Edição 458 | 10 Novembro 2014

O Compasso e a Cruz. Reconfigurações territoriais a partir da presença jesuíta nas Américas

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Andriolli Costa

O historiador Artur H. F. Barcelos ressalta que os inacianos, tal qual conquistadores europeus, contribuíram explorando terras, mapeando a flora e cativando almas para a Coroa

Em todo o continente americano, do Canadá até a Terra do Fogo, os jesuítas deixaram suas marcas. Na busca por espalhar a palavra, exploraram os rincões mais ermos e tiveram contato em primeira mão com as populações originárias. Mais do que isso, como lembra o historiador Artur Henrique Franco Barcelos, “mapearam cada palmo percorrido; descreveram populações, relevos, flora e fauna e chegaram a alguns lugares muitas vezes antes mesmo dos conquistadores espanhóis”. Nesse sentido, os jesuítas foram eles próprios conquistadores. “Não apenas de almas, mas de territórios que, através de alianças com indígenas, colocavam sob domínio de suas respectivas coroas, fosse de Espanha, Portugal ou França.” 

Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor reflete sobre o modo como a presença jesuíta foi fundamental para estabelecer e alterar territórios e territorialidades, com foco especial para a América Espanhola — onde as reduções Guarani são ainda hoje reverenciadas como uma experiência avançada de convívio e administração comunal. No entanto, ele alerta: “É comum vermos comentários de que uma grande experiência foi destruída; de que os índios foram abandonados à sua própria sorte e incapacidade; de que os jesuítas foram os ‘arquitetos’ da melhor experiência já vivida nestas terras”. 

No entanto, essa perspectiva mascara uma imagem de inabilidade indígena para dar sequência à administração das reduções. Como homens de seu tempo, Barcelos ressalta que os jesuítas “também desconfiavam das capacidades intelectuais dos índios”. Por isso, reservaram para si as informações sobre como tocar adiante o sistema de intercâmbios que dava sustentação aos povoados. Com isso, após a expulsão da Companhia, foi impossível dar continuidade aos trabalhos. “Logo, aquele vasto território, explorado e administrado pelas reduções, foi sendo apropriado por outros agentes, incluindo-se aí o avanço português que se deu sobre as terras a oriente do rio Uruguai”. 

Artur Henrique Franco Barcelos é mestre e doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica – PUC-RS. Atualmente é professor de Arqueologia da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. É autor de diversas publicações, das quais destacamos Espaço e arqueologia nas missões jesuíticas: o caso de São João Batista (Porto Alegre: Edpucrs, 2000) e O Mergulho no Seculum: exploração, conquista e organização espacial jesuítica na América espanhola colonial (Porto Alegre: Editora Animal, 2013). Produziu ainda O compasso e cruz. Cartografia jesuítica da América Colonial, em CD, no ano de 2006.

O professor participa da Mesa-Redonda O compasso e a cruz: jesuítas e a organização territorial nas Américas, no dia 12 de novembro, das 14h às 16h30min, na Sala 1F 101, na Unisinos. O evento faz parte da programação do XVI Simpósio Internacional IHU - Companhia de Jesus. Da supressão à restauração, e a programação completa pode ser encontrada em http://bit.ly/CiaJes2014. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Quais os nexos entre os jesuítas e a organização territorial nas Américas? 

Artur Henrique Franco Barcelos – Os nexos, ou seja, as relações diretas, entre os jesuítas e a organização territorial nas Américas são muitos. Desde 1549, com a chegada dos primeiros jesuítas na América portuguesa, até 1767, ano da expulsão da ordem nos territórios espanhóis, os inacianos atuaram em quase todo o continente. Do atual Canadá até a Terra do Fogo, encontraremos registros das atividades dos jesuítas. Fundaram colégios e universidades. Administraram estâncias, fazendas e engenhos. Exploraram rios, montanhas, florestas, geleiras e desertos. Mapearam cada palmo percorrido. Descreveram populações, relevos, flora e fauna. Chegaram a alguns lugares muitas vezes antes mesmo dos conquistadores espanhóis. E, neste sentido, foram eles também conquistadores. Não apenas de almas, mas de territórios que, através de alianças com indígenas, colocavam sob domínio de suas respectivas coroas, fosse de Espanha, Portugal ou França. 

