, por um lado o desejo imenso de dedicar-se a Deus na opção radical da solidão monástica, mas por outro, sabendo que levava consigo essa ânsia e necessidade de tornar sua opção uma força de serviço e compaixão ao mundo, o que traria consequências acentuadas sobre o sentido de ser monge no mundo atual.

 

IHU On-Line - O monge que tanto pregou contra a guerra retornou morto aos EUA dentro de um bombardeiro das Forças Armadas norte-americanas, que trazia de volta corpos dos soldados mortos do Vietnã. Seu túmulo no cemitério da abadia fica ao lado do abade que lhe negou a permissão para viajar. O que esses paradoxos nos dão a pensar sobre sua trajetória de vida?

Sibélius Cefas Pereira - Thomas Merton é paradoxal em muitos sentidos. Foi um monge contemplativo e eremita e ao mesmo tempo figura pública, escritor e comprometido com as causas sociais. Um monge católico em uma ordem austera e rigorosa e ao mesmo tempo uma das figuras mais abertas ao diálogo inter-religioso. Religioso e místico, mas o depoimento de todos os que o conheceram o retratam como uma pessoa comum, sem trejeitos religiosos e marcado pela simplicidade, “como o peixe na água”, como se expressou para Cardenal . 

Profundamente enraizado na tradição mística e monástica, leitor dos antigos e latinista, mas ao mesmo tempo sintonizado com o melhor da teologia, da filosofia e da literatura de seu tempo, inclusive em suas expressões vanguardistas. Também a busca da solidão e do silêncio e ao mesmo tempo esforço de diálogo e comunhão. E por aí vai. Talvez o que mais cative nele e que encantou a todos seja exatamente este Merton plural e multifacetado.

 

IHU On-Line - Por que Merton é considerado o escritor católico norte-americano mais popular da história?

Sibélius Cefas Pereira - Merton é aquele tipo de pessoa que poderíamos classificar de um escritor nato. Escreveu muito, em diferentes estilos, sobre variados temas e com muita qualidade. Textos de espiritualidade que falavam para o cristão mas que atingia a todos. Por outro lado escreveu num momento histórico que carecia de vozes. Merton faz parte daquele arco de figuras públicas dos anos 1960 que de alguma forma traduziam os anseios e sonhos da coletividade, assim como seu contemporâneo Martin Luther King .

 

IHU On-Line - Como se inter-relacionam a contemplação no tempo e na história na vivência monástica de Merton?

Sibélius Cefas Pereira - Este tem sido o meu tema principal de estudo. A pergunta por si só já desconstrói um equívoco muito presente num certo imaginário social, de que a experiência religiosa, sobretudo no contexto de uma opção monástica, representaria uma fuga do mundo. E o que ocorre é exatamente o contrário, a experiência contemplativa, a busca de uma vida plena em Deus, aprofunda o sentido do viver, adensa a espessura do tempo. Em termos objetivos, o tempo de Merton é aquele tempo convulsivo, mas muito rico das décadas de 1950 e 1960.

O contexto era o da Guerra Fria, da corrida armamentista, da presença de um racismo cruel, uma era pós-barbárie. E foi, também, no confronto a este cenário, o tempo da luta pela paz, pelo desarmamento, pelos direitos civis e também o tempo da busca contracultural por uma nova sociedade. Neste sentido, é encarado por Merton de forma dialética, é o lugar do encontro, mas também do confronto. Afirma Merton: “A vida contemplativa não é nem pode ser uma simples evasão, uma pura negação, uma fuga do mundo em face dos seus sofrimentos, crises, confusões e erros. Antes de tudo seria uma ilusão essa tentativa. Ninguém pode retirar-se completamente da sociedade dos seus companheiros”.

Assim, “a própria comunidade monástica está profundamente integrada, para suas alegrias ou sofrimentos, nas estruturas econômicas, políticas e sociais do mundo contemporâneo”. Alerta para a responsabilidade social e para a necessidade de uma voz profética. E acrescenta: “sustento que a vida contemplativa do cristão não é uma vida de abstração, de recesso, que o concentre apenas nas essências ideais, nos valores absolutos, na exclusiva eternidade. O cristianismo não pode rejeitar a história. Não pode ser uma negação do tempo [...] A liberdade do cristão contemplativo não é a liberdade em face do tempo, mas a liberdade dentro do tempo”. 

