Edição 456 | 20 Outubro 2014

Medicina, técnica, ética e os dilemas preemptivistas na saúde

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Márcia Junges e Andriolli Costa

O professor de medicina Luis David Castiel reflete sobre os dilemas biopolíticos que envolvem o ataque a um problema antes mesmo de seus indícios

Ainda que o termo ‘preempção’ não seja de uso corriqueiro, ele é utilizado nos mais diversos contextos. Desde o estrategista e beligerante, até o marketing e a política. No campo da saúde, esclarece o professor de medicina Luis David Castiel, “usa-se na analgesia preemptiva em odontologia, medicina, medicina veterinária, significando algo como eliminar o problema antes mesmo que ele dê indícios”. 

É nesta perspectiva que nos é colocado o dilema preemptivista. Em uma sociedade imersa no contexto de securitização, vivemos um território fértil para as intervenções antecipatórias. Exemplo possível é o da pílula do dia seguinte, “ataque preventivo contra a possibilidade de gravidez, em função de prática de sexo desprotegido”. Há ainda o enfoque preemptivo na saúde mental das crianças, tendo em vista nossa capacidade cada vez maior de identificação de doenças a longo prazo. 

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Castiel explora a partir de diversos autores as diferentes questões biopolíticas envoltas nessa discussão. Um dos problemas centrais: “ao invés de encarar um evento ameaçador à saúde como próprio ao contexto, sua ocorrência é ampliada como referência padronizada de situações de ameaça à saúde/segurança das populações (cada vez mais questões de saúde se configuram como problemas de segurança) e devem ser tratadas preemptivamente”, expõe. “E esta ideia também é extrapolada para a segurança econômica.”

Luis David Castiel possui graduação em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestrado em Community Medicine pela University of London, doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz e pós-doutorado pelo Departamento de Enfermeria Comunitaria, Salud Publica y Historia de la Ciencia da Universidade de Alicante, Espanha. Atualmente é Pesquisador titular do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública e do Programa de Pós-Graduação de Epidemiologia em Saúde Pública na Fundação Oswaldo Cruz. É autor de diversas publicações, entre elas: O Lagarto e a Rosa. Odontologia dos desejos e vaidades (Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013), Das Loucuras da Razão ao Sexo dos Anjos: biopolítica, hiperprevenção, produtividade científica (Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011) e La salud persecutoria. Los límites de la responsabilidad (Buenos Aires: Lugar Editorial, 2010).

O professor apresenta a conferência Com a cabeça nas nuvens? Medicina, técnica, ética e os dilemas preemptivistas na saúde, no dia 22-10-2014, às 14h, no Auditório Central da Unisinos. O evento integra a programação do XIV Simpósio Internacional IHU - Revoluções Tecnocientíficas, Culturas, Indivíduos e Sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - O que são dilemas preemptivistas na saúde?

Luis David Castiel - O sentido comum  de dilema é conhecido, mas podemos reiterá-lo: necessidade de escolher entre duas saídas contraditórias e igualmente insatisfatórias. E, inegavelmente, parece difícil escapar das contradições não explicitadas pela ideia de preempção no campo da saúde, como pretendo assinalar mais adiante.

Portanto, antes de entrar na questão dos dilemas preemptivistas na saúde, é preciso algum detalhamento para esclarecer o termo ‘preempção’, pouco usual em nosso contexto. Numa rápida revisão do termo de conotação judicial relativo ao âmbito da saúde, encontramos o artigo Preemption or Prevention?: Lessons From Efforts to Control Firearms, Alcohol, and Tobacco, de Eric Gorowitz , James Mosher  e Mark Pertschuk , publicado no Journal of Public Health Policy em 1998. Em termos breves, a questão que se coloca é o controle de indústrias cujos produtos criam riscos à saúde pública e que resistem agressivamente às intervenções sanitárias dirigidas a seus produtos.

Neste caso, a doutrina judicial da preempção remove a autoridade regulatória do âmbito local e a concentra no nível estadual ou federal. Isto se tornou um elemento importante no confronto entre representantes da saúde pública e as indústrias que estes pretendem regular. A doutrina da preempção propicia que a regulação estatal numa dada área tome precedência sobre a regulação local no mesmo campo regulatório. Neste sentido, já se insinua uma ideia de que há situações que para que sejam devidamente tratadas e resolvidas demandam que “se abram precedentes”.

