Edição 457 | 27 Outubro 2014

O realismo peirceano contra a semiose infinita

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Andriolli Costa | Tradução: André Langer

Fernando Andacht afirma que a ideia da proliferação arbitrária de signos dialoga mais com o construtivismo de William James do que com o pragmaticismo de Peirce

Dedicado à semiótica desde 1987, especialmente à obra de Charles S. Peirce, Fernando Andacht ressalta: “o movimento fundamental de Peirce é afastar sua semiótica do psicologismo, não ignorar a psicologia”. O psicologismo, no caso, seriam as interpretações calcadas no subjetivo e nas construções do real propostas por William James, que levava as projeções individuais a níveis muito além do concebido por Peirce. 

“James descreve a relação com o real como algo inalcançável, já que só podemos observá-lo de “relance” (glimpse), e cada vez que acreditamos apreendê-lo (grasp it), o que temos é um pobre substituto que foi ‘peptonizado’ e cozinhado para o nosso consumo por um pensamento prévio”, cita Andacht. Ou seja, não podemos acessar o real, nem minimamente, apenas digerir um substituto do real que nós mesmos concebemos. Deste modo, é possível dizer que a visão de James se aproxima de um construcionismo radical. Já a visão de Peirce “é a metodologia para descrever o significado de conceitos complexos, em seu modelo semiótico e realista”.

Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Andacht aborda os distanciamentos entre os conceitos de Faneron e Fenômeno, critica a conhecida "semiose infinita" — que se aproximaria mais do construcionismo de James, e reflete sobre a possível dureza em seu pragmaticismo.

Fernando Andacht é licenciado em Letras pela Universidade da República Oriental do Uruguai, com mestrado em Linguística Geral pela Universidade de Ohio e doutorado em Estudos Latino-Americanos pela Universidade de Bergen, Noruega. Seu pós-doutorado, em Comunicação e Informação, ocorreu na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente é professor do Departamento de Comunicação da Universidade de Ottawa, no Canadá. É autor de El Reality Show - Una perspectiva analitica de la televisão (Buenos Aires: Grupo Norma, 2003).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Peirce introduz o conceito de “Fâneron” para se distanciar do “Fenômeno” (como em Hegel  e Kant ) e o de “pragmaticismo” para se afastar do “pragmatismo” de William James . Quais as peculiaridades do pensamento peirceano que o levavam a esta distinção?

Fernando Andacht - Creio que o movimento fundamental de Peirce é afastar sua semiótica do psicologismo, não ignorar a psicologia, ciência que muitas vezes ele cita e comenta, mas fundar o estudo do sentido, da geração de significado na lógica. Para isso lhe é necessário postular um estudo da experiência que, segundo a faneroscopia, pode ser analisada em três, e não mais que três, “valências” — como às vezes as chama; não se deve esquecer a formação em química de Peirce em seus tempos de juventude — ou categorias universais das quais estaria composta toda experiência possível, a saber: a qualidade, o fato e a generalidade ou a lei. 

Com respeito às suas críticas ao pensamento de seu amigo William James, encontrei um texto em particular, que não cita Peirce, onde se pode ler, na minha opinião, claramente a discrepância entre ambos. Trata-se de um fragmento das conferências de James entre 1906 e 1907 para um público geral, que foram publicadas depois em seu livro Pragmatism. A New Name for Some Old Ways of Thinking. Na 6ª Conferência, intitulada “Pragmatism and Humanism”, James descreve a relação com o real como algo inalcançável, já que só podemos observá-lo de “relance” (glimpse), e cada vez que acreditamos apreendê-lo (grasp it), o que temos é um pobre substituto que foi “peptonizado e cozinhado para o nosso consumo por um pensamento prévio”. Assim, a mediação não cumprirá, como vemos no pensamento peirceano, a tarefa vital de revelar de modo falível e crescente algo da realidade, mas que impossibilitaria essa tarefa. A visão de James me parece ser próxima do que atualmente encontramos no construcionismo radical, e a de Peirce, seu pragmaticismo, é a metodologia para descrever o significado de conceitos complexos, em seu modelo semiótico e realista.

 

IHU On-Line - Em que consiste pensar em uma semiose infinita? Por que esta perspectiva se afasta da compreensão de semiose proposta por Peirce? 

Fernando Andacht - Em geral, desde Umberto Eco , passando por Jacques Derrida , encontrei que a ênfase muito grande posta nesta noção afasta-se do realismo semiótico de Peirce e se aproxima de um idealismo ou construcionismo, como mencionava na resposta anterior. Embora seja certo que Peirce fez afirmações como “os símbolos crescem”, e há uma tendência ao aumento da complexidade nos signos dentro desse processo chamado semiose, é importante não esquecer a ancoragem na realidade, descrito pela categoria de Segurança, o real como “ataque do exterior” (outwardclash), e no Peirce da maturidade, a relevância da sua recuperação da noção escolástica (Duns Scotus ) de “hecceidade ” o aqui e agora do real que faz parte da tríade semiótica: Objeto Dinâmico — o real tal como é fora de qualquer representação — o representamen ou signo, e o interpretante. Esse toque do real, do que resiste, salva a semiótica peirceana do idealismo e da proliferação arbitrária de signos. O crescimento do sentido não é arbitrário, mas tem a determinação do real e é regulado pelas tendências, pela transformação do simbólico em hábitos semióticos.