Podemos dizer que a própria forma de atuação priorizada pelos jesuítas com base na fundação de reduções indígenas já significava uma profunda alteração na organização territorial anterior a chegada dos europeus. De fato, a prática de reunir grupos que se encontravam em assentamentos distintos, nas várias formas de aldeamentos existentes por todo o continente, implicava em reacomodações populacionais e econômicas. Para que o sistema de reduções funcionasse, foi preciso pensar em recursos hídricos e alimentares para grupos maiores assentados em novos núcleos. Assim, modos tradicionais de exploração do solo e dos recursos de fauna e flora tiveram que ser alterados. Em alguns casos drasticamente alterados. 

Se pegarmos apenas os indígenas denominados genericamente de Guarani, e que foram reduzidos em trinta povoados ao longo dos séculos XVII e XVIII na região platina, veremos uma profunda alteração nas formas de territorialização. A introdução de cultivos de algodão e erva-mate e, sobretudo, o pastoreio de gado bovino, equino e muar, provocou novas formas de uso e apropriação do solo. A rede de caminhos terrestres e fluviais que interligava os povoados também implicou em outra concepção de espaço, não mais aldeão, mas sim integrado, e baseado em núcleos urbanos, com edificações, praças e ruas que eram o centro de um grande território. 

Somadas, as trinta reduções exploravam enormes porções do solo, matas e rios. O que, no dizer da historiografia, acabou conhecido como “espaço missioneiro”, uma ficção sobre a qual ainda teorizamos até hoje. Ou seja, a alteração de uma economia de tipo “doméstico-familiar”, como conceituou José Otávio Catafesto de Souza , levou a formas de exploração do território cuja dimensão ainda nos escapa por completo. Gerar recursos para dar sustentabilidade não mais a 40, 50 ou em alguns casos, talvez, 400 indivíduos, mas sim para 3, 4 ou 5 mil habitantes de um povoado, pensando ainda em algum excedente para trocas no mercado interno colonial, foi um desafio que tiveram que enfrentar indígenas e jesuítas pactuados em torno de uma nova realidade espacial. De diferentes formas, por toda a América, os jesuítas tentavam adotar a prática de evangelização via concentração em núcleos estáveis. E assim, provocaram uma transformação considerável em algumas regiões, englobando populações indígenas na estrutura colonial. 

 

IHU On-Line – Que lógica orientou a ocupação do espaço platino pelos jesuítas nos séculos XVII e XVIII?

Artur Henrique Franco Barcelos – Se houve uma lógica, e penso que foram muitas, seria a da reorganização da vida cotidiana das populações indígenas com as quais tiveram contato. Tendo como base os colégios instalados nas vilas e cidades coloniais espanholas, os jesuítas trataram de montar um sistema que permitisse a promoção da evangelização dos grupos indígenas através da concentração de grupos em assentamentos estáveis. Resultam daí os êxitos ou fracassos, de acordo com os objetivos dos inacianos. Digo reorganização, pois disto se trata. Todos os grupos indígenas, independente de sua configuração social e econômica, possuíam formas próprias de organização política e territorial antes do contato com os agentes colonizadores, entre estes os jesuítas. Na Região Platina, se a tomarmos em uma máxima extensão que o conceito possa alcançar, habitavam grupos diversos, baseados na caça, coleta, horticultura, pesca e extração nativa. 