No interior das reflexões sobre as tecnologias biopolíticas de prevenção, “preemptivo” é um termo utilizado de modos específicos em português. A palavra dicionarizada ‘preempção/preemptivo’ em português (Houaiss, 2014) indica: precedência na compra; compra antecipada; feito ou ocorrido antes do tempo próprio ou necessário; em informática: num ambiente multitarefa, ação ou evento que causa mudança do processamento de uma aplicação para outra. Em inglês, se destaca o uso do aspecto da intervenção hiperpreventiva, antes que ocorra a ‘ação’ que venha prejudicar os planos ou ações daquele que precisa antecipar a ‘ação’ do outro e já ‘agir-reagindo’ ao que supõe lhe venha a ser prejudicial — em suma, um ataque preventivo. 

Trata-se de um conceito estratégico no âmbito bélico/competitivo, bastante suscetível a “reações adversas”, em função de equívocos, sempre possíveis, por excessos de avaliação de suspeição. É usado em estratégias agressivas militares (como um exemplo recorrente, a invasão do Iraque, no ataque preemptivo diante das supostas armas de destruição em massa). 

No entanto, ele também é empregado nas estratégias de marketing entre empresas/corporações competidoras. No campo da saúde, usa-se na analgesia preemptiva em odontologia, medicina, medicina veterinária, significando algo como eliminar o problema antes mesmo que ele dê indícios disto. Em síntese, nem dar a oportunidade a um problema de sequer surgir. É o território das intervenções antecipatórias, de acordo com o contexto de securitização da nossa época — um exemplo: a pílula do dia seguinte — ataque preventivo contra a possibilidade de gravidez, em função de prática de sexo desprotegido.

Em relação às tecnologias de melhoramento ou aperfeiçoamento dirigidas à longevidade, as duas acepções se apresentam oportunas. Tanto a ‘preempção’, no sentido de possível precedência de alguns ao acesso a elas em detrimento de outros, como o ‘preemptivo’, nas metáforas bélicas do ataque preventivo na guerra ao envelhecimento.

Por exemplo, há um artigo de um pesquisador japonês, Hiroo Imura , publicado em 2013 na revista Proceedings of the Japan Academy, que estuda a atenção à saúde baseada na teoria dos eventos de vida e uma abordagem preemptiva para doenças não transmissíveis. Para ele, a medicina preemptiva difere da medicina preventiva de algumas formas — esta última costumava assumir um enfoque populacional, como, por exemplo, O Framingham Heart Study, um conhecido estudo de coorte que procurava elucidar fatores de risco para doença coronariana. A medicina preemptiva pretende ser individualizada, estratificando grupos de alto risco geneticamente (e também epigeneticamente). Usando biomarcadores, a medicina preemptiva tenta detectar doenças latentes com alta probabilidade de intervenção precoce antes do desencadeamento, via mudança de ‘estilo de vida’ ou medicação. 

Há também um enfoque preemptivo na saúde mental voltado à detecção precoce de sintomas de transtornos em crianças ‘sob risco’ que não consegue evitar certa, digamos, candura em suas proposições. Neste sentido, Thomas Insel (artigo publicado em Psychiatric Times em 2008) pretende uma prevenção universal usando uma abordagem de saúde pública baseada em pesquisas que mostram que, aliviando os maiores fatores de risco como pobreza e estresse vital precoce e promovendo fatores de proteção, pode-se melhorar desfechos comportamentais (prevenindo condutas antissociais) ao reduzir o estresse ambiental e proporcionando maior apoio materno. 

Na revista Mayo Clinic Proceedings, de janeiro de 2014, SJ. Bielinski  e muitos coautores propõem uma genotipagem preemptiva para uma medicina personalizada ao se desenvolver a droga certa, dose certa e a ocasião certa para individualizar o protocolo de tratamento usando farmacogenômica preemptiva, suportes para decisão clínica integrados a registros médicos eletrônicos.    

IHU On-Line - Quais são os principais dilemas dessa ordem? Qual é o nexo que une medicina, técnica e ética a esses dilemas preemptivistas?

