Edição 459 | 17 Novembro 2014

O “Sul” para além da geografia, a acepção política e econômica do termo

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Ricardo Machado | Colaborou: Fernanda Frizzo Bragato | Tradução: André Langer

Gladys Lechini, professora e pesquisadora da Argentina, sustenta que o atual rearranjo das forças internacionais favorece as mudanças no eixo geopolítico e agroeconômico

A assimetria nas relações entre as nações do Sul Global, quando comparadas às trocas entre sulistas e países do hemisfério Norte, demonstra a forte vinculação histórica dos países colonizados em relação aos seus colonizadores. Tal fator dificulta, mas não impede, uma aproximação mais horizontal entre os países em desenvolvimento e emergentes no Sul Global. “As fortes relações de dependência mantidas com os países centrais foram o maior impedimento para a aproximação horizontal. Estas relações produziram, entre outras questões, uma dependência cultural e um único modo de entender o mundo através do eurocentrismo e da colonialidade do saber e, portanto, do poder”, defende a professora e pesquisadora Gladys Lechini, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“O conceito ‘Sul’ ultrapassa a categoria geográfica e se assenta sobre uma concepção política e econômica. Os países do Sul são países em vias de desenvolvimento, periféricos, que compartilham situações socioeconômicas e político-culturais tanto entre seus contextos locais como nos âmbitos regionais”, sustenta. Na opinião da entrevistada, apesar da conjuntura desfavorável, é possível “aspirar a manter relações mais igualitárias e cooperativas, compartilhando experiências e somando força política e econômica para ganhar mais autonomia na hora de organizar a agenda global e defender seus interesses”.

De acordo com a professora, diante do atual rearranjo das forças internacionais e mudanças no eixo geopolítico e agroeconômico, os governos latino-americanos têm oportunidades para melhorar a inserção internacional agindo em cooperação. “O atual sistema internacional mostra sinais de esgotamento do modelo vigente, sob a liderança norte-americana, e há um processo de configuração de novas forças que estão emergindo e que poderiam dar nova forma ao cenário global”, sustenta. 

Gladys Lechini é graduada em Relações Internacionais pela Universidad Nacional de Rosario e graduada em Ciência Política pela mesma universidade. Realizou mestrado em Ciências Sociais na Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales e doutorado em Sociologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP. Atualmente integra o Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas, na Argentina. 

Confira a entrevista. 

 

IHU On-Line - Ao pensar as relações internacionais entre o Sul Global, que particularidades se tornam evidentes entre a América Latina e a África? Quais são as principais diferenças de quando levamos em conta a relação com os países do Norte?

Gladys Lechini - As relações entre os Estados da América Latina e da África — desde as independências nos anos 1960 — mostraram um padrão de intermitência que pode ser explicado pelos vaivéns próprios das situações domésticas e regionais, assim como pelos condicionantes sistêmicos.

Embora as duas regiões tenham sofrido o colonialismo europeu, as marcas dos colonizadores e as diferenças temporais no acesso à independência deixaram sua marca na história, na evolução sociopolítica e econômica de seus respectivos países. A forte vinculação com os poderes centrais contribuiu para potencializar o desconhecimento mútuo e promover o esquecimento. As fortes relações de dependência mantidas com os países centrais foram o maior impedimento para a aproximação horizontal. Estas relações produziram, entre outras questões, uma dependência cultural e um único modo de entender o mundo através do eurocentrismo e da colonialidade do saber e, portanto, do poder.

A ideia de promover a cooperação entre os países do Sul surgiu como complemento e ao mesmo tempo como alternativa à relação assimétrica Norte-Sul. O processo de aproximação entre os países da América Latina e da África se dá no contexto das relações Sul-Sul. Mas o conceito “Sul” ultrapassa a categoria geográfica e se assenta sobre uma concepção política e econômica. Os países do Sul são países em vias de desenvolvimento, periféricos, que compartilham situações socioeconômicas e político-culturais tanto entre seus contextos locais como nos âmbitos regionais. No entanto, podem aspirar a manter relações mais igualitárias e cooperativas, compartilhando experiências e somando força política e econômica para ganhar mais autonomia na hora de organizar a agenda global e defender seus interesses.

 

IHU On-Line - Como se deu historicamente a relação entre a Argentina e os países africanos? A relação foi apenas no âmbito econômico ou também cultural? Que mudanças ocorreram a partir da segunda metade do século XX?

Gladys Lechini - Uma revisão da evolução das relações argentino-africanas nas últimas quatro décadas — desde a independência dos Estados do continente africano — mostra que os países africanos não fizeram parte das prioridades externas da Argentina. Buenos Aires manteve com eles relações esporádicas. Os modos como os diferentes e sucessivos governos desenharam a política externa e a pouca e variável relevância outorgada às relações Sul-Sul moldaram o baixo perfil das relações argentino-africanas, tanto em nível do discurso como das ações.