Obviamente que uma única forma de evangelizar e levar a alteração das pautas culturais destes grupos ao encontro dos objetivos religiosos e coloniais não seria viável, como de fato não o foi. Assim, vemos como os jesuítas tiveram grandes dificuldades com alguns grupos, como, por exemplo, aqueles que habitavam o vasto pampa em ambas as margens dos rios da Prata, Paraná e Uruguai, e lograram algum sucesso com horticultores aldeões das florestas subtropicais. Do acumulado até agora pela vasta historiografia que trata do tema, pode-se dizer que não havia um projeto preconcebido pelos jesuítas ao iniciar suas ações evangelizadoras. Foram as tentativas, ensaios e erros, que demonstraram o que era possível e o que não era possível realizar. E isto ao longo de aproximadamente 150 anos. O que fica claro é o fato de que, talvez na Região Platina, e sobretudo nas reduções formadas majoritariamente por Guarani, os jesuítas chegaram mais próximo do ideal da “República de Índios”, uma aspiração utópica colonial que previa a segregação espacial e social dos indígenas, mas que considerava a necessidade de que os mesmos vivessem dentro de padrões sociais, políticos e econômicos análogos aos dos colonos espanhóis. E isto significava a profunda alteração de suas vidas cotidianas, em todos os aspectos possíveis, a começar pela forma de organização espacial que seria necessária para tanto. 

IHU On-Line – Que avanços na territorialização americana são tributários às ações dos Jesuítas? 

Artur Henrique Franco Barcelos – Aqui, é preciso primeiro pensar no sentido que atribuiremos a “avanço”. Se pensarmos do ponto de vista dos objetivos da colonização, as ações dos jesuítas significaram diversos avanços. A reorganização espacial de populações indígenas, por exemplo, permitiu a liberação de áreas para a apropriação colonial. A reorganização econômica de algumas destas populações permitiu seu enquadramento em circuitos de produção e trocas comerciais internas que favoreceram, e em alguns casos até garantiram, a sobrevivência e desenvolvimento de núcleos urbanos espanhóis. A “pacificação” de grupos resistentes deu margem para as investidas coloniais sobre seus territórios ancestrais. Há que se considerar até o caso, por exemplo, da arregimentação de forças indígenas para as guerras internas e externas do colonialismo espanhol, como sucedeu com a utilização de milícias das reduções guaranis nos conflitos de fronteiras com os portugueses na Região Platina. Ou o caso emblemático da Califórnia, onde a entrada dos jesuítas no final do século XVII preparou e garantiu a colonização da península pelos espanhóis. Por outro lado, as expedições jesuíticas permitiram um reconhecimento de áreas do continente que trouxe aos agentes da colonização informações muitas vezes cruciais sobre as populações, características geográficas, recursos, rotas de acesso e potencial econômico sobre as mesmas. E há ainda a vasta cartografia produzida por jesuítas e que foi amplamente utilizada pelos colonizadores antes e depois da expulsão dos jesuítas dos territórios espanhóis em 1767. 

 

IHU On-Line - De que forma a entrada dos Jesuítas nas tribos Guarani redimensiona as relações de poder na aldeia?  

Artur Henrique Franco Barcelos – Seguindo o caminho já palmilhado por aqueles que os antecederam na conquista e colonização da América, os jesuítas buscaram sempre o contato inicial com los cabezas ou los principales dos grupos indígenas que pretendiam evangelizar. A própria palavra Cacique deriva de idioma da região antilhana e parece ter sido adaptada pelos espanhóis a outras chefias indígenas. A expressão política das lideranças guaranis está relacionada à estrutura macrofamiliar que caracterizava, e ainda caracteriza, em que pesem as mudanças transcorridas, este grupo até os dias de hoje. Um dentre os patriarcas dos Tevýs (famílias extensas) exercia a chefia política. Porém esta estava determinada por uma série de formas de prestígio, alcançadas através de laços de parentesco e alianças. Acessar estas estruturas era a chave do sucesso nos contatos. Eu tenho buscado nas fontes jesuíticas as práticas de aproximação e me deparo sempre com intermediários indígenas que, antecipando-se aos missionários, anunciavam sua presença e negociavam as visitas iniciais. José Gumilla , que foi missionário na Província do Nuevo Reino (partes da atual Venezuela, com principal raio de ação no rio Orinoco), escreveu inclusive um Método mais praticável para a primeira entrada, no qual chama aos colaboradores de “mensageiros”.

