Edição 458 | 10 Novembro 2014

A fé e a ciência nas fronteiras

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Andriolli Costa e Ricardo Machado

A historiadora Eliane Fleck apresenta um panorama da contribuição jesuítica para as ciências naturais e as práticas de cura na historiografia ocidental

Durante muito tempo, a atuação do Tribunal do Santo Ofício – a conhecida Inquisição, da Igreja Católica – promoveu um imaginário negativo da relação entre a religiosidade e as ciências. Acreditava-se, portanto, que as censuras inquisitoriais obstruíram o pensamento científico, especialmente nos países e regiões de colonização ibérica. No entanto, a historiadora Eliane Cristina Deckmann Fleck alerta: esta visão minimiza “o importante papel desempenhado pela sensibilidade científica barroca própria do período – que conjuga a intervenção divina com o experimentalismo – para a ‘formulação de modelos explicativos com validade universal’”. 

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, a professora elenca os modos como os jesuítas conseguiram realizar uma harmoniosa síntese entre ciência e religião, dedicando-se à astronomia, à cartografia, à botânica médica, à física experimental e à história natural. Produzindo, mas palavras do historiador e filósofo da ciência argentino Miguel de Asúa, “uma ciência basicamente barroca com relações tardias com a ciência ilustrada do século XVIII, que esteve a serviço do projeto religioso da Companhia de Jesus”. 

As ciências produzidas pelos jesuítas, especialmente aquela voltada para a medicina e a farmacologia, não podem ser consideradas “precursoras deficientes das ciências atuais ou como cópias insuficientes dos modelos europeus”. Em verdade, são formas independentes e singulares, que surgem do contato direto com a experiência vivida. Assim, ao construir retratos da morte e das doenças, os inacianos tensionam saberes puramente teóricos, “que não puderam escapar à ‘efervescência do contato’”.

Eliane Cristina Deckmann Fleck é graduada e mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Cursou doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, com a tese Sentir, adoecer e morrer – sensibilidade e devoção no discurso missionário jesuítico do século XVII. Ex-coordenadora do curso de História da Unisinos, é docente na mesma universidade. É ainda coordenadora do Convênio de Cooperação Acadêmica entre Grupos de Estudos de Historia do Brasil e Portugal (GEHBP), firmado entre a Universidad de Buenos Aires e a Unisinos.

A professora coordena o seminário A fé e a ciência nas fronteiras: a Companhia de Jesus e as contribuições para uma cultura científica na América, que acontece entre os dias 11 e 13 de novembro, das 09h às 12h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. O evento faz parte da programação do XVI Simpósio Internacional IHU: A Companhia de Jesus da Supressão à Restauração. Confira a programação completa em http://bit.ly/CiaJes2014.  

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Por que só recentemente a imagem negativa do colonialismo ibérico vem sendo desconstruída? Por que havia essa má impressão até o começo da última década do século XX?

Eliane Fleck - As reflexões em torno das múltiplas atividades exercidas pelos membros da Companhia de Jesus sempre dividiram as opiniões dos historiadores. Por mais de quatro séculos, recaiu sobre a Ordem uma apreciação negativa, associando-se a ela a oposição a qualquer inovação no campo da ciência moderna. Segundo Iris Kantor,  entre os principais efeitos da difusão de imagens negativas do colonialismo ibérico difundidas pela historiografia antijesuítica dos séculos XVIII e XIX está a percepção de que a censura inquisitorial, o catolicismo e a Companhia de Jesus obstruíram “o pensamento científico nos países e regiões de colonização ibérica”. Uma posição que acabou por reforçar a existência de uma dicotomia entre prática científica e cultura católica e minimizar o importante papel desempenhado pela sensibilidade científica barroca própria do período – que conjuga a intervenção divina com o experimentalismo – para a “formulação de modelos explicativos com validade universal” (KANTOR, 2010, p. 295-296).  Esta tradição historiográfica se alterou significativamente a partir dos anos noventa do século passado, em decorrência de uma série de investigações que, com base em documentação acessada nos arquivos da Companhia de Jesus em Roma ou em arquivos latino-americanos como os de Buenos Aires, Córdoba e Santiago do Chile, têm contribuído para evidenciar o inegável o papel desempenhado pelos jesuítas na história intelectual do Renascimento e dos inícios da era moderna, bem como para a implantação de uma cultura científica na América, evidência inquestionável do enlaçamento de mundos que a Companhia de Jesus promoveu.

