Edição 457 | 27 Outubro 2014

Classificar borboletas? O signo e a relação na obra de Charles S. Peirce

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Andriolli Costa

A pesquisadora Priscila Borges aborda a importância da compreensão complexa dos processos semióticos em relação para que a análise não se limite à catalogação de signos

A Teoria Geral dos Signos, de Peirce — também conhecida como semiótica — estabelece como fundamento a relação triádica entre Signo, Objeto e Interpretante. Não levar em conta o aspecto relacional dos três polos, priorizando um ou outro aspecto, dificulta a compreensão dentro da perspectiva da complexidade. Ao incorrer neste equívoco, para a pesquisadora Priscila Borges, “a análise dos signos fica parecendo um exercício classificatório, como o de classificar borboletas”. E alerta: “Apesar de ser extremamente comum esse uso da semiótica, esse não me parece ser o propósito da análise. A compreensão de um processo semiótico depende de uma descrição muito mais detalhada dos aspectos do signo e de suas implicações para o fluxo da semiose do que a análise de um único aspecto pode mostrar”.

Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Borges discorre sobre o que são e como operam os signos; estabelece os nexos entre significação, cognição e experiência e aborda ainda uma metodologia de análise proposta por Peirce no final de sua vida, e pouco explorada no campo acadêmico: as 66 classes de signos. Estes funcionariam como guias precisos para compreensão do sistema de signos. Com isto em mente, ela aponta: “Quando o método de investigação não é muito acurado, nós tentaremos a partir da nossa experiência completar as lacunas deixadas pelo método. Portanto, podemos ter investigações semióticas que servirão apenas para mostrar algo que já sabemos”. E finaliza: “Nesses casos, o processo de investigação perde sua função de buscar informação e nos mostrar a realidade”.

Priscila Monteiro Borges possui graduação em Comunicação social pela Universidade de Brasília, mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é Vice-secretária geral da International Association for Semiotics Studies, Diretora Executiva do Centro Internacional de Estudos Peirceanos e professora da Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Em Histórias das Teorias da Comunicação (São Paulo: Edições Loyola, 1999), o casal Mattelart  criticava a vagueza do conceito de Signo de Peirce — o que não permitia “distinguir o que é signo do que não é”. É possível, apenas a partir da obra de Peirce, extrair um conceito estabelecido de Signo? Ou estudos posteriores foram os responsáveis por estruturá-lo?

Priscila Borges – Acredito que o conceito de signo pode ser extraído, sim, da obra de Peirce. O termo foi definido inúmeras vezes por Peirce, com o intuito de deixá-lo claro. Pode não ser um conceito fácil de ser apreendido, por ser um conceito geral e não particular. O signo não é uma coisa material que pode ser percebida pelos sentidos e para a qual é possível apontar e dizer, olhe o signo. O signo em Peirce é uma relação, e relações não podem ser vistas nem tocadas. O signo consiste em uma determinada relação triádica, na qual o signo faz a mediação entre o objeto e o interpretante. Essa relação triádica que não pode ser reduzida a duas relações diádicas. Qualquer coisa pode ser um signo contanto que esteja em uma relação triádica representando algo (o objeto), para alguém, ou para outra coisa (o interpretante). Essa noção de signo é bastante ampla e reside justamente nisso a sua relevância.

 

IHU On-Line – Faz mais sentido pensar o que são os signos ou compreender como eles operam? 

Priscila Borges – Penso que faz mais sentido compreender como eles operam, visto que o signo é definido pelas relações que ele estabelece e não por sua natureza. Mas sem compreender o que é signo para Peirce, é improvável que se dê importância à forma como eles operam. Quando a semiótica peirceana fica restrita à análise de um aspecto do signo, por exemplo à relação entre signo e objeto, não é possível entender profundamente o modo como o signo opera, e a análise dos signos fica parecendo um exercício classificatório, como o de classificar borboletas. Apesar de ser extremamente comum esse uso da semiótica, esse não me parece ser o propósito da análise. A compreensão de um processo semiótico depende de uma descrição muito mais detalhada dos aspectos do signo e de suas implicações para o fluxo da semiose do que a análise de um único aspecto pode mostrar.  

 

IHU On-Line - Em que consiste a ideia de co-mente, em Peirce, e como ela se relaciona com a comunicação? 

Priscila Borges – Co-mente foi um termo usado por Peirce para dizer que é preciso algo em comum entre a pessoa que expressa uma mensagem e aquela que a interpreta para que haja comunicação. Isso quer dizer que, se um signo for utilizado para expressar algo, ele só será interpretado como representando esse mesmo algo se aquele que expressou o signo e aquele que o interpreta compartilharem alguma experiência comum com o objeto do signo. Se não houver essa experiência comum, o signo não será interpretado como representando esse objeto. Portanto, o potencial significativo do signo pode ser muito amplo, e em diferentes contextos os signos podem representar coisas diferentes. Quando falamos em comunicação, esperamos que haja compartilhamento de informação entre aquele que expressa e o que interpreta a mensagem. O signo em si não dá nenhuma garantia de que haverá esse tipo de comunicação, por isso podemos dizer que os signos também mentem. O único modo de reduzir os problemas comunicativos envolvendo diferentes interpretações de signos é garantindo que os intérpretes do signo terão experiência comum com o objeto do signo.

 

IHU On-Line – De que forma o processo de significação está ligado à cognição e, por sua vez, à experiência? 