Essa aproximação mostra um padrão de relações marcado pela dinâmica dos impulsos, gerando uma relação espasmódica com altos (os impulsos) e baixos (a inércia e a não política). Durante os impulsos se abriram embaixadas, se enviaram e receberam missões diplomáticas e comerciais e incrementou-se o comércio. No entanto, este conjunto de ações não produziu uma massa crítica que promovesse o desenho de estratégias para os Estados da África, porque os impulsos responderam a iniciativas pontuais, que depois se desvaneceram.

Inicialmente, a aproximação foi política e comercial (votos e mercados). No entanto, não é um dado menor a satisfatória balança comercial para a Argentina que se mantém ao longo dos anos, embora os fluxos de intercâmbio representem uma porção muito pequena do comércio da Argentina com o mundo, em média 6% na última década. Os principais sócios são Angola, Egito, Marrocos, Líbia, Tunísia, África do Sul, Argélia e Nigéria.

 

IHU On-Line - Que impactos os processos de democratização dos países da África, especialmente da África do Sul, trouxeram para a relação com a Argentina?

Gladys Lechini - A conquista da democracia na África do Sul, com as eleições livres e multirraciais de 1994 e a supressão do apartheid implicaram um giro copernicano na região, habilitando um novo interlocutor regional no continente e em escala global. O processo sul-africano se deu no contexto de uma “onda democratizadora” que percorreu a África na década de 1990. Nessa época, a Argentina estava priorizando os países desenvolvidos e enfocou suas ações pragmáticas apenas para sócios úteis na relação comercial, como eram os países da África do Norte e da África do Sul, por seu impacto no processo de reinserção internacional.

 

IHU On-Line - Por que as chamadas “teorias macro” das relações internacionais são capazes de explicar o “sistema internacional”, mas parecem ser insuficientes para dar conta da relação bilateral entre os Estados?

Gladys Lechini - As grandes linhas teóricas das relações internacionais, do realismo em diante, explicam o que acontece no sistema internacional e, sobretudo, como se comportam o sistema e os principais atores. Não são projetadas para trabalhar relações bilaterais, e menos ainda entre atores pouco relevantes para o sistema. Apenas as teorias de alcance médio ou as teorias vinculadas à política exterior e seus processos decisórios podem oferecer marcos mais adequados. No entanto, faz-se necessário desde o Sul esforçar-se para elaborar marcos adequados e funcionais às realidades dos Estados, as quais, por sua própria inserção, deveriam ser revisionistas.

 

IHU On-Line - De que maneira o caso brasileiro, na política externa com os países africanos, ajudou a compreender as relações entre a Argentina e a África?

Gladys Lechini - O caso brasileiro, utilizado a modo de espelho, ou seja, para poder ter um parâmetro de medição e comparação, foi muito útil na hora de analisar e avaliar as relações da Argentina com a África, tanto em nível do discurso como das ações. Tanto é assim que, embora o primeiro impulso pós-independências africanas tenha sido dado pela Argentina com o envio da missão Llamazares, esta iniciativa acabou se diluindo nos emaranhados da política exterior argentina, sem conformar massa crítica. No entanto, o Brasil construiu uma política africana em base a um discurso “culturalista” que lhe permitiu uma justificação doméstica. Como mencionou certa vez o ministro da Cultura Gilberto Gil,  com a África existe uma conexão cultural, genética e estética.

 

IHU On-Line - Como os processos de democratização e modernização dos Estados Latino-Americanos modificaram a política internacional no Sul Global? Que dinâmicas de poder foram restabelecidas?

Gladys Lechini - Os países da América Latina têm pouca incidência nos acontecimentos globais, salvo quando podem somar votos e propor uma negociação conjunta, como aconteceu em Cancun em 2003, nas negociações comerciais da Rodada de Doha . No entanto, torna-se muito difícil encontrar e manter os aspectos comuns quando há fortes interesses individuais, aliados a estratégias dos países do Norte ou governos dispostos a aceitar esses condicionamentos.

 

IHU On-Line - Como compreender as complexidades da cultura e da política interna paralelamente à política externa dos países do Sul Global na construção das relações internacionais dos países da América Latina?

Gladys Lechini - Os países da América Latina têm uma longa história de marchas e contramarchas em busca de sua identidade e tratando de sobreviver em um sistema internacional complexo, no qual lhes estava reservado um papel subordinado. Por muitíssimos anos, o sistema condicionou os modos de inserção internacional e os Estados latino-americanos viveram ondas de situações similares: períodos de governos militares, etapas de redemocratização, crises da dívida, busca de alianças no Sul, etapa de neoliberalismo, momentos progressistas.