 

IHU On-Line – De que forma os jesuítas contribuíram para a cultura científica no continente americano?

Eliane Fleck - Em artigo de 2005, Antonella Romano já referia a importância do mundo iberoamericano para a história das ciências, ressaltando que a atividade científica da Companhia de Jesus [nos espaços extra-europeus] não se restringiu ao Oriente. Destacou, ainda, quão fundamental era inscrever as atividades da Companhia no mundo americano em uma reflexão sobre a natureza da Ordem e do apostolado missionário. De acordo com Romano, as atividades intelectuais e as ligadas às ciências não são constitutivas da identidade jesuíta, mas um elemento contingente da mesma, devido às interpretações abertas do princípio inaciano de atuar no século. As atividades da Companhia exigiram, sim, “competências científicas”, tanto aquelas que a Ordem viesse a solicitar explicitamente, quanto as que os missionários viessem a acionar nos marcos de seu apostolado (ROMANO, 2005, p. 93-118). 

Para o historiador e filósofo da ciência argentino Miguel de Asúa, os jesuítas conseguiram realizar uma harmoniosa síntese entre ciência e religião, dedicando-se à astronomia, à cartografia, à botânica médica, à física experimental e à história natural e produzindo “uma ciência basicamente barroca com relações tardias com a ciência ilustrada do século XVIII, que esteve a serviço do projeto religioso da Companhia de Jesus” (ASÚA, 2010, p. 472). De acordo com Asúa, os jesuítas teriam ocupado “o cenário cultural e científico do Rio da Prata [...] antes da expulsão da Companhia em 1767”, e desenvolvido, especialmente, nas reduções jesuíticas, uma “interessante atividade científica”, como atestam “as histórias naturais do Novo Mundo e os manuscritos de matéria médica”, evidências de que a Companhia de Jesus era “a frente mais avançada da ciência no Rio da Prata” (ASÚA, 2010, p. 192-193). A historiadora mexicana Ivone Del Valle, por sua vez, tem ressaltado o papel que os jesuítas desempenharam na criação de redes de conhecimento e na formação de uma epistemologia muito particular no século XVIII (DEL VALLE, 2009, p. 240), e, em especial, a importância dos colégios da Companhia de Jesus para a circulação de ideias e para a realização de experimentalismos, das quais resultou tanto a validação, quanto a contestação de práticas e saberes consagrados na Europa. Este aspecto é também destacado por Ledezma e Millones Figueroa, para quem durante o século XVII e o XVIII, o projeto científico da Companhia de Jesus se constituía, efetivamente, em uma alternativa clara e influente no mapa cultural europeu, na medida em que “as mais reconhecidas figuras da intelligentsia jesuíta na Europa refletiram sobre a natureza do Novo Mundo”, a partir das informações que recebiam “dos irmãos e padres jesuítas que atuavam nas áreas coloniais periféricas”, os quais, além de integrarem um grupo “qualificado e confiável [...] ao redor do mundo”, constituíam uma notável rede de “agentes viajantes da Companhia” (MILLONES FIGUEROA, 2005, p. 27-28).