 

IHU On-Line - Pode-se compreender a semiótica de Peirce como uma teoria estruturalista? Se sim, como ela seria capaz de dar contas das múltiplas complexidades do século XXI?

Fernando Andacht - Não penso que se possa chamar ou descrever adequadamente este modelo triádico de estruturalista. Se pensamos somente na linguística que se desenvolve na segunda metade do século XX a partir de algumas ideias seminais do Curso de Linguística Geral de Ferdinand de Saussure (São Paulo: Cultrix, 2006) , já percebemos um elemento fundamental que se encontra instalado no núcleo do modelo triádico e que não faz parte das noções básicas estruturalistas: o tempo. A maior contribuição, na minha opinião, do signo triádico é que a temporalidade, a geração do signo interpretante como um desenvolvimento do objeto representado através de um signo, ou representamen, opera a partir de dentro do sistema. No caso saussureano, a diacronia, por exemplo, é algo agregado, um elemento externo às definições básicas da semiologia de caráter estruturalista. Por esse motivo, creio, a teoria semiótica peirceana está sendo usada por áreas científicas tão diversas como a biologia e a inteligência artificial, seu poder de explicação — a geração autônoma e teleológica do sentido — possui a generalidade suficiente para ser aplicada ao campo das humanidades e das ciências naturais.

 

IHU On-Line - Compreendendo a relação entre mente e matéria, qual o papel ocupado pela imaginação na agência do sujeito?

Fernando Andacht - Outra virtude do pragmatismo ou pragmaticismo, como Peirce o rebatizou, é sua afinidade com a imaginação humana. Há um trabalho muito interessante de Thomas M. Alexander  (1990) intitulado “Pragmatic Imagination”, onde assinala como distintivo dessa corrente de pensamento norte-americana — nela inclui além de Peirce, James e Dewey  — a importância que possui a imaginação humana. Em meus próprios trabalhos tentei refletir sobre a relevância muito grande de um conceito pouco discutido na obra semiótica de Peirce, o “fundamento (ground)”, e sua relação com a categoria fenomenológica ou faneroscópica de Primeiridade. Trata-se do possibilismo que nos permite visualizar alternativas, caminhos diferentes que, caso prosperem, introduzem algo novo nas tendências ou formas regulares de compreender o mundo e a nós mesmos nele. Em um texto publicado em espanhol na Utopía y Praxis Latinoamericana 13 (40):39-65, intitulado Self y Creatividad en el Pragmatismo de C.S. Peirce: “La Incidencia del Instante Presente en la Conducta” , pretendo explicar o trabalho imaginativo que representa uma mudança radical do modo como um ser humano se concebe a si mesmo e o seu comportamento no mundo, usando para isso como exemplo o premiado filme alemão Das Leben der Anderen (A vida dos outros, 2006).

 

IHU On-Line - Em Pierce, qual a relação entre o Self e o processo de semiose?

Fernando Andacht - Esta pergunta é muito complexa, mas posso remeter o leitor interessado no tema a vários artigos que publiquei junto com uma colega psicóloga e semiótica, Mariela Michel, onde estamos procurando desenvolver uma convergência entre as atuais teorias dialógicas do self (Hermans , Valsiner ) e as teorias do self semiótico. Esta última surge a partir da publicação do que é um verdadeiro clássico na bibliografia peirceana, a monografia de Vincent Colapietro, Peirce’s approach to the self (1989). Nela, o autor recolhe, organiza e comenta passagens da obra publicada e inédita do semiótico norte-americano relativa ao self, à identidade humana. Entre as publicações feitas com Michel quisera destacar as seguintes: “Asemiotic reflection on Self-Interpretation and Identity”, Theory and Psychology, 15 (1):51-75 (2005); “El turista accidental: el cine como ensayo icónico-simbólico sobre la identidad humana”. In: Colección de Semiótica Latinoamericana. Semióticas del cine, pp. 23-40, 2007; “La Representación de la Identidad como Proceso Semiótico en Peirce” (Revista Designis, No.15: 91-100, 2010); “Passos para uma convergência de duas teorias dialógicas do self” (2014, a ser publicado na Revista Psicologia USP).