Priscila Borges – Peirce define semiótica como “a ciência das leis necessárias do pensamento” (Peirce c.1896: CP 1.444) . O estudo dos signos começa pela observação dos signos e de suas características mais explícitas e continua em um processo de abstração e inferências que nos leva a um sistema geral de todos os possíveis tipos de signos. Os sistemas de signos mostram um processo lógico de investigação que torna evidente o crescimento dos signos. Isso pode não ser evidente quando se trabalha com o sistema de três e dez classes de signos, mas fica bastante explícito quando adotamos o sistema de 66 classes em análises semióticas. Se compreendermos a semiótica como um processo, fica fácil perceber sua relação com a cognição. Para Peirce, a cognição é um sistema dinâmico no qual “cada cognição é logicamente determinada por uma cognição prévia” (Peirce 1868: W 2.213, EP 1.30)  e “todas as cognições existem somente no efeito que elas poderiam ter em futuras cognições” (Peirce 1873: W 3.81). 

Esse processo dinâmico é bastante semelhante à infinita cadeia de signos na semiótica. De acordo com Peirce, o signo representa alguma coisa com relação a um aspecto e cria na mente da pessoa um novo signo. E assim um signo cria outro signo infinitamente. A relação entre signo e pensamento fica evidente quando Peirce diz que “nós não temos poder de pensar sem signos” (Peirce 1868: W 2.213, EP 1.30). Cognição é, nesse sentido, o fluxo de signos. Isto não quer dizer que todos os signos são signos de pensamento. Peirce enfatiza também a importância da secundidade (fato, ação, reação) em sua teoria dos signos mostrando que alguns signos são signos de experiência. O interpretante de um signo pode não ser um pensamento, mas sim uma ação ou um sentimento que se torna um novo signo dando continuidade ao fluxo dos signos.

 

IHU On-Line – Quais são os nexos da relação entre signo e objeto, bem como de signo e interpretante? Que tipos de signo emergem desta relação?

Priscila Borges – A relação do signo com o objeto nos permite compreender como o signo representa o objeto. Para Peirce, a relação entre signo e objeto pode ser de três modos: icônica, indicial e simbólica. Essa relação terá características icônicas, indiciais e simbólicas a depender das características do signo em si, se considerarmos o sistema de 10 classes de signos. Mas se considerarmos o sistema de 66 classes de signos, a relação entre signo e objeto depende não só das características do signo em si, mas do modo de ser do objeto dinâmico e do objeto imediato. Segue que classificar um signo como icônico, indicial e simbólico diz muito pouco sobre o signo e não mostra o que há no signo que o possibilita representar o objeto de tal modo. Além disso, é sempre bom lembrar que, se bem observadas, poderemos encontrar relações icônicas, indiciais e simbólicas em todos os signos. Quando dizemos que o signo é indicial, na verdade estamos dizendo que a relação indicial parece predominar, mas isso não exclui as outras possíveis relações. Por isso, prefiro sempre dizer que o “signo possui relação indicial” a dizer que ele é um “índice”. Enquanto a relação com o objeto nos mostra a capacidade representativa do signo, a relação do signo com o interpretante nos diz algo sobre o processo interpretativo. 

A relação entre signo e interpretante mostra o potencial interpretativo do signo, mas não indica exatamente como ele será interpretado. Novamente, se considerarmos o sistema de 10 classes de signos, veremos que a relação entre signo e interpretante pode ser de três tipos: remática, dicente ou argumental. Isto quer dizer que, dependendo do modo de ser do signo em si mesmo e de qual relação ele estabelece com o objeto, será possível uma interpretação mais ou menos precisa do signo. Na relação remática o que temos é uma associação de termos, o signo me leva a pensar em um termo. Determinadas características do signo permitem associações desse signo com outros, mas essas associações são um tanto quanto imprecisas. Na relação dicente, o signo não só leva à associação vaga com outras coisas, mas leva a um interpretante mais estruturado na forma de uma proposição do tipo “A é B”. Já na relação argumental, como o próprio nome diz, temos um interpretante que é não só uma proposição, mas um argumento. Isto é, alcançamos um tipo de interpretante ainda mais preciso do que os anteriores. 

 

IHU On-Line – Quais as controvérsias que envolvem o sistema de 66 classes de signos propostos por Peirce? 

Priscila Borges – São muitas as discussões a respeito das 66 classes de signos. Como esse foi um trabalho desenvolvido no final da vida de Peirce, ele não pode desenvolvê-lo a ponto de detalhar todas as classes desse sistema, como ele fez com o sistema de 10 classes. Por isso, em torno desse sistema encontramos primeiro a desconfiança de alguns como relação a sua aplicabilidade. Seria possível utilizar esse sistema para analisar signos e descobrir novas coisas a respeito dos signos? Algumas pessoas dirão que não é possível, outras que não é possível nem necessário, poucos pesquisadores no mundo trabalharam e estão trabalhando nesse sistema. Sendo uma delas, o que minhas pesquisas mostram até agora é que, sim, é possível fazer análises com o sistema de 66 classes de signos. Mas, claro, a análise é mais complexa e, por isso, precisei desenvolver um método de análise com as 66 classes que tem se mostrado muito útil para análises.

 

IHU On-Line – Estas classificações propostas ajudam na compreensão do Real ou são puramente metodológicas? 

Priscila Borges – As classificações, ou melhor, os sistemas de signos são métodos para investigação com o objetivo de descobrirmos a verdade, ou de pelo menos nos aproximarmos dela. Eles funcionam como guias, seguindo determinados caminhos de avaliação do signo. Quanto mais complexo o sistema de signos, mais passos o método terá, consequentemente, teremos que prestar mais atenção aos detalhes do signo. Quando o método de investigação não é muito acurado, nós tentaremos a partir da nossa experiência completar as lacunas deixadas pelo método. Portanto, podemos ter investigações semióticas que servirão apenas para mostrar algo que já sabemos. Nesses casos, o processo de investigação perde sua função de buscar informação e nos mostrar a realidade.   

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