Edição 457 | 27 Outubro 2014

Semiose e Vida

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Andriolli Costa

“Os processos vitais são essencialmente semióticos. Não só a semiose acontece em toda a biosfera, como parece ser uma condição para o fenômeno da vida”, afirma Anderson Vinícius Romanini

A centralidade do pensamento peirceano está no conceito de signo. A semiose, sua teoria geral, é um processo dinâmico de representação e interpretação. No entanto, qual seria o papel ocupado pelo ser humano nesta estrutura lógica? Para o pesquisador Anderson Vinícius Romanini, a semiótica peirceana nada tem de antropocêntrica. “Ela parte de um realismo extremo que coloca a semiose como fonte central, e a antropossemiose como uma de suas vertentes.” 

Onde houver representação e interpretação, haverá semiose. Isso implica dizer que os processos vitais são essencialmente semióticos. “Não só a semiose acontece em toda a biosfera, como parece ser uma condição para o fenômeno da vida”, explica ele. Cada vez que um ser vivo precisa identificar no ambiente aquilo que irá tomar como alimento, aquele com quem vai se relacionar sexualmente, aqueles que podem predar ou serem predados, estão formulando informações, que dependem de uma fenomenologia específica para cada espécie. “Podemos então dizer que onde há vida, há certamente semiose”, afirma. 

Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Romanini aborda ainda a compreensão da pessoa humana na filosofia peirceana, suas visões metafísicas do real e a apropriação da obra de Peirce pelos pensadores contemporâneos da área da Comunicação. 

Anderson Vinícius Romanini possui graduação, mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo - USP. Atualmente é professor doutor da USP nas disciplinas de Filosofia da Comunicação, Teoria da Comunicação (ECA) e Teorias do Signo (FAU). 

Romanini é membro do Comitê Consultivo Internacional da Sociedade Charles S. Peirce, bem como do periódico Transactions of the Charles S. Peirce Society. É também editor científico da revista Semeiosis - Semiótica e Transdisciplinaridade em Revista e diretor de assuntos internacionais do Centro Internacional de Estudos Peirceanos da PUC-SP. Foi organizador, junto com Eliseo Fernandez, do livro Peirce and Biosemiotics: a Guess at the Riddle of Life (Heidelberg: Springer, 2013).

Confira a entrevista. 

 

IHU On-Line - É correto pensar que nossa capacidade de lidar com signos é o que nos diferencia dos outros animais? Ou a semiose, de alguma maneira, também se manifesta em seres não humanos? 

Anderson Vinícius Romanini – A palavra semiose quer dizer “ação do signo”, ou seja, um processo dinâmico de representação e interpretação em geral. Onde houver representação e interpretação, haverá semiose. Como campo disciplinar, a semiótica não restringe seu objeto de estudo à cultura humana. Devemos entendê-la como uma lógica da significação e, portanto, independente de qualquer restrição quanto a classe, espécie, gênero ou qualquer outro tipo. Na verdade, parece-nos cada vez mais claro que os processos vitais são essencialmente semióticos. Não só a semiose acontece em toda a biosfera, como parece ser uma condição para o fenômeno da vida. 

Todo ser vivo precisa fazer distinções no ambiente para selecionar alimento, identificar eventuais parceiros sexuais ou predadores, etc. Essas distinções, que são informações, dependem de uma fenomenologia específica para cada espécie. Por exemplo, a mesma frequência luminosa emitida por uma flor pode significar “fonte de alimento” para uma espécie de inseto e “perigo de morte” para uma espécie de mamífero. Há representações e interpretações distintas, o que revela semioses diferentes e, sempre, muito complexas, porque essas relações formam uma espécie de rede contínua de significados. Mesmo na esfera intracelular os processos vitais envolvem informação e significação. Podemos então dizer que onde há vida, há certamente semiose. 

O debate aberto é sobre a realidade da semiose para processos naturais chamados de químicos e físicos. Minha posição é a de um realista extremo, que aceita a semiose como ontologicamente presente no real. Isso implicaria que nada é real fora de processos de significação, e que os signos não são criações da mente humana, mas ao contrário: as mentes humanas é que são o resultado da semiose. Essa concepção de semiose nega a psicologia como ciência que estuda a mente porque a mente é considerada um processo lógico. Ao mesmo tempo, encampa um psiquismo radical ao considerar que todo o universo pode ser a manifestação de processos análogos à mente. 

 

IHU On-Line - Peirce ressalta que todo pensamento é um signo, assim como o próprio Homem. O que representa esta visão para a compreensão da pessoa humana em sua filosofia? 