Luis David Castiel - A expressão ‘dilema preemptivista’ joga com ideias originárias da tese de Sergio Arouca,  escrita há cerca de 40 anos, que trazia a questão do dilema preventivista que, de certa forma, se reatualiza de modo ampliado no presente. Isto pode ser percebido neste trecho bastante sinóptico da ideia central da referida tese: a Medicina Preventiva seria a primeira tentativa de resposta na Medicina a um contexto de crise mundial no entreguerras e ao acúmulo de críticas no campo médico. Era, no entanto, uma leitura liberal e civil, crítica ao estatismo que começava a surgir como alternativa.

Esta era a afirmação de Arouca quanto à incapacidade do ideário preventivista em resolver os problemas da saúde pública, porque não atacava o cerne da questão: o poder médico e a individualização e financeirização da saúde. Não questionava as estruturas sociais das quais derivavam os problemas do campo médico. A viabilidade daquele projeto no interior do modo capitalista de produção tendia a zero, e deveriam ser propostas alternativas a ele, que passavam pelo questionamento das estruturas sociais desiguais e pela superação do dilema preventivista — útil até certo ponto, mas insuficiente.

Uma pesquisadora australiana, Rosalyn Diprose , ao discutir as tecnologias biopolíticas da prevenção, assinala um dos problemas centrais desta abordagem: ao invés de encarar um evento ameaçador à saúde como próprio ao contexto, sua ocorrência é ampliada como referência padronizada de situações de ameaça à saúde/segurança das populações (cada vez mais questões de saúde se configuram como problemas de segurança) e devem ser tratadas preemptivamente. E esta ideia também é extrapolada para a segurança econômica.

 

IHU On-Line - Em que medida as relações entre medicina e técnica estabelecem uma modelagem da vida, da subjetividade e conduta dos corpos?

Luis David Castiel - De certa forma, encaminhamentos com vistas a responder a esta pergunta podem ser intuídos dos comentários anteriores (e posteriores), mas creio que cabe agregar aqui os elementos que conduzem à gestão do medo (‘riscos’) que se configura como uma modelagem da vida e conduta dos corpos. Este modo de pensar leva a dinâmicas das políticas de redução dos danos (e do envelhecimento como um dano) através de medidas preemptivas de controle técnico para a saúde/segurança/ambiente que pretendem predeterminar e proteger o planeta, nações, grupos e indivíduos da imprevisibilidade do futuro, da vida e da ideia de ‘agência’ humana. Isto sem um diagnóstico mínima e razoavelmente consensual (se é que isto é viável) do que seja o presente atual e seu tecnocapitalismo globalizado com seus paradoxos e contradições não explicitados — tratar o futuro como refém do presente, o que demanda policiar o futuro antecipadamente para que não escape deste presente — esta é a fonte do dilema preemptivista essencial, se podemos assim expressar.

 

IHU On-Line - Nesse sentido, qual é o papel ocupado pela medicalização da saúde dos indivíduos e das sociedades? Tomando isso em consideração, como podemos compreender a prática das prescrições de saúde e seus impactos junto a determinadas culturas e à subjetividade das pessoas em nosso tempo?

Luis David Castiel - É possível cogitar que a expressão consagrada ‘medicalização’ pode permitir que alguns autores comecem a relativizar, às vezes, com uma visível benevolência, ao considerar que haveria uma injusta demonização do complexo médico-industrial. Pois, há uma efetividade inegável para a saúde quanto à existência de muitos fármacos, apesar do ‘lado negro da força’ da Big Pharma no contexto neoliberal e suas estratégias mercadológicas identificadas por estudiosos do campo que visam à ampliação dos consumidores de medicamentos através de recursos eticamente discutíveis. Por exemplo: a minimização/omissão de efeitos farmacológicos adversos, a aquisição do uso de nomes de pesquisadores (com anuência destes) como autores de artigos escritos por ghostwriters da própria indústria, a realização de dispendiosos ensaios clínicos com resultados que legitimam a inclusão de resultados favoráveis enviesando metanálises ao evitar a publicação de resultados desfavoráveis, práticas de oferecer viagens, refeições, financiamento para eventos, brindes vários entre outros agrados e lembranças que seduzem médicos, farmacêuticos e inclusive bioeticistas. Sabe-se que os pesquisadores destas empresas desenvolvem novas drogas com uma série de efeitos fisiológicos, nenhum altamente benéfico. Então marqueteiros devem identificar e promover uma doença a ser tratada pela droga. Isto pode até implicar em encontrar uma doença rara cujas respectivas fronteiras possam ser expandidas para incluir mais pacientes ou redefinir um aspecto desagradável da vida cotidiana como patologia médica (por exemplo: a distimia que tem o mau humor como sintoma). Ainda assim, repito, não há como negar a efetividade da dimensão da tecnomedicina atual, mas, ao mesmo tempo, ela tem deixado a desejar com suas estratégias prescritivas de marketing (eventualmente enfatizando aspectos preemptivos), que se aliam a certas práticas nutricionais (o alimento como medicamento), odontológicas (com sua ênfase estética), fisioterápicas (dependendo da proposta clínica se subsidiária ou não de ditames médicos neoliberais), da psicologia (para estimular a ideia de autocontrole  na evitação de comportamentos de risco) e da educação física (o exercício como atividade corporal preventiva de riscos).