Para além deste aspecto, cabe destacar inúmeras as referências que encontramos nas Cartas Ânuas a obras clássicas de Medicina e a Tratados de Cirurgia, as quais, com certeza, deviam integrar os acervos das bibliotecas de algumas Reduções e de alguns Colégios jesuíticos, com destaque para a Farmacopea, de Palácios; Opera Medica de Hotosmani; dois tomos médicos de Carlos Muretano; Opera Medica e Diccionario Medico, de Ribera; Cirugía, de Robledo; Postemas, de López; Medicina, de Guadalupe; Cirugía, de Vigo; Farmacopea Matricense; Farmacopea, de Ceci; Cirugía, de Vigo e Opera Medica, de Syderas. Vale ressaltar que havia um Catálogo de livros que podiam ser vendidos e enviados às chamadas Indias Ocidentales e no qual constavam obras como Disputaciones de Medicina, de Garcia; De Corpore humana, de Valverde; Cirugía, de Redondo; De morbo galico, de Duarte Madeira; Cirugía, de Borbon, bem como o Promptuario, de Remigio e o Promptuario, de Salazar. A Biblioteca da Universidade de Córdoba contava com obras como Tesoro de Medicina, de Egidio de Villalón; Cirugía Universal, de Calvo; El Tratado de todas las enfermedades, de Francisco Diaz; Tratado de Medicina, de Juan Amato e Los Principios de Cirugía, de Ayala. 

Inventário

O Inventário da botica do Colégio de Córdoba – realizado em fevereiro de 1768, portanto, logo após a expulsão da Companhia de Jesus dos territórios de domínio espanhol – parece confirmar esta afirmação, ao relacionar “‘vinos’, ungüentos, lameadores, aceites, esencias, ‘espíritus’, bálsamos, tinturas y elixires, sal volátil, emplastos, ‘confecciones’, preparaciones y polvos, píldoras, polvos cordiales, harinas, raíces, gomas, suecos, flores y aguas”. Ao lado de preparados à base de nitro-ácido e amoníaco, como os ‘vinos’ e de águas, como a rosada, de melissa e de canela, encontravam-se os polvos extraídos da ipecacuanha, planta medicinal americana. (PAGE; FLACHS, 2010, p. 123). As menções feitas por Pedro de Montenegro – a Riveiro, a Pedro Andrés Mathiolo, a Andrés de Laguna e a Dioscórides e a aplicação de alguns de seus pressupostos, especialmente, nos três primeiros capítulos da Materia Medica Misionera,  parecem confirmar o acesso e a leitura destas obras médicas de referência pelos jesuítas em missão na América.

 

IHU On-Line – A preocupação que os jesuítas demonstraram ter em relação à saúde dos indígenas tratava-se de uma contrapartida da Companhia de Jesus aos habitantes locais, isolados das doenças tipicamente europeias? Por que tinham este cuidado?

Eliane Fleck - É curioso observar que, apesar de os jesuítas terem se dedicado ao alívio dos doentes, tanto na Europa, quanto na América, nem o Direito Canônico, nem as Constituições da Companhia de Jesus consideravam esta atividade como própria de religiosos . Foi somente em 1576, que o Papa Gregório XIII outorgou à Companhia de Jesus permissão para a prática da medicina em regiões onde faltassem médicos e pudessem ser úteis também para os corpos e não somente para as almas . Apesar da proibição do exercício da medicina, as Constituições da Ordem previam que os noviços deveriam fazer estágios em hospital durante um mês, como exercício de humildade e caridade e que fossem nomeados os mais aptos para instalarem farmácias e enfermarias. 

A situação com que se defrontariam os missionários jesuítas ao se instalarem na Província Jesuítica do Paraguai  – que não contava com Protomedicato e, portanto, médicos – seria descrita da seguinte forma pelo padre jesuíta Marcial de Lorenzana, em carta de junho de 1610, dirigida ao Padre Diego de Torres Bollo: “é terra miserável e faltam todas as coisas. Fora raízes de totora  e pescado não existem outros alimentos. Os mosquitos são sem conta... nem de dia nem de noite deixam sossegar os homens, por conta disto minhas mãos e meu rosto parecem de um sarnento ou leproso. Certas vezes, passo um pouco de maçamora de maíz  por não haver outra coisa” (C. A. 1610 In: D.H.A., 1927, Tomo XX, p. 65). 

