Edição 457 | 27 Outubro 2014

“Vivemos uma hipocondria generalizada”

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Andriolli Costa | Fotos: Larissa Tassinari

Em nossa sociedade contemporânea, parece não haver espaço para as emoções — em especial para as emoções negativas. Ao ser humano, não resta mais a possibilidade de sentir-se triste ou cansado. O mero vislumbre dessas sensações gera a urgência da medicação, dos psicofármacos. “Vivemos uma era de hipocondria generalizada”, alerta a cientista social Flavia Costa.

O sentir-se mal com o corpo torna-se, assim, apenas sensação provisória. Se antes era possível aplicar correções mínimas, com produtos cosméticos ou ortopédicos, hoje as novas tecnologias, em relação ao corpo, orientam uma nova modelagem de si mesmo, um novo cuidado de si. “A biotecnologia aparece facilitando condições deste ser corrigido, transformado, otimizado.”

Estas ideias foram apresentadas pela professora Flavia Costa na conferência Corporeidade e biotecnologias, no dia 22-10-2014, como parte da programação do XIV Simpósio Internacional IHU - Revoluções Tecnocientíficas, Culturas, Indivíduos e Sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea.

Tributária da obra de diversos pensadores, Costa retoma o italiano Giorgio Agamben. Ele reflete que a base da democracia moderna não é o homem livre, com “suas prerrogativas e os seus estatutos. (...) O corpus é o novo sujeito da política”. Esta relação biopolítica ganha suas dimensões a partir do estabelecimento de uma visão tecnificada do corpo e do eu. Pensa-se a eficiência, a performance, a financeirização. 

“Facebook e Apple  se oferecem para pagar congelamento de óvulos de suas funcionárias. O motivo é para que elas não precisem engravidar tão cedo — deixando de render o quanto poderiam no trabalho, sem perder qualidade de material genético”, menciona a professora. O congelamento custa cerca de 10 mil dólares, com a manutenção custando 500 dólares por ano. De acordo com a empresa, até 20 mil dólares podem ser gastos por funcionário. 

“A tecnologia opera de maneira direta sobre a vida e a morte. Mais do que isso, operam inclusive sobre protovidas”, destaca Costa, referindo-se a moléculas, genes, células-tronco ou mesmo ao material reprodutor. “Isso apenas se fortalece à medida que os novos processos capitalistas estimulam a marcha de processos de subjetivação.” 

Corpo e corporalidade 

A professora chama a atenção para duas distinções fundamentais. Enquanto “corporeidade” diz respeito àquilo que o corpo é, “corporalidade” é a reflexão que fazemos sobre o corpo. Em um mundo onde princesas têm seu sangue enviado para bancos de células de cordão umbilical , ou em que homens e mulheres investem fortunas para transformar-se em bonecos de plástico, quais os limites para a atuação humana? Qual é a reflexão sobre o corpo a que nos propomos?

Filósofo e doutor em Teologia, o professor José Roque Junges, do programa de pós-graduação em Saúde Coletiva da Unisinos, fez uma intervenção. Retoma, deste modo, a obra Adeus ao corpo (Campinas: Papirus, 2009), de David Le Breton. Para o antropólogo francês, o discurso científico contemporâneo vislumbra o corpo como mero suporte, algo que pode e deve ser aprimorado, o qual a tecnociência parte em socorro. Seria a tese de Breton confirmada pela visão de corpo de Rose? Para a professora, a resposta é imprecisa. “Breton, como antropólogo, pensa o corpo como experiência”, pontua ela. Já o indivíduo somático de Rose — cuja conduta de vida atribui um lugar central à existência corporal, tem uma concepção muito mais biológica.

Quem é Flavia Costa?

Flavia Costa é doutora em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (UBA). Professora e pesquisadora da Faculdade de Ciências Sociais da UBA e do Instituto de Altos Estudios Sociales (IDAES) da Universidad Nacional de General San Martín (UNSAM). Costa é editora da revista eletrônica Papeles de trabajo e é uma das tradutoras para o espanhol dos livros de Giorgio Agamben.

 

Ecos do Evento

 “Eu gostei muito, porque trabalho em uma linha muito parecida com a dela, que é a da discussão da prevenção, dos estilos de vida saudáveis, da ideia de risco como normativa para orientar as pessoas como devem viver. Sobretudo a forma como somos obrigados a construir uma ideia de corpo no qual ficamos prisioneiros, que não é algo que te emancipe.” Luis David Castiel, professor na Fundação Oswaldo Cruz

“Gostei bastante da palestra. Acho muito interessante essa visão de que o corpo e as pessoas são extremamente medicalizados. Então não se pode mais ser triste, não se pode mais ser fraco, enfim... Se dá muito valor para um lado só da humanidade, ou da potencialização do homem e, ao mesmo tempo que se presta atenção no dever de ser potente, se proíbe a não potência — ou a impotência, no caso — como se fosse um controle sobre o corpo, e isso na verdade, como ela demonstrou, é em prol de corpos para consumo, para mercado.” Daniel Agostini, mestrando em Direito na Unisinos

“Achei o tema e as questões que ela colocou muito interessantes. Não é minha área, mas buscamos sempre conhecimentos diferentes que possam acrescentar na nossa formação. Acho importante não só como profissional, mas como pessoa, e acho que esse tipo de conhecimento acrescenta para que nos tornemos profissionais mais críticos em relação à saúde.” Sônia Regina Colli, graduanda em Ed. Física

 

Leia mais...

 

- Capitalização, estetização, realização. Corporalidades e a modelagem de si. Entrevista com Flavia Costa publicada na edição 456 da IHU On-Line, de 20-10-2014. 

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