Não me parece apropriado chamar de healthicization ou termo que o valha para tais práticas hiperpreventivas sem fármacos, que talvez ficassem melhor subsumidas sob a expressão ‘terapeutização’, pois, no limite, consistem em formas de tratamento preventivo/preemptivo com vistas à manutenção de saúde e da busca da longevidade para aqueles que podem arcar com seus custos. Voltaremos a este tema mais adiante.

No caso da medicina, há preocupações crescentes com os efeitos adversos dos sobrediagnósticos e sobretratamentos em pacientes que são considerados casos brandos ou moderados. Alguns chamam, com boas intenções de proteger aos pacientes dos riscos de iatrogenia, de ‘prevenção quaternária’. A meu ver uma expressão problemática, ao revalidar as categorias criticáveis pelo seu funcionalismo descontextualizado dos ‘níveis de prevenção’ de Leavell & Clark  dos anos 1960 e da ‘história natural da doença’, reatualizando uma discussão aparentemente anacrônica por não tratar da ‘determinação social da doença’. 

Com pertinência, H.G. Welch  mostra vários fatores que atuam nos sobrediagnósticos e em intervenções desnecessárias que podem trazer aumento de ansiedade e danos aos pacientes. Por exemplo: as mudanças numéricas nas medidas de pressão arterial, colesterolemia, glicemia, osteoporose; exames sofisticados de imagem que podem ser difíceis de interpretar e podem levar a mais exames, rastreamento de vários tipos de câncer e da gravidez. Segundo o autor, as origens destas situações se devem tanto a médicos e pacientes que acreditariam na efetividade da detecção precoce preemptiva de riscos à saúde, como se deve à interferência de interesses econômicos terapeutizadores do complexo médico-industrial.

 

IHU On-Line - Em tal contexto e pensando desde uma perspectiva da tecnociência, qual é o lugar ocupado pela indústria farmacêutica nos dilemas na saúde?

Luis David Castiel - Ora, há muitos trabalhos que se dedicam a mostrar atitudes éticas duvidosas da indústria farmacêutica para ampliar a lucratividade em suas práticas de mercado. A partir dos anos 1980, esta indústria se agigantou e passou, não à toa, a ser designada como Big Pharma. Destaco aqui, de modo sinóptico, Carl Elliott  no seu livro sintomaticamente intitulado ‘White Coat, Black Hat. Adventures on the dark side of Medicine’ (Boston: Beacon Press, 2010). Nele, ele diz, com certa nostalgia, que “os médicos eram mais fortes que as corporações de saúde. A medicina já foi vista como profissão, não negócio. A comunidade científica acreditava que seus pesquisadores se comportavam honestamente. Hoje os interesses nos empreendimentos médicos são enormes, o centro da pesquisa sobre drogas se deslocou para o setor privado, a educação médica se tornou grande negócio. A medicina foi transformada pelo negócio. Mas ainda se crê que a medicina opera baseada num código de confiança, que funciona entre seus atores: médicos, pacientes, pesquisadores, sujeitos de pesquisa. Ninguém admite que a confiança não está mais garantida” (pág. XV).             

 

IHU On-Line - Em que aspectos a ordem social neoliberal cresceu em função do incentivo às soluções privatizadas de saúde, ao invés daquelas de recorte público?