Alguns registros do século XVII dão conta de que os missionários passaram a estabelecer relação direta entre as condições do ambiente em que haviam sido instaladas as missões, a alta concentração demográfica e as epidemias que atingiam as populações indígenas em processo de civilização e conversão. Muitos deles chegaram a afirmar que as terras pantanosas e com lagunas – mais sujeitas a enchentes e mosquitos – faziam com que muitos padecessem de enfermidades e, ainda, que as igrejas não deveriam servir de cemitérios – como era costumbre general, en no pocas ciudades europeas –, pois, por mais amplas e ventiladas que elas fossem, o enterramento em seu interior era anti-higiênico e favorecia a proliferação de doenças. 

Jesuítas, a doença e a morte

Os missionários também não descuidaram de registrar – de forma bastante detalhada – o processo de evolução das doenças, desde o contágio até as tentativas de cura – empíricas ou mágico-curativas – mais freqüentes nas reduções, como a disenteria, a lepra, o sarampo, a gripe, o tifo e a varíola. Nas descrições que recolhemos nas Ânuas é possível identificar não só a preocupação com o detalhamento da evolução e das medidas de controle das epidemias, como também a percepção ocidental de doença através das imagens que constroem “el retrato de la muerte”. 

No Setecentos, os missionários passaram a adotar, também, algumas medidas de caráter profilático, como o isolamento de doentes, o adequado enterramento e a assepsia dos ambientes. Segundo a Carta Relação de 1747, do Padre José Cardiel,  durante uma epidemia de varíola, foram construídas duas cabanas (que funcionariam como hospital) – distantes da missão – uma para aqueles que apresentavam alguns sintomas e outra para aqueles que já se encontravam em estado adiantado da enfermidade. Referindo-se a uma epidemia de sarampo, Cardiel defendeu que, para que fosse conservada a limpeza da igreja e evitado o mau cheiro, apenas os padres, os corregedores e os membros do presbitério deveriam ser nela enterrados,  ressaltando que o enterramento deveria observar cinco ou seis pés de profundidade e o defunto deveria ser posto num caixão. 

Empenhados em garantir a saúde das almas e dos corpos, os missionários jesuítas, como se pode observar nestes registros, acabariam por conferir uma incontestável originalidade à Companhia de Jesus nos séculos XVII e XVIII, como se pode constatar no conhecimento médico e farmacêutico que produziram e fizeram circularam pelos vários continentes. As Materias Medicas escritas por padres ou irmãos jesuítas se constituem, em razão disso, em fonte privilegiada para a análise do embate em torno das concepções de saúde e doença e da gradativa incorporação da farmacopéia nativa e de terapêuticas curativas indígenas que estes religiosos vivenciaram na América hispânica e portuguesa. Apesar de estes saberes e procedimentos terem sido, inicialmente, alvo de depreciação ou de enfática condenação – por sua eficácia mágico-ritual – os registros jesuíticos dão conta de sua utilização, bem como de experiências com medicamentos feitas por alguns missionários, atestando que as epidemias – e a conseqüente busca pela cura – determinaram uma observação cada vez mais racional da natureza, a sistematização desse conhecimento e sua aplicação prática nas aldeias, reduções e nos povoados próximos aos colégios jesuíticos instalados na América. 

Cartas Ânuas

As Cartas Ânuas jesuíticas, por sua vez, referem a existência de enfermarias e de hospitais, bem como de herbários e boticas nos colégios e nas reduções jesuíticas, atestando tanto a aplicação, quanto a produção e a circulação de conhecimentos médicos e farmacêuticos, visando ao combate das epidemias que atingiam indistintamente indígenas e europeus e ao atendimento dos doentes que buscavam os remédios e o consolo espiritual que somente os padres poderiam lhes dar. Da preocupação em melhor atender os doentes, resultaram algumas iniciativas de coleta e de experimentos com plantas existentes nas imediações dos colégios e das reduções – favorecendo a instalação de herbários e de boticas – e investimentos feitos na aquisição de receituários e de obras de medicina e cirurgia. 