Em geral, estes mensageiros levavam obséquios para os chefes, na forma de facas, agulhas e lâminas de machado. Estas últimas parecem ter sido um elemento importante da fase de aproximação. Gumilla destaca que deveriam saber quais os interesses dos indígenas com sua presença para, logo depois, colocar em ação os interesses da Companhia: “...y este mismo rumbo debe seguir el misionero que de veras desea la salvación de aquellas almas, lo cual doy por muy cierto, porque en aquellos destierros no hay otra cosa que buscar: vamos con la suya, que es su interés, y salgamos con la nuestra, que es asegurarlos y domesticarlos para enseñarles la santa doctrina”. 

Assim, ainda é preciso aprofundar a questão destes “mensageiros” e, sobretudo, de suas mensagens. Esta é uma tarefa difícil, pois as vozes indígenas são sempre filtradas pelas letras jesuíticas. Da mesma forma, há que se buscar compreender melhor estes contatos, pois deles resultavam as alianças políticas que iriam perdurar ou não. No caso dos guaranis há uma farta documentação e trabalhos publicados sobre as estratégias jesuíticas para a cooptação dos chefes políticos. Arno Kern  já havia tratado disto de forma consequente em seu Missões, uma utopia política. E o prestígio foi um dos elementos largamente explorados pelos jesuítas, ancorados é claro na legislação colonial espanhola que respaldava o tratamento distinto aos chefes indígenas, concedendo-lhes, inclusive, o tratamento de Don. O que é preciso avançar, e de fato alguns colegas o estão fazendo, dentre os quais destaco Guillermo Wilde  e Kazuhisa Takeda , é a forma como, uma vez conquistado o acordo com os chefes, se deu a acomodação de distintas lideranças em uma mesma redução. 

Outro ponto importante diz respeito aos Cabildos dos povoados. Esta instituição, estabelecida nas reduções, precisa ser melhor conhecida. É preciso verificar se, de fato, chegaram a ter um papel preponderante na administração política das reduções. Do ponto de vista burocrático, os poucos documentos gerados pelos Cabildos e que chegaram até nós são quase todos da segunda metade do século XVIII, com um incremento durante a chamada Guerra Guaranítica, ponto crítico da história daquelas reduções. Estamos começando a compreender as agências indígenas que estiveram presentes nos conflitos políticos que envolveram estas reduções. E o papel das lideranças é um deles. Um caminho interessante é a análise do que se passou nos anos imediatamente posteriores à expulsão dos jesuítas, quando, apesar de haver administradores laicos nomeados pelo Estado, os guaranis de algumas antigas reduções parecem ter tentado assumir o protagonismo na defesa de seus interesses. 

 

IHU On-Line - Como as próprias territorialidades nos entornos das reduções são modificadas com a chegada da Companhia de Jesus? 

Artur Henrique Franco Barcelos – Este é um dos temas sobre o qual historiadores e arqueólogos têm ainda uma pauta pendente. Fomos convencidos, desde o tempo em que os jesuítas ainda estavam à frente das reduções, de que estas e seus entornos estavam totalmente integrados. Foi preciso algum tempo para percebermos que a ideia de um “espaço missioneiro” integrado e controlado pelos jesuítas e os índios reduzidos não era exatamente uma realidade. É certo que nas áreas imediatamente próximas aos núcleos urbanos a territorialidade foi profundamente alterada. Áreas de cultivo, tambos, olarias, currais, hortas, caminhos, fontes de água, entre outros, representam elementos espaciais que formavam uma unidade produtiva. Porém, as áreas assinaladas a cada redução eram muito mais amplas, como alguma cartografia permite verificar. Desta forma, pouco sabemos sobre grupos que podem ter continuado coexistindo com as reduções, dentro dos marcos amplos de seus territórios. 