Luis David Castiel - Aqui temos uma excelente oportunidade para um comentário baseado no livro de Marc Berg  e Stefan Timmermans  sobre o padrão-ouro e o movimento de padronização/estandardização nas práticas médicas que configuram os protocolos e guidelines baseados em evidências. A medicina baseada em evidências (MBE) é parte de um movimento mais amplo de estandardização (ESTD) com a geração de uniformização e controle de qualidade através do aperfeiçoamento de processos de gestão. A noção de que a previsibilidade, capacidade resolutiva e objetividade seguirão automaticamente à uniformização pertence às narrativas mestres iluministas prometendo o progresso através da racionalidade aumentada e controle viabilizando a eficiência.  

A raiz etimológica de standard implica poder. Originalmente, um standard se refere a um objeto notável, perceptível (tal como um estandarte) colocado no alto de um poste e usado como ponto de referência/encontro, especialmente na guerra ou como emblema portando alguma mensagem/informação. Em si, standards podem ser medidas às quais são atribuídos valores qualitativos ou quantitativos. Standards e estandardização são termos amplos, diferentemente definidos, cobrindo muitos objetos e entidades, mesmo quando restritos ao contexto médico. 

Pode-se definir ESTD como o processo de tornar as coisas uniformes, e standard tanto como o meio como o resultado da ESTD. No sentido mais geral, um standard se refere a uma medida estabelecida por autoridade, costumes ou consenso geral para ser usada como ponto de referência. Os princípios básicos do corrente movimento de ESTD foram articulados ao movimento econômico em transição do século XIX para o século XX.

A necessidade de standards emergiu com os processos de produção e mercadorias que cruzaram fronteiras, e negócios e métodos científicos foram contrapostos à fé na comunidade e tradição. Outra motivação foi a preocupação com a padronização de procedimentos de segurança.   

Enquanto o movimento de ESTD do início do século XX ocorreu nos EUA, a profissão médica reformou as escolas médicas e seus currículos e o movimento de estandardização hospitalar tentou criar um conjunto de requerimentos mínimos ao qual cada hospital deveria aderir. O impulso para isto veio da constatação que os pacientes não mais seriam assistidos por seu médico primário, mas por uma equipe multidisciplinar com distintos especialistas baseando-se nas recém-desenvolvidas ciências laboratoriais e tecnologias médicas como patologia clínica e radiologia. 

Este movimento de STD também foi alimentado pelo receio de que os médicos não estabelecessem padrões de eficiência eles mesmos, assim, administradores públicos poderiam fazê-lo. Outro impulso foi o desejo e a necessidade de tornar hospitais instituições financeiramente ‘sãs’.  

Enquanto o progresso científico e tecnológico proporcionou o lustro ideológico que estava associado à ESTD no início do século XX, agora a ESTD apela à ideologia do livre mercado globalizado: a ESTD é vista como uma necessidade devida a mudanças na escala e complexidade do comércio.

No final dos anos 1980, a ESTD reemergiu como um ponto de interesse focal no campo da atenção à saúde. Na medicina, no entanto, ele inicialmente não tomou a conotação neoliberal globalizada. Aqui, outras forças estavam em jogo. Enquanto, no início do século XX, a ESTD limitou-se a não entrar na prescrição do conteúdo essencial da atividade médica, o foco agora era justamente este alvo e se produziu um número crescente de diretrizes e instâncias criadoras de ‘guidelines’.

Partidários da MBE queriam intervir na expertise específica do profissional cuidador: o processo de tomada de decisão médica. Agora, MBE enseja o delineamento de algoritmos que constituem a resposta profissional numa dada situação. De todos os tipos de tentativas de ESTD que afetaram a medicina no século XX, os guidelines baseados em evidência representam o de maior alcance e que mais diretamente procuram prescrever e pré-moldar as ações de profissionais da saúde.  

As altas expectativas e o ceticismo difuso em relação aos standards indicam a natureza passível de debate da ESTD. Para seus adeptos, a análise de custo/benefício da ESTD é muito clara e direta. A rigorosa MBE oferece um vínculo firme entre medicina e evidência científica levando a mais e melhores desfechos em saúde, mais pacientes e clínicos bem informados, base científica para políticas públicas, maior qualidade para decisões clínicas e atividades de pesquisa melhor coordenadas. Críticos, por outro lado, enfatizam o aparente vazio teórico da proposta e sua homegeneização de pacientes em suas singularidades e caracterizaram a MBE como um “culto fundamentalista com tendências evangélicas” que não garante o que promete em termos de resolutividade dos casos.