Apesar de não serem “especialistas en la ciencia de Galeno y en Farmacopea”, os jesuítas – dada a sua atuação como médicos e boticários – seguramente procuraram suprir a falta de conhecimentos, importando livros editados na Europa e incorporando-os as suas bibliotecas, como atestam tanto as Cartas Ânuas, quanto os inventários dos bens da Companhia de Jesus na América após sua expulsão. Também os conhecimentos obtidos a partir de experimentos, especialmente, sobre o preparo de medicamentos e a adoção de medidas profiláticas, foram compartilhados através da intensa correspondência que os missionários mantiveram entre si ou das cópias dos catálogos e receituários  que fizeram circular entre as reduções e os colégios das Províncias Jesuíticas da América meridional e aqueles instalados na Europa – em especial, com a farmácia do Colégio Romano – e também no Oriente. (ANAGNOSTOU, 2000) Algumas boticas – como a do Colégio San Pablo, de Lima – transformaram-se, com o passar do tempo, em centro de referência, enviando medicamentos – como o bezoar peruano, a ambrosia mexicana e a quina – para estabelecimentos da Companhia de Jesus no Chile, Paraguai, Argentina, Equador, Panamá e no Velho Mundo, atestando a intensa circulação de saberes, medicamentos e práticas curativas.

 

IHU On-Line – Qual foi a principal contribuição dos jesuítas à ciência moderna, principalmente à medicina e à farmacologia? Quais as especificidades no contexto latino-americano?

Eliane Fleck - No que se refere, especificamente, ao apostolado na América portuguesa e na espanhola, é preciso considerar que os missionários se defrontaram com questões que tiveram de ser resolvidas localmente, e que deste processo de contato resultaram alterações em suas concepções teológicas e “científicas” – com as quais, seguramente, entraram em contato durante seu período de formação –, que não puderam escapar à “efervescência do contato”. Haddad propõe que muitos jesuítas estiveram muito mais próximos do que se definiu como “missionário típico”, aquele que enfrentou “os problemas concretos da alteridade, da conversão e da própria construção dos impérios com o material que tinha efetivamente à sua disposição” (HADDAD, 2014, p. 13). O historiador equatoriano Jorge Cañizares Esguerra, por sua vez, propõe que tomemos estes irmãos e padres da Companhia como “pensadores”, que, apesar de habitarem regiões marginais no cenário intelectual do período - áreas tidas como receptoras de conhecimentos produzidos em outras partes do mundo –, foram decisivos na construção de determinados conhecimentos. 

Neste processo, muito contribuíram as bibliotecas e as boticas instaladas nos colégios, reduções e fazendas da Companhia de Jesus, que não apenas evidenciariam a penetração e a apropriação de ideias, como também o diálogo que os membros da Ordem mantinham com a ciência e a filosofia modernas, em sintonia com “o gosto e o respeito pelo trabalho intelectual [...], segundo um ‘modo de proceder’ [...] que marcou suas atuações e no qual se inscreveu um ‘dever de inteligência” (GIARD, 2005, p. 14). As epidemias – e a conseqüente busca pela sua cura – determinaram, sem dúvida, uma observação cada vez mais racional da natureza, a sistematização desse conhecimento e sua aplicação prática tanto nas reduções, quanto nos povoados próximos aos colégios jesuíticos. 