Recordo que, em 1992, durante o I Sítio Escola Internacional das Missões, coordenado por Arno Kern, uma equipe percorreu um amplo território em torno das ruínas da antiga redução de São Miguel. Esta equipe, coordenada por Klaus Hilbert, realizou prospecções e identificou diversos sítios arqueológicos com ocorrência de material lítico e cerâmico. A falta de datações destas ocorrências não nos permite afirmar se eram registros de presenças anteriores, concomitantes ou posteriores às reduções. Porém, fica a questão de saber se mesmo com a concentração de milhares de indígenas nos núcleos urbanos, não houve a permanência de alguns grupos em meio às matas, tentando manter o modo de vida tradicional. Por outro lado, é certo, e trabalhos recentes vêm demonstrando, que algumas das reduções possuíam territórios que abarcavam áreas de pampa, onde tradicionalmente viviam grupos denominados como charruas, minuanos, guenoas, entre outros. E algumas parcelas destes grupos chegaram mesmo a ser reduzidas. Porém, a maior parte manteve sua forma de vida com base em acampamentos de curta e média duração, intercalando sua forma tradicional de economia com as trocas realizadas com os colonizadores. Os próprios jesuítas deixaram um ou outro registro de que estes indígenas seguiam utilizando o espaço que, em tese, estaria sob domínio das reduções. A cartografia jesuítica e seus textos permitem ver claramente que a territorialização foi um dos elementos mais difíceis de desestruturar no que toca aos grupos que resistiram à evangelização. 

 

IHU On-Line - Quais as peculiaridades do espaço e arqueologia das missões jesuíticas nos Sete Povos? O que elas dizem sobre as relações estabelecidas do local?

Artur Henrique Franco Barcelos – Em primeiro lugar, eu gostaria de frisar que o termo Sete Povos nos induz ao equívoco de uma realidade à parte, separada das demais reduções que existiram para além da margem oeste do rio Uruguai. Isto é obra de uma historiografia riograndense que tratou de separar identidades na construção das histórias regionais platinas. Digo isto porque os trabalhos de arqueologia desenvolvidos nos remanescentes das reduções tratam de um tema em comum, o que deveria suscitar mais diálogos e trocas entre brasileiros, argentinos, uruguaios e paraguaios, em que pesem os esforços feitos até a atualidade. No caso dos sítios localizados no território brasileiro, houve intervenções e pesquisas que, em sua grande maioria, foram centradas nos vestígios dos núcleos urbanos. É preciso avançar no estudo de estruturas que compunham o conjunto dos territórios das reduções, como são os caminhos, pontes, portos, capelas, postos de estâncias, entre outros. Isto traria mais elementos para pensar a territorialização e a organização espacial. Justamente quando tratamos de relações estabelecidas, é frequente se destacar a acomodação paulatina dos guaranis ao novo modo de vida inaugurado com as reduções. Isto pode nos induzir ao equívoco de ver uma nova identidade sendo forjada, em detrimento de práticas ancestrais abandonadas. Porém, como saber se o mesmo ocorria quando estes guaranis circulavam por amplos espaços, percorrendo diferentes locais que serviam ao funcionamento do sistema. 

Afortunadamente, o diálogo entre arqueólogos e historiadores é razoavelmente bom em nosso caso. Contudo, há ainda, por parte dos arqueólogos, que reforçar o apelo às fontes documentais gráficas e as formas de lidar com as mesmas. Hoje, em tempos de investimento em pesquisas que visam o protagonismo indígena ao largo da história americana, é importante que o tema das Missões Jesuíticas seja abordado a partir desta premissa. Deslocar o missionário do centro das atenções e buscar a contribuição real e efetiva dos indígenas nas resultantes deste processo. Quando vemos estas reduções em uma perspectiva mais ampla, com territórios muito grandes, marcados por diferentes formas de uso e controle, temos que concordar que os jesuítas jogaram um papel menor em sua administração e manutenção. Mas para tanto, insisto, é preciso que os projetos e estudos voltados para as missões, e me refiro aos arqueológicos, encontrem espaços de trocas e intercâmbios. 

 

IHU On-Line – Com a expulsão dos jesuítas e a iminente supressão da Ordem, houve retrocesso no desenvolvimento territorial das regiões anteriormente coordenadas pela Companhia?