Anderson Vinícius Romanini – Peirce estava enfatizando que os signos têm uma realidade muito mais ampla do que a capacidade da mente humana de representá-los. Nós participamos de uma semiose universal, contribuímos com o crescimento e reprodução dos signos em direção ao que Peirce chamou de “razoabilidade concreta” — uma teia de significações que constitui o real. O tipo de signo mais favorável a esse crescimento é o símbolo, porque todo símbolo incorpora uma espécie de hábito, uma capacidade de representar ideias gerais e de determinar certos tipos de efeitos no futuro.

As crenças de um homem são os hábitos mentais que determinam suas atitudes no dia a dia. Elas são a encarnação de certas ideias, e a disposição que um homem tem em agir de acordo com essas ideias determina sua personalidade. O homem, assim como uma comunidade de pessoas, são essencialmente símbolos em crescimento e capazes de compartilhar um futuro comum na medida em que agem coordenadamente para atingir certos propósitos. Essa concepção enfatiza uma epistemologia social, fundada num senso comum que brota da experiência vivida por uma comunidade historicamente situada, com seus preconceitos e limitações. É o oposto do individualismo liberal, do gênio criador romântico, da filosofia racional. 

A pessoa humana é o resultado de uma rede de relações entre seus pares e com os sentimentos que brotam da experiência, de seus instintos, de suas crenças e, se ele for capaz de controlar sua razão, das escolhas que faz conscientemente de forma a determinar, até certo ponto, seu futuro.

 

IHU On-Line - Até que ponto a semiótica peirceana é antropocêntrica? 

Anderson Vinícius Romanini – A semiótica peirceana não é antropocêntrica, ao contrário. Ela parte de um realismo extremo que coloca a semiose como fonte central, e a antropossemiose como uma de suas vertentes. Ao mesmo tempo, Peirce admite que todo estudo da semiose realizada por mentes humanas terá necessariamente uma visão antropocêntrica. Há uma tensão aqui, que pode ser muito construtiva se a colocarmos no primeiro plano de nossas ciências normativas, como a estética, a ética e a lógica. Ela nos obriga a uma humildade epistemológica, como já havia exortado Kant. A diferença entre a filosofia peirceana e o transcendentalismo kantiano é que Peirce nos convida a sonhar sobre a possibilidade de uma ecossemiose universal, em que nossos juízos sintéticos a priori são explicados como uma faculdade intimamente ligada aos processos criativos da natureza, de onde brotam a própria vida e a inteligência. Ele abre uma janela para mundos possíveis, para outras formas de vida e de inteligência para além das que nossa epistemologia antropocêntrica é capaz de imaginar. 

 

IHU On-Line - No início do século XX, a semiótica era tida como uma ciência normativa. Isto reflete certa arbitrariedade em sua proposta? O que mudou com o tempo?

Anderson Vinícius Romanini – A semiótica é uma lógica universal e, portanto, faz parte das ciências normativas que também incluem a estética e a ética. Não há arbitrariedade na definição de “normativo”, apenas a explicitação de que são ciências que determinam suas próprias condições de desenvolvimento. A norma da estética é uma ideia que se apresenta como qualidade integradora de uma multiplicidade de sensações — e, portanto, aceita irresistivelmente como admirável por nossas mentes. A ética nada mais é do que o desdobramento da aceitação de uma ideia como admirável, isto é, nossas ações no mundo tendem a ser normatizadas por certos preceitos que, em última instância, se mostram em harmonia com o que aceitamos como admirável. A lógica, por fim, como semiótica geral, é uma parte da ética que reflete sobre como nossas ideias dão origem aos hábitos mentais que fundamentam nossas crenças, como podemos criticar esses hábitos medindo as consequências gerais de sua aceitação ou negação e como podemos colocá-las em confronto e diálogo com outras ideias compartilhadas pela comunidade da qual participamos de forma a criar conceitos cada vez mais gerais e verdadeiros. 

 

IHU On-Line – De que modo a lógica triádica de Peirce colabora para ir além de um pensamento dicotômico instaurado pela lógica da modernidade?

Anderson Vinícius Romanini – Peirce iniciou seus estudos com enorme apreço à filosofia de Kant  e dura crítica à epistemologia cartesiana. Em Kant, Peirce apreciava a síntese entre o empirismo e o racionalismo que permitia recolocar a experiência no centro do processo de conhecimento. Na sua crítica a Descartes , Peirce recusava o “cogito” justamente por considerá-lo resultado de uma dúvida artificial, distante dos problemas reais. A originalidade da proposta peirceana é justamente a lógica da relação, onde o signo se coloca como um meio entre o objeto do conhecimento e as consequências da aceitação de uma crença. Como toda relação é contínua, a lógica peirceana não aceita dicotomias que levem a cortes secos entre sujeito e objeto, verdade e falsidade, corpo e espírito. O princípio epistemológico fundamental da filosofia de Peirce é o da continuidade falível, do desenvolvimento que cria complexidade, da inter-relação entre qualidades, existentes e gerais para produzir semioses cada vez mais complexas. A verdade é algo que se manifestaria num futuro condicional — e a condição é a de que houvesse uma comunidade ideal, com tempo ideal e recursos ideais para compreender toda a realidade. Como essas condições são inexistentes em qualquer momento histórico definido, elas permanecem como condição normativa, mas jamais realizada. 