É uma perspectiva da contemplação que convoca para o amor e a compaixão, para o encontro e a comunhão. Não apenas alertou para esta necessidade como engajou-se efetivamente nessa luta através de seus textos, foi, poderíamos afirmar, um ativista social impulsionado por sua rica e sólida espiritualidade. Para finalizar: trata-se de uma perspectiva contemplativa humana e existencial, porque inseparável da própria vida; realista, na medida em que convoca para uma maturidade espiritual que não nega as lutas; também uma perspectiva dinâmica, visto que não há modelos prontos nem trajetos predefinidos, a experiência vai se construindo e se refazendo.

 

IHU On-Line - Em que sentido essa contemplação nos inspira a viver mais próximos do Mistério em nosso tempo?

Sibélius Cefas Pereira - Cada tempo tem a sua agenda, os seus desafios. Talvez o nosso seja o da intolerância, seja o de uma presença fria e cruel da violência que permeia a tudo. Seja também o do tráfico e, ainda, o do armamento. Alguns desafios se aprofundam como o do desequilíbrio ambiental, assim como as novas realidades — virtuais e reais — postas num mundo pós-moderno inseguro, incerto, desorientado. Continuem ou mudem os desafios, as suas intuições permanecem válidas em quaisquer dos contextos. Já que, para usar categorias mertonianas, o que está em jogo sempre é a luta entre o falso eu e o verdadeiro eu; trava-se uma luta ontológica e existencial entre o ser e o não ser; entre a alienação, que impede a contemplação, e a comunhão.

É preciso lembrar que a renúncia de si mesmo implicada na perspectiva contemplativa da busca do encontro com Deus é uma renúncia de nossas ilusões, nosso egoísmo, nossos apegos, e, se passa pelo tempo, ao mesmo tempo o ultrapassa. Pessoalmente — dado o tipo de sociedade em que vivemos, marcada pela opulência, pelo hiperconsumismo, pela ambição econômica insaciável, pela espetacularização da vida e pelo desfile de egos gigantescos, inclusive nas religiões, dentre tantas outras características — tendo a tirar uma lição central em Merton, que é o convite para o desapego e o esvaziamento, para a simplicidade e para o desprendimento. Penso estar aí um aprendizado que pode vir da experiência contemplativa e talvez uma saída enquanto modo de viver para os nossos impasses civilizatórios.

 

IHU On-Line - Como se dá a recepção do legado de Merton entre o catolicismo hoje?

Sibélius Cefas Pereira - Penso que no momento presente Merton começa a alçar um espaço mais compatível com a sua grandeza tanto na condição de escritor como de religioso. No caso do Brasil, por exemplo, reconheço pelo menos duas vias e dois modos bem distintos na recepção da obra de Merton. Uma é aquela que passou pela apresentação e mesmo mediação de religiosos, em especial das ordens monásticas, incluindo-se aí figuras laicas notórias como, por exemplo, Alceu Amoroso Lima . 

E aqui, é preciso dar um realce ao papel que Ir. Maria Emmanuel de Souza e Silva , OSB, teve na recepção de sua obra no Brasil. Não só pelo fato de ter sido a sua principal tradutora para a língua portuguesa, mas por ter se tornado uma amiga de Thomas Merton. O mérito aí, desta primeira comunidade receptiva, é inestimável, inclusive porque, não fora este grupo, a acessibilidade aos textos de Merton pelo público brasileiro talvez tivesse demorado bem mais. 

No entanto, a recepção aí pode ter demarcado certa leitura de Merton, mais intraeclesial. O que pode ter acarretado um confinamento da sua figura e obra apenas ao universo religioso e mais restritamente ao das ordens monásticas. O que não é o caso na sociedade norte-americana, onde Merton ocupa a posição de uma figura pública, de um escritor e poeta reconhecido e que sempre teve um universo bastante amplo de leitores. É este Merton percebido em sua maior amplitude que, recentemente, tem chegado a nós. O arco de seus leitores tem se ampliado, tanto no horizonte de uma perspectiva do diálogo inter-religioso, como no horizonte ainda maior do diálogo com a sociedade e com a cultura. 