Diante das atuais possíveis mudanças na reconfiguração de forças internacionais e mudanças nos eixos geopolíticos e agroeconômicos, os governos latino-americanos têm novas oportunidades para melhorar sua inserção internacional agindo cooperativamente e fazendo concessões em benefício de um interesse mancomunado.

 

IHU On-Line - Qual é o papel do continente africano neste contexto? Que intercâmbios foram possíveis de realizar?

Gladys Lechini - O atual sistema internacional mostra sinais de esgotamento do modelo vigente, sob a liderança norte-americana, e um processo de configuração de novas forças que estão emergindo e que poderiam dar nova forma ao cenário global. Fruto desta transição, o multiculturalismo e a formação de coalizões estão na ordem do dia. A criação de redes entre atores governamentais, sustentados pelos não governamentais, produz uma densidade de interconexões com efeitos variados e inovadores. O inter-regionalismo, definido como a cooperação entre diversas regiões, é um fenômeno recente no campo das relações internacionais. Pode dar-se entre diferentes processos ou entre Estados pertencentes a diversas regiões.

O ressurgimento da África como ator relevante no cenário internacional em função da posse de importantes recursos naturais deveu-se a uma combinação entre sua relativamente nova “estabilidade democrática”, o crescimento das economias subsaarianas e o desembarque dos BRICS , em particular a China, no começo deste século. Esta nova situação produziu uma reação em cadeia de velhos e novos sócios. Os primeiros recompuseram seu esquecimento e voltaram ao continente africano com um renovado interesse econômico e os segundos esgrimindo uma nova solidariedade na Cooperação Sul-Sul (CSS).

Desde a perspectiva da chancelaria argentina, continuou-se com o tradicional modo de agir por impulsos, isolados e desconexos, com um discurso crescentemente demarcado pelas linhas da Cooperação Sul-Sul. Isto se transmutou na prática em uma cooperação mais próxima dos modelos de assistência científico-tecnológica do que à ideia de coalition building.

Em um contexto de baixa densidade de relações político-diplomáticas foram reabertas três embaixadas e aprofundaram-se as relações comerciais com os sócios tradicionais da região. Reiterando a importância da cooperação Sul-Sul e o multilateralismo como mecanismos efetivos para alcançar consensos e promover o desenvolvimento de ambas as regiões, o governo argentino participou de todas as Cúpulas América do Sul-Países Árabes - ASPA e América do Sul-África - ASA .

 

IHU On-Line - Diante do contexto do século XXI, impactado pelos processos de globalização dos últimos 20 anos, quais são os avanços e os desafios que podemos apontar?

Gladys Lechini - O século XX concluiu com os países do Sul sofrendo as consequências negativas derivadas da aplicação das medidas impostas pelo chamado Consenso de Washington , as quais aprofundaram a brecha entre ricos e pobres, deixando no próprio Sul uma pesada dívida social. Os países da América Latina se viram imersos em complexas situações domésticas, enquanto a África havia ficado presa ao “afropessimismo”, ao “cansaço dos doadores” e ao esquecimento.

Apesar de todos os problemas e presságios negativos, o novo século XXI trouxe renovadas esperanças para a cooperação Sul-Sul entre as regiões, à medida que se avançava nas relações bilaterais e, paralelamente, se promovia o multilateralismo (nas Nações Unidas e na Organização Mundial do Comércio), o minilateralismo (IBSA-G20 comercial e o G20 financeiro)  e o inter-regionalismo (ASPA, ASA, ZPCAS ).

Entre a aproximação bilateral e as estratégias multilaterais e regionais, os Estados da América Latina e da África estão se conectando em um mundo que está lentamente mudando, a partir de uma nova reconfiguração de forças. Para otimizar sua inserção internacional, necessitam desenvolver novas estratégias em um contexto de novas realidades e buscando marcos conceituais e analíticos próprios, em base ao conhecimento construído, adquirido e compartilhado a partir de diferentes latitudes.

A cooperação Sul-Sul pode ser uma alternativa complementar à diversificação das relações externas e à busca de novos sócios, em múltiplos jogos e alianças. A América Latina está recuperando sua autoestima. A África está ressurgindo. Seus governos têm a responsabilidade de não perder esta nova oportunidade e fazer um uso racional dos recursos e de sua inserção internacional em benefício de seus povos. Seus governos devem estar à altura das circunstâncias para poder dar as respostas apropriadas aos desafios que um sistema internacional com fortes turbulências apresenta e construir um mundo inclusivo e mais bem distribuído. 

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