Providências como o treinamento de enfermeiros e a confecção de instrumentos cirúrgicos, além de medidas como o isolamento de doentes, o adequado enterramento e a assepsia dos ambientes das enfermarias e hospitais também foram tomadas pelos missionários jesuítas nas reduções da Província do Paraguai. Considerando-se, especificamente, as contribuições de religiosos jesuítas à Medicina e à Farmácia, cabe destacar as Materias Medicas escritas por Pedro Montenegro e Segismund Asperger, que foram, inegavelmente, os pioneiros no levantamento das virtudes terapêuticas e na aplicação da farmacopéia nativa no século XVIII, do que resultou a introdução do uso de ervas, resinas e folhas como “la jalapa,  la quina,  la coca, el bálsamo,  la poligala,  la zalzaparilla.” 

 

IHU On-Line – Quais são os principais nomes da Companhia de Jesus que contribuíram para a ciência no continente sul-americano? Por que seus trabalhos se tornaram notáveis?

Eliane Fleck - Para além da Medicina e da Farmácia, alguns religiosos jesuítas se dedicaram também à Astronomia. Dentre eles, podemos destacar o padre Nicolas Mascardi,  que não apenas se dedicou ao estudo de fenômenos naturais explicados pela Astronomia – como os eclipses lunares e solares, os solstícios e as marés – nas reduções e no colégio em que atuou, mas também compartilhou suas observações com outros jesuítas ou cientistas, através de cartas escritas durante o período de sua experiência americana. Para além das observações, das aferições através de instrumentos e dos registros destes fenômenos, o missionário Mascardi também teceu considerações sobre a cosmogonia dos Mapuches, indígenas com os quais ele conviveu enquanto atuou na Vice-Província Jesuítica do Chile, e sobre a dos Poyas e Puelches, grupo que ele contatou durante as explorações que realizou pela atual Patagônia argentina.  [pesquisa que se encontra em andamento]  Além das viagens exploratórias empreendidas pelo Chile, que se estenderam pelas atuais regiões da Araucanía, Los Rios e Los Lagos, somam-se ainda ao menos quatro viagens pela atual Patagônia argentina, alimentadas pela busca a Cidade dos Césares. 

De acordo com Artur Barcelos, noticias sobre a existência desta cidade fantástica circulavam entre os jesuítas já desde o século anterior, tendo o Padre Nicolas Marcardi recebido informações sobre sua localização através da filha de um cacique Poya da região, capturada pelos brancos em 1649. Em busca dos “césares”, Mascardi viajou para a área do lago Nauel Huapi em 1669, onde estabeleceu a missão de Nuestra Señora de los Poyas del Nahuel Huapi, que passou a ser um centro, ainda que precário, para a evangelização dos grupos da região  (BARCELOS, 2006, p. 228). Ao transitar por esta vasta região, que hoje forma a Patagônia, Mascardi esteve em contato com diversos grupos nativos. Podemos citar os Mapuches nas missões de Arauco, os Hulliches e os Chonos em Chiloé e no Arquipélago dos Chonos, respectivamente. 

Buenaventura Suárez

É importante também destacar a atuação do padre Buenaventura Suárez. Filho de uma família criolla abastada, Suárez nasceu em Santa Fé, a 14 de julho de 1679, e faleceu em 1750. Sabe-se que ingressou na Companhia de Jesus em 1706 e que, aos 22 anos, já era sacerdote, tendo atuado em várias reduções, nas quais construiu instrumentos para observações astronômicas. Consta que diante da falta de vidro para as lentes de aumento dos telescópios, ele teria recorrido a cristais de quartzo polido, os quais, segundo Tavares & Araújo (2012, p. 114), possuíam propriedades ampliadoras muito semelhantes as que eram largamente empregadas dentro dos mosteiros na Europa. Neles, o berilo, quartzo e outras pedras preciosas eram lapidados e polidos, a fim de produzir a chamada “pedra-de-leitura”, um tipo de lupa muito simples. 