Se tivesse que condensar em poucas linhas o que aprendi trabalhando com a minha colega durante estes já quase 10 anos no tema self/identidade semiótica, é que uma valiosíssima contribuição da metafísica de Peirce é sua doutrina da continuidade lógica ou sinequismo: esta consiste em uma forte crítica ao dualismo, essa forma de analisar as coisas que acaba por obter duas partes não relacionadas que explicam muito pouco do fenômeno considerado. Em vez disto, o sinequismo relacionado, por exemplo, ao problema do self nos diz que há uma continuidade entre os signos usados pelos humanos e sua identidade, como explica fantasticamente esse aforismo de Peirce tão citado: “assim como afirmamos que um corpo está em movimento, e não que o movimento está em um corpo, do mesmo modo, devemos dizer que nós estamos no pensamento, e não que os pensamentos estão em nós” (CP 5.289, 1868). O mesmo conceito expressa o lógico em uma referência um pouco menos conhecida na qual se vale de uma bela metáfora para expressar a continuidade ou o sinequismo entre o mundo representado por nossos signos ou os signos da natureza, e o mundo assim como é, fora dos nossos signos: “(...) tudo o que está presente a nós é uma manifestação fenomênica de nós mesmos. Isso não impede que seja também um fenômeno de algo fora de nós, assim como o arco-íris é ao mesmo tempo uma manifestação do sol e da chuva. Quando pensamos, então, nós mesmos, como somos naquele momento, aparecemos como signo” (CP 5.283, 1868).

 

IHU On-Line - De que formas a identidade do ser humano pode ser considerada ela própria um signo, e como a consciência deste processo pode nos levar ao reconhecimento de nós mesmos a partir do outro?

Fernando Andacht - Novamente, penso que a pergunta é muito complexa para uma entrevista e exigiria um desenvolvimento muito mais extenso, digamos um artigo inteiro. Mas posso adiantar, desenvolvendo uma proposta de Norbert Wiley  - O Self Semiótico (Chicago: University of Chicago Press, 1995), que se podemos diferenciar entre as identidades concretas, localizadas espacial e temporalmente como interpretações históricas de nós mesmos, o que a psicologia chamou tradicionalmente de papéis, por um lado, e, por outro, o self concebido como o processo de autointerpretação de nós mesmos que surge ao longo do tempo, enquanto estamos vivos, isto nos permite entender as possibilidades humanas abertas embora constrangidas por essas identidades com as quais nos movemos pelo mundo: sempre está disponível um possibilismo que nos abre à mudança, ao devir, embora a vida com os outros exija de nós que nos apresentemos de alguma maneira, com certa atitude, ideologia, etc. As categorias peirceanas da experiência nos permitem investigar de modo producente a dialética entre as nossas identidades e o self.

 

IHU On-Line - De onde emergem os processos de desumanização que levam à incapacidade de identificação de um self semiótico com o outro?

Fernando Andacht - No filme alemão já mencionado, A vida dos outros (Título Original: Das Leben der Anderen - Florian Henckel von Donnersmarck, 2006), o argumento apresentado é justamente a existência de um regime político, social e cultural onde há muito pouca margem, ao menos no espaço público e social, para a espontaneidade, para esse desenvolvimento que Peirce descreve de modo poético como o ‘musement’, uma derrapagem imaginativa que nos habilita a nos sonharmos diferentes e, eventualmente, a sermos diferentes do que somos em um dado momento das nossas vidas. Não há nada mais desumanizante, entendo, que um sistema político, cultural ou social onde haja uma hegemonia ou tirania da Terceiridade, a categoria da regra, do geral, uma senda fechada, à qual todos devem se adequar e ajustar em todos os aspectos da sua vida, sob o risco de serem condenados e castigados por exercerem a imaginação que, fatalmente, nos leva para fora desse estreito caminho predeterminado. As distopias reais ou ficcionais, como aquela descrita por George Orwell  em sua novela 1984, têm em comum a supressão implacável do possibilismo no âmbito humano, e essa decisão nos condena à região escura da lei sem saída. Também existe a vergonhosa prática de determinar que certas manifestações do humano — uma raça, uma religião — não são merecedoras de estima, do respeito básico que se deve a todo ser humano por ser dessa condição. Neste caso, reprime-se parte da Secundidade, decretando de modo despótico e injusto que cai fora do que esse estado considera normal ou admirável, e o faz mediante uma espécie de inflação ou deformação da Terceiridade, uma lei tão cruel e inexorável como a que é descrita por Franz Kafka no magistral relato “Diante da lei”. Em síntese, a ruptura do equilíbrio instável e vital entre o possibilismo libérrimo da Primeiridade, a contingência fática da Secundidade, disso que simplesmente existe aí, em um momento e lugar dados, e a regularidade tendencial ou probabilista da Terceiridade acarreta entre muitas consequências funestas a desumanização, a supressão coletiva da capacidade imaginativa humana, que, evidentemente, segue existindo, mas nas sombras, escondida no mundo privado, onde aguarda o momento oportuno para irromper novamente à luz do intercâmbio humano, da livre conversação da humanidade (Oakeshott ).

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