Artur Henrique Franco Barcelos – Indubitavelmente, a expulsão dos jesuítas, da forma como se deu, acarretou em uma crise e redefinição, no dizer de Júlio Quevedo , para aqueles que atuavam junto aos inacianos em todas as suas esferas americanas. Não apenas nas reduções indígenas, mas também nos colégios, sítios, chácaras, estâncias, universidades, fazendas, engenhos, etc. Pois de fato, o rol de atuação dos jesuítas, embora destacado pelo trabalho evangelizador, extrapolou em muito este último e, ao se dar a expulsão, deixou para trás uma estrutura minimamente integrada que rapidamente colapsou. Especificamente no que toca as reduções, até pelo menos a década de 90 do século XVIII houve margem para uma manutenção das posses de cada povoado e sua transição para unidades político-administrativas espanholas, como quaisquer outras. Contudo, a tutela jesuítica exercida por mais de 150 anos, o preconceito real e explícito para com os indígenas, os interesses econômicos das elites locais e os processos de Independências do início do século XIX levaram ao esgotamento desta brecha. Este é um ponto complexo desta larga história. O declínio acelerado destes povoados após 1767 faz transparecer uma inabilidade indígena para dar sequência à administração das reduções. 

Porém, não se pode perder de vista que a autonomia destes indígenas não parece ter sido o objetivo último dos jesuítas, que, como homens de seu tempo, também desconfiavam das capacidades intelectuais dos índios. Por outro lado, a centralidade de informações e decisões que a Companhia de Jesus reservou para si não preparou os guaranis para assumir a frente do sistema de intercâmbios que dava sustentação aos povoados. Logo, aquele vasto território, explorado e administrado pelas reduções, foi sendo apropriado por outros agentes, incluindo-se aí o avanço português que se deu sobre as terras a oriente do rio Uruguai. O que preocupa desta imagem gerada sobre os tempos “áureos” das reduções, em contraste com o pós-jesuítico, é justamente o desprestígio relegado aos guaranis. Mesmo hoje em dia, quando vemos os visitantes percorrendo as ruínas no Brasil, Argentina e Paraguai, ou assistindo ao show de som e luz em São Miguel das Missões e San Ignácio Mini, percebe-se uma certa melancolia ao final. É comum vermos comentários de que uma grande experiência foi destruída; de que os índios foram abandonados à sua própria sorte e incapacidade; de que os jesuítas foram os “arquitetos” da melhor experiência já vivida nestas terras. Assim, passado e presente se fundem no senso comum, resultando na visão ainda vigente de que os indígenas, sem a tutela dos brancos, muito pouco ou quase nada podem fazer. 

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar mais alguma coisa? 

Artur Henrique Franco Barcelos – Apenas destacar a vitalidade que o tema da presença jesuítica na América ainda demonstra. De fato, nos últimos vinte anos em que venho acompanhando as pesquisas sobre os missionários jesuítas e suas atividades americanas, pude ver a ampliação de aspectos que vêm sendo levantados por meus colegas. Dentre estes, percebe-se um crescente interesse no protagonismo indígena, nas relações de poder, nas trocas culturais e nas alterações profundas transcorridas ao largo dos séculos XVI, XVII e XVIII. Também vemos a relevância das formas de resistência e adaptação dos indígenas ao impacto da chegada dos religiosos sobre suas vidas cotidianas. 

Abandonamos, felizmente, a visão dicotômica que dava ênfase no papel dos missionários, para enxergar as negociações e conflitos gerados pela agência indígena. Por outro lado, vemos um esforço em compreender melhor a dimensão mundial da ação jesuítica, integrando perspectivas de estudos de colegas da Europa, Ásia e África, que permitem pensar na produção e circulação de saberes e realizar estudos comparados. A Companhia de Jesus e seus membros deixaram um legado do período colonial que permite esmiuçar as práticas do contato entre diferentes culturas, nos marcos da modernidade europeia. E os jesuítas são elementos importantes desta modernidade, cujas consequências vivemos até hoje. 

Em um plano mais simbólico, também estamos em condições de abordar melhor a questão das imagens geradas pela passagem dos jesuítas pela América no período colonial e suas apropriações no presente. Assim, temas turísticos, patrimoniais e identitários começam a ganhar espaço em nossas pesquisas. Pois, por mais que tratemos de missionários e indígenas mortos há séculos, é para o presente que escrevemos. E são os traços destas vidas e suas marcas, reapropriadas para os mais diferentes fins, que têm relevância e justificam a permanência de um tema tão complexo. 

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