Além do auxílio na procura por recursos locais, Suárez também deve ter recorrido aos indígenas para auxiliá-lo na construção e no manejo dos equipamentos – que tinham entre 2,2 e 4,6 metros de comprimento (KRIEGLER & VILLEGAS) –, o que parece sugerir que possa tê-los treinado também na coleta de dados astronômicos. No ano de 1745, a ordem chegou a enviar o que havia de mais moderno à época em equipamentos para que Suárez pudesse continuar com suas observações astronômicas, que resultaram no Lunario de un siglo. (LONCARICA; BORTZ, 2005), obra de 1748, na qual ele chegou a afirmar que: “Hize este Lunario, util para la Agricultura, y la Medicina” (SUÁREZ, 1752, p. A4). Estes registros, contudo, implicam uma necessária a reflexão sobre o envolvimento de indígenas na construção destes aparelhos e nas observações astronômicas, considerando-se os registros que os missionários nos deixaram sobre a cosmogonia e cosmologia dos grupos indígenas com os quais conviveram. 

Se, como disse a antropóloga Branislava Susnik (1985, p. 26), referindo-se aos grupos chaquenhos, os indígenas davam “vida” e “alma” aos fenômenos meteorológicos, cabe-nos ainda avançar muito nas nossas reflexões sobre as trocas de saberes relativos à astronomia entre ocidentais e nativos, pensando-as como uma relação complexa e instável, constituída por momentos de aproximação/apropriação e outros de retração/negação, em muito semelhantes aos momentos que caracterizaram as experiências jesuíticas no território americano. Já os manuscritos de medicina, como o escrito pelo irmão Pedro Montenegro, que analisamos mais detidamente, parecem, efetivamente, apontar para a conformação, já nas primeiras décadas do século XVIII, de uma epistemologia particular nas denominadas “zonas periféricas” dos impérios ibéricos. Uma “escritura liminal”, que ocuparia “un lugar intermedio entre el orden letrado y las fronteras” (DEL VALLE, 2009, p. 14-15).

 

IHU On-Line – Em que medida o conhecimento médico e farmacêutico estudado e catalogado pelos jesuítas resultava, também, de uma apropriação dos habitantes locais? Qual foi a contribuição dos indígenas nesse processo?

Eliane Fleck - Em artigo publicado em 2011, a doutora em Farmácia Sabine Anagnostou afirma que se, por um lado, “a história natural e a farmácia missioneira podem ser consideradas como as duas facetas principais do naturalismo jesuítico na América do Sul”, por outro, não devem ser percebidas como “precursoras deficientes das ciências atuais ou como cópias insuficientes dos modelos europeus, mas como formas independentes e singulares da história da ciência.” (ANAGNOSTOU In: WILDE, 2011, p. 175). Esta singularidade, segundo ela, fica evidenciada na “experimentação e na incorporação do saber etnofarmacêutico indígena”, que decorreu da “posição relativamente imparcial e aberta dos jesuítas frente aos indígenas, baseada na espiritualidade inaciana”, que possibilitou “um intercâmbio intenso e persistente no campo da medicina.” (ANAGNOSTOU In: WILDE, 2011, p. 190). 

Encarregados também das cópias de cartilhas com orientações para evitar ou minimizar os efeitos do contágio durante epidemias, de fórmulas de medicamentos, recolhidas diligentemente em receituários, e de obras de botânica, medicina e cirurgia, muitos destes indígenas copistas tornaram possível a troca e a disseminação de uma série de saberes e práticas de cura entre as distintas e distantes terras de missão da Companhia de Jesus.  Já a historiadora argentina Maria Silvia Di Liscia ressalta que a incorporação dos conhecimentos indígenas pelos jesuítas consistiu num “processo de grande complexidade, iniciado com a aprendizagem das línguas indígenas, dos costumes e do entorno, da conservação das plantas e de seu cultivo em herbários anexos às reduções e aos colégios jesuíticos […] até chegar à experimentação de determinados compostos nos pacientes e, na sequência, à sistematização de toda a informação por escrito.” (DI LISCIA, 2002a, p. 49). 

