Edição 459 | 17 Novembro 2014

Pensar a América Latina para além do latino-americanismo

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Ricardo Machado e Andriolli Costa

Professor Santiago Castro-Gómez debate o pensamento produzido em nosso continente desde uma perspectiva genealógica

Na análise do professor e pesquisador Santiago Castro-Gómez, a América Latina não deve ser tratada como um espaço de unidade cultural contínua e unívoca, mas, sim, entendida a partir de suas complexidades. “Precisamos compreender esses processos a partir de nós mesmos, da nossa história, e me parece importante traçar essa história com critérios e tomá-los da realidade latino-americana, o que não significa cair em latino-americanismo”, sustenta Santiago, em entrevista concedida pessoalmente à IHU On-Line, quando esteve na Unisinos participando do Ciclo de Conferências 2014: A "questão pós" nas Ciências Humanas, organizado pelo PPG em Ciências Sociais da universidade.

Diante de tal cenário, o professor explica, primeiro, as diferenças conceituais entre colonialismo e colonialidade, para avançar em sua defesa ao pensamento descolonial. “Colonialismo faz referência à presença militar, política e administrativa de uma potência em um território estrangeiro (...). Colonialidade faz referência às gerências do colonialismo mesmo depois que ele desaparece. O racismo é uma herança colonial, bem como certos modos de paternalismo e o machismo”, esclarece. “É preciso deixar claro que o pensamento descolonial não impõe a exclusão de teorias ou pensamentos provenientes de outras partes do mundo. Ou seja, o pensamento descolonial não sugere que devemos criar categorias propriamente latino-americanas ou brasileiras, por exemplo”, complementa. 

Santiago Castro-Gómez é graduado em Filosofia na Universidade Santo Tomás, em Bogotá, na Colômbia. Realizou mestrado também em Filosofia na Universidade de Tübingen e, posteriormente, doutorou-se na Johann Wolfgang Goethe-Universität de Frankfurt, ambas na Alemanha. Atualmente é professor de Filosofia na Universidade Javeriana, em Bogotá. É autor de diversas obras, entre elas, Crítica de la razón latino-americana (Bogotá: Editorial Pontificia Universidad Javeriana, 2011 - 2ª ed) e La hybris del punto cero. Ciencia, raza e ilustración en la Nueva Granada (1750-1816) (Bogotá: Universidad Javeriana, 2005).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quais eram os avanços e os limites da visão filosófica propagada pelo Grupo de Bogotá para compreender os dilemas latino-americanos? 

Santiago Castro-Gómez – Explico primeiramente o que foi o Grupo de Bogotá. Trata-se de um conjunto de filósofos da Universidade São Tomás de Bogotá dos anos 1970 que questionou se existia ou não uma filosofia latino-americana. Se existia uma filosofia que fosse capaz de dar conta dos problemas específicos da América Latina e que se diferenciasse, tanto nos métodos quanto nos conteúdos, da tradicional filosofia europeia ocidental.

Quanto ao ponto de vista do grupo, houve acertos e dificuldades. Um dos acertos foi pensar uma filosofia assentada em um contexto concreto, ou seja, que a filosofia, o pensamento e a razão estivessem situados empiricamente. Assim, deixa-se de pensar a filosofia como algo abstrato, que não tem lugar, rompendo com a ideia de que os problemas filosóficos no Japão e na América Latina, por exemplo, são iguais. Este Grupo de Bogotá fez esse trabalho muito bem, porque defendia que não se pode separar o filósofo do meio onde ele está pensando.

O problema, entretanto, é o modo como o grupo entendia a América Latina, pois tinha uma percepção muito homogênea e unificada; pensava-se que o continente possuía um âmbito cultural de continuidade. Isto é, não se tinha em conta as particularidades e multiplicidades, o que parece ter sido um dos grandes problemas.

 

IHU On-Line – De que forma esta visão divergia do pensamento alemão e dos filósofos da pós-modernidade? 

Santiago Castro-Gómez – O Grupo de Bogotá se nutria teoricamente da Filosofia da Libertação, de Enrique Dussel , e, por outro lado, do pensamento historicista do mexicano Leopoldo Zea , cuja perspectiva é calcada no historicismo alemão, tradição que subsidiava o pensamento e a razão. Inclusive, o pensamento de Dussel tinha certa filiação ao pensamento de Heidegger . Então o Grupo de Bogotá, apesar de proclamar a necessidade de uma filosofia latino-americana independente do pensamento europeu, tinha suas fontes embasadas no historicismo alemão e na antologia fundamental de Heidegger.

 

IHU On-Line – Que diferenças há entre esses autores alemães e os pós-modernos?

Santiago Castro-Gómez – Uma grande diferença é, precisamente, que o Grupo de Bogotá não dava ênfase às singularidades e às multiplicidades, ao contrário, eles tinham uma imagem de América Latina muito “englobante”, totalizante, como um metarrelato latino-americanista. Por outro lado, continuavam muito vinculados à filosofia moderna dos sujeitos, seguiam pensando que o problema do continente era a emancipação dos sujeitos, fundada na filosofia moderna. Então o pensamento pós-moderno passou a romper com este pensamento iluminista.

 

IHU On-Line – É possível promover um diálogo entre estas tradições filosóficas para buscar uma melhor compreensão da complexidade?