 

IHU On-Line - Em que consistem as visões metafísicas de Peirce (tiquismo, sinequismo e agapismo) e como elas se relacionam com uma epistemologia da complexidade? 

Anderson Vinícius Romanini – A exemplo de Aristóteles e Kant, Peirce ergueu sua arquitetura filosófica a partir de um conjunto de três categorias simples. No seu caso, elas são apenas três: a originalidade (qualidades puras), a existência (reação e choque despropositados) e a continuidade (ideias gerais que se desenvolvem num sentido). 

Quando formuladas filosoficamente, essas três categorias dão origem a três doutrinas fundamentais: o tiquismo (palavra que nasce do grego “tiche” = acaso), que explica a originalidade presente em todos os processos de semiose e que os tornam irreversíveis e irrepetíveis; o sinequismo (palavra que remete a “sineche” = contínuo), que explica o papel das causas finais, do propósito e da tendência à generalidade que se manifesta em todo o universo. O agapismo (do grego “ágape” = amor fraterno) é a doutrina que explica justamente como uma existência de choques inconsequentes (caótica) se transforma numa classe mais geral e animada por significações. 

Sem esse princípio não haveria vida, inteligência nem a ação conservativa de certas leis naturais que permitem a informação e o crescimento da razoabilidade mesmo num ambiente em constante degradação e dissolução da ordem. Nesse sentido, a filosofia peirceana antecipa importantes ideias da cosmologia contemporânea, como a da evolução das leis naturais a partir de um caos (no sentido grego de Kaos e não no da física atual de caos determinista), a do aumento de complexidade em sistemas dinâmicos sensíveis às condições iniciais (dadas na experiência, no aqui e agora — hic et nunc) e a da evolução biológica que não aceita a seleção natural como o único princípio ativo, mas abre espaço para a causação final.  

 

IHU On-Line – Para Peirce, o amor “ágape” era condição de lei cósmica evolutiva. E apenas a partir do amor seria possível construir uma ciência voltada para o homem. De que modo tais considerações, especialmente vindas de um químico por formação, abrem as ciências “duras” para o diálogo dos afetos?

Anderson Vinícius Romanini – A lógica das relações desenvolvida por Peirce tem inspiração na química. As valências dos elementos químicos são a naturalização do princípio das afinidades, em que certas relações se mostram reais embora habitem no tempo gramatical do condicional futuro, das probabilidades, das potencialidades. Ou seja: se e quando dois ou mais elementos reagirem, certa resultante se daria na forma de uma nova substância. Essa regularidade in futuro, mas dependente de uma reação marcada pela irreversibilidade é um bom exemplo de causação final. A mesma lógica das relações aplicada ao conhecimento leva a uma compreensão de que o individualismo é intrinsicamente mau, porque a verdade é que somos a resultante das experiências vividas no seio de uma comunidade que compartilha certas crenças — ou seja, estamos imersos no senso comum de nossa época, e nossas concepções, inclusive nossa identidade, são o resultado de uma multitude complexa de sentimentos socialmente vividos e condivididos. A estética que brota da experiência socialmente vivida é o fundamento de nossas ações éticas e, em última análise, também de nossas crenças falíveis. 

 

IHU On-Line – De que maneira Habermas  e outros pensadores contemporâneos se apropriam de Pierce para pensar a comunicação? 

Anderson Vinícius Romanini – Há muita influência de Peirce no pensamento habermasiano, mas não naquilo que Peirce tem de mais interessante e original: sua cosmologia e seu sinequismo agapista. Habermas prefere capturar de Peirce a noção de verdade como o resultante da ação comunicativa numa comunidade (a esfera pública), dadas certas condições normativas como o princípio da sociabilidade do saber (a esfera da linguagem que ele, porém, reduz erroneamente ao do simbólico), em oposição a uma racionalidade técnica que desconsidera justamente a epistemologia afetiva defendida por Peirce. Habermas parece aceitar o realismo peirceano em que a realidade é definida como aquilo que se revelaria como verdadeiro ao final da ação comunicativa regulada por condições estritas que Peirce generaliza como o método científico: falibilismo, senso comum submetido à crítica e socialibilização por meio da linguagem. No entanto, o pensamento de Habermas se mantém excessivamente racional e vinculado a uma visão datada de democracia ocidental (um apego que é ao mesmo tempo ético e racional), o que é uma falha fatal diante da filosofia peirceana em que a estética é livre e mais fundamental do que a ética e a lógica. A sensibilidade criativa é para Peirce mais importante do que a manutenção de qualquer tipo de regime político. 

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