A pessoa de Merton e seus livros possuem uma notável atualidade com este campo mais amplo e aberto de uma espiritualidade ou religiosidade menos institucionalizada. Tem sido reeditado, não apenas por editoras religiosas, vem se tornando um tema mais presente no meio acadêmico com a orientação, por exemplo, com Faustino Teixeira, na UFJF em Juiz de Fora, e com Maria Clara Bingemer , na PUC-RJ, dentre outros; também no Brasil existe a atuação forte da Sociedade dos Amigos Fraternos de Thomas Merton (SAFTM), que promove encontros, retiros e estudos sobre Merton.

 

IHU On-Line - Por que os trabalhos mais populares de Merton não são tomos teológicos densos, mas seus diários e escritos autobiográficos?

Sibélius Cefas Pereira - O itinerarium da vida contemplativa de Merton é inseparável de sua obra textual. Merton faz parte desse grupo particular de figuras cujas vidas são inseparáveis de seus textos, o biográfico e o textual se entrelaçando o tempo todo, tanto em textos assumidamente autobiográficos — memórias, diários, cartas e autobiografias propriamente ditas — quanto em textos, ainda que temáticos ou ensaísticos, perpassados por referências nitidamente existenciais. 

No caso dos diários, por exemplo, uma escrita fragmentada e com anotações multifacetadas. Se falta ao diário a profundidade da escrita reelaborada e enfim concretizada em obra acabada, sobra-lhe a  vitalidade da escrita feita no calor da hora, no registro pontual e cotidiano de sua experiência. Nesta “espontaneidade” do registro em esboço é que talvez esteja sua maior qualidade, pois que no episódico e pontual de um cotidiano pode estar o índice de um sentido maior. Assim, seus diários permitem uma aproximação serena e digna ao seu trabalho interior que explora a experiência da solidão no diálogo intenso com a natureza em sua exuberante paisagem, permeada pela leitura da escritura, pela oração, e também pelo trabalho. 

No caso das cartas, as mesmas ganharam inúmeros outros matizes além de simplesmente estabelecer comunicação com as pessoas a distância. Suas cartas visavam abrir novos contatos e manter os já existentes, mantendo um arco invejável de interlocutores. Divulgar e receber informações, o que não é pouco para quem está recluso. Divulgar “prévias” de seus textos no sentido de receber os primeiros impactos de um círculo mais íntimo de leitores, antes de uma publicação mais pública, que, dependendo do tema e dado a sua posição de monge contemplativo. E, como quase sempre os retornos vinham, com diferenciadas considerações, as cartas acabaram por se tornar espaço importante da sua reflexão mais elaborada do que viria a se tornar, mais dia menos dia, uma nova obra. 

Em algumas situações, a carta foi o meio por ele escolhido para uma tomada pública de posição em relação a temas polêmicos como as denúncias contra as guerras ou o engajamento na luta antirracial. Trata-se, portanto, de uma correspondência algo singular, também ela um testemunho de fé e o testamento de um verdadeiro itinerarium. Há também meditações, inúmeros ensaios, organização de textos, notas de cursos, poesia. Merton reconhecia aí, nesses gêneros textuais, sua maior qualidade enquanto escritor, mas penso também que é um tipo de texto que encontra mais eco entre os leitores, que possibilita falar a um círculo mais amplo de pessoas.

 

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar alguns aspectos que não foram questionados?

Sibélius Cefas Pereira - É preciso ressaltar também que a obra de Merton, embora marcadamente religiosa, transcende em muito este universo. Dialoga com a cultura de seu tempo em todas as suas expressões: filosofia, política, artes em todas as suas expressões, em especial com a literatura. No caso da literatura em específico, ressalte-se seu insistente reconhecimento de que há uma inequívoca convergência entre a experiência religiosa e a experiência estética. Para finalizar diria que Thomas Merton é o tipo de companheiro de viagem que nos fortalece no caminhar e não nos deixa esmorecer da esperança.

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