Santiago Castro-Gómez – Sem dúvida. Creio que há uma linha da filosofia alemã que se pode reconstruir desde Nietzsche  até a Escola de Frankfurt e a qual seria útil recuperar para pensar os problemas contemporâneos. Isso porque Nietzsche é um pensador fundamental, assim como o são os primeiros escritos da Escola de Frankfurt , dos anos 1930 e 1940; ou seja, há uma vertente do pensamento alemão que segue importante até hoje. Creio que seja a vertente da qual se valeu Foucault , que recorre muito a Nietzsche, mas também com muitos trabalhos da Escola de Frankfurt, o que considero importante e frutífero para pensar a contemporaneidade.

 

IHU On-Line – Qual a diferença entre colonialismo e “colonialidade”?

Santiago Castro-Gómez – São dois conceitos distintos porque colonialismo faz referência à presença militar, política e administrativa de uma potência em um território estrangeiro, conforme a concepção clássica do colonialismo. Isto é, a ocupação de um território estrangeiro e imposição das estruturas de poder e dominação política e econômica. Colonialidade faz referência às gerências do colonialismo mesmo depois que ele desaparece. O racismo é uma herança colonial, bem como certos modos de paternalismo e o machismo. Há uma série de heranças que persistem mesmo após o colonialismo.

 

IHU On-Line – Qual a importância do estabelecimento de uma matriz filosófica própria à realidade latino-americana para promover um pensamento descolonial? 

Santiago Castro-Gómez – É preciso deixar claro que o pensamento descolonial não impõe a exclusão de teorias ou pensamentos provenientes de outras partes do mundo, esta é uma questão importante. Ou seja, o pensamento descolonial não sugere que devemos criar categorias propriamente latino-americanas ou brasileiras, por exemplo. Já o pensamento colonial tem mais a ver com o uso de ferramentas teóricas para resolver ou pensar problemas locais que têm muito a ver com a situação destes países na América Latina. As ferramentas, porém, podem vir de qualquer parte, o que importa são as formas como se utilizam os modelos teóricos. 

Algumas pessoas me criticam porque falo de descolonialidade mas uso Foucault. Porém, não vejo nada de contraditório nisso. Poderia usar Marx , também, sem problemas. A colonialidade tem mais a ver com certa “reverência” às soluções que vêm da Europa ou certo ponto de vista de que podemos transpassar as soluções empregadas em outras partes do mundo sem ajustes à nossa própria realidade.

 

IHU On-Line – Em que medida o pensamento desconstrucionista de Derrida ajuda a pensar essa complexidade?

Santiago Castro-Gómez – Não tenho me ocupado muito com Derrida , mas me parece que a desconstrução é uma ferramenta útil, porque não é possível nenhum processo emancipatório sem desconstrução. Tenho me dedicado mais ao método genealógico de Foucault, mas reconheço que há um paralelo entre a desconstrução derridiana e a genealogia foucaultiana. Ambos os métodos são desconstrutivos em última medida, pois a genealogia busca examinar historicamente as distintas linhas que nos compõem, a forma como temos sido construídos ao longo do tempo e tentando separar estas coisas. A genealogia busca compreender as condições da experiência, porém tais condições são históricas, não estão claras em uma subjetividade transcendental ou identidade cultural, mas são condições que são explicadas pelo tempo, e a genealogia é o que faz a história dessas condições.

 

IHU On-Line – Quais os perigos de, ao buscar a fuga do pensamento colonial, incorrer na recusa de diálogos possíveis?

Santiago Castro-Gómez – Há um risco muito grande de um essencialismo de pessoas que pensam que o pensamento descolonial pressupõe se recolher tão somente a uma matriz ameríndia, pré-colombiana. Trata-se de um equívoco muito grande. O impacto disso é uma certa radicalização política, de suspeitar sempre de tudo que vem de fora. Há um risco de idealização de determinados sujeitos, os indígenas, os afrodescendentes, tratando de colocar nesses grupos pretensões excessivas em termos políticos, como se as subjetividades dessas formas de existência pudessem trazer soluções emancipatórias para todos. Isso é um movimento político muito perigoso.

 

IHU On-Line – Por que o ideal moderno parece ser tão pouco aplicável no século XXI?

Santiago Castro-Gómez – A nossa realidade foi modelada pela modernidade. Se olharmos a história da América Latina, perceberemos que ela é constituída pela formação dos Estados-Nação, a incorporação de nossas economias ao capitalismo, a legitimação das entidades modernas como a educação e os meios de comunicação. Isto é, pensar a história da América Latina sem os processos de institucionalização parece impossível. A América Latina já é um projeto da modernidade. O perigo é, justamente, a ficção de acreditar que o nosso continente pode ser pensado por fora da modernidade, porque há, nesse ponto de vista, um grande risco analítico.

Entretanto, como a nossa forma de inserção à modernidade foi por meio da matriz colonial, porque nos integramos à modernidade devido à expansão colonial europeia, gerou-se uma confusão sobre a forma como a modernidade se instaurou na Europa e nas nossas nações. Inclusive é preciso entender como os processos de colonização avançaram na América Latina sem querer compreendê-los a partir da uma racionalidade pura. Precisamos compreender esses processos a partir de nós mesmos, da nossa história, e, por exemplo, me parece importante traçar essa história com critérios e tomá-los da realidade latino-americana, o que não significa cair em latino-americanismo. 

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