A estreita relação entre saberes indígenas e a ciência da Ilustração pode ser, segundo ela, constatada em obras escritas por missionários jesuítas, como o irmão Pedro Montenegro e os padres Sanchez Labrador, Martin Dobrizhoffer e Florián Paucke.  Nesta perspectiva, a análise das trajetórias de vida de jesuítas que se dedicaram à ciência e de obras como, por exemplo, a Materia Medica Misionera, de 1710, atribuída ao irmão Pedro Montenegro, permite não apenas a reconstituição do conhecimento científico difundido e produzido ao longo do século XVII e nas primeiras décadas do século XVIII na América platina (LEDEZMA; MILLONES FIGUEROA, 2005, p. 10),  mas também a avaliação da apropriação de saberes e de práticas das populações nativas americanas, que pode ser constatada nos receituários e nos catálogos de plantas medicinais, que nos oferecem uma sistematização da farmacopéia americana.  

 

IHU On-Line – Como os estudos dos jesuítas foram preservados durante o período de supressão da Companhia de Jesus? Por outro lado, é possível estimar o que foi perdido nesse período?

Eliane Fleck - Pode-se ter uma ideia das atividades científicas que os jesuítas desempenharam e do conhecimento que produziram e fizeram circular através da análise dos inventários dos bens realizados após a expulsão da Ordem dos domínios coloniais ibéricos, e nos quais se encontram relacionados não apenas remédios, mas também instrumentos cirúrgicos, livros – impressos e manuscritos – e receituários. Considerando-se, especificamente, o Inventário formado por Lorenzo Infante Boticário en la Ciudad de Córdoba de los bienes medicinales, Julio de 1772, que se encontra no Archivo Histórico de la Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Documentos de la Junta de Temporalidades de Córdoba. Caja 10, legajo 2, nº 27, fólios 4533r-4628 r., encontramos uma grande quantidade de fármacos, o que nos permite especular que a botica do Colégio de Córdoba e seus encarregados tinham, não só a sua disposição medicamentos químicos importados da Europa, como também manuais de química farmacêutica – que tiveram grande circulação na Europa já nas primeiras décadas do século XVIII – e, muito provavelmente, condições [equipamentos e, até mesmo, um laboratório] para o preparo de remédios que exigissem manipulação química.  

 

IHU On-Line – A que se dedicaram os jesuítas responsáveis pelos escritos científicos latino-americanos durante a supressão? Como e onde viveram?

Eliane Fleck - Considerando, especificamente, o projeto de pesquisa que venho desenvolvendo atualmente junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS, destaco os estudos sobre a flora e a fauna americana realizados, ainda no século XVIII, pelo padre José Sánchez Labrador,  autor do Paraguay Natural Ilustrado, que foi escrito entre 1771-1772, durante seu exílio em Ravena, na Itália, portanto, após a expulsão da Companhia de Jesus dos domínios coloniais ibéricos. Esta obra, que se encontra sob a guarda do Arquivo Romano da Sociedade de Jesus (ARSI), em Roma, e permanece ainda inédita,  se subdivide em seis tomos que reúnem informações sobre zoologia e botânica  da vasta região que compreendia a Província Jesuítica do Paraguai. Também a obra Historia de Los Abipones. Una Nación Ecuestre y Belicosa de Paracuaria, do padre Martin Dobrizhoffer, foi escrita entre 1777 e 1782, durante o exílio, em Viena. A obra foi publicada originalmente em latim, em 1784, e conta com três volumes. O primeiro faz um apanhado geral sobre a Província Jesuítica do Paraguai, trazendo elementos sobre a fauna e flora da região, e também sobre o curso dos rios e sobre diversas cidades locais.

Leia mais...

- Práticas xamanísticas nas missões. Entrevista com Eliane Fleck publicada na edição 344 da IHU On-Line, de 21-09-2010.

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