 

IHU On-Line - Como a pedagogia do medo influencia a busca por vidas longevas e com o máximo de saúde possível? 

Luis David Castiel - Sem dúvidas, a perspectiva preemptiva que estamos comentando reflete tal pedagogia. O grande problema desta proposta é que por mais preemptiva que pretenda ser, ela não tem como dar conta das imponderabilidades da vida e como isto é capaz de alterar expectativas — o acidente aéreo de Eduardo Campos é o exemplo mais recente e óbvio desta afirmação.

Realmente, não é possível controlar as imprevisibilidades futuras e os riscos (probabilidades) correspondentes, por mais que estejamos ampliando enormemente o poder de processamento computacional de dados através de uma medicina big data. Daí o problema das decisões políticas de gestão dos riscos serem tomadas sob premissas relativamente arbitrárias de suspeitas supostamente bem informadas de antecipação sobre a origem, geração e evitação de ameaças, perigos e danos.

Sempre pode haver acontecimentos cujas previsões são totalmente inesperadas e sofrem da condição de serem ‘cisnes negros’ — designação do filósofo e investidor de risco N. N. Taleb  para as limitações do raciocínio indutivo: 1) a ilusão de abrangência compreensiva do que se passa no mundo que é mais complicado e aleatório do que se imagina; 2) a falta de confiança na faculdade dos dados retrospectivos indicarem com segurança as tendências para nosso futuro; 3) a supervalorização de informações factuais provenientes de autoridades, experts e futurólogos, especialmente quando criam categorias de análise sem discussão maior de seus pressupostos. O problema de Taleb parece ser sua fé como ‘cético empiricista’ que propõe tratamentos quantitativos metanalíticos como fonte da verdade para além das previsões estatísticas da curva normal. Infelizmente, isto nem sempre pode trazer a garantia desejada de que o protocolo aplicado no caso de pacientes específicos seja efetivo, em um contexto de fragilização da relação médico-paciente.

Mas, há, também, que se cogitar sobre as repercussões preemptivas na subjetividade autorreferida nos chamados movimentos cada vez mais difundidos de automonitoramento reflexivo/autorrastreamento denominados Quantified Self/Tecnologia autoquantificada (mais detalhes em Bruno Calvazara — http://qga.com.br/tecnologia/2013/09/o-que-e-a-tecnologia-autoquantificada). O movimento autoquantificado consiste no aumento do uso de tecnologia para coletar dados sobre si mesmo. Tais tecnologias — aplicativos para smartphones, dispositivos de GPS e rastreadores de atividade física com acelerômetros — permitem às pessoas autorrastrearem aspectos de suas vidas diárias, incluindo a quantidade de exercício físico feito por dia, o número de passos, a comida ingerida, a duração do sono durante a noite, a frequência cardíaca e até o humor.

Esse monitoramento pretende que os indivíduos ‘aprendam’ mais sobre si mesmos e, também, pretende ajudá-los a tomar medidas para se tornarem mais saudáveis, de acordo com os seguidores do movimento. Eles são Gary Wolf e Kevin Kelly, editores da revista Wired, que geralmente recebem os créditos pela criação do termo “autoquantificado”, cunhado quando eles iniciaram um projeto para acompanhar todas as novas tecnologias de rastreamento.

Eles criaram uma empresa, chamada de Quantified Self Labs (“Laboratórios Autoquantificados”), que tem como objetivo atender os usuários e fabricantes de ferramentas de monitoramento. As pessoas teriam sido capazes de acompanhar seu desempenho nas tarefas diárias de várias maneiras durante anos (p. ex., quantidade de calorias ingeridas), mas as novas tecnologias teriam deixado esse processo bem menos complicado, de acordo com Wolf.

Exemplos : - O Rastreador das Escolhas de Bebida: colocar a bebida e a quantidade que vai ser ingerida para calcular suas unidades de álcool, usada para redução do consumo; - O Jogo de Caminhar: um rastreador torna em jogo a caminhada: ele te diz que uma bomba explodiu numa estação do metrô e você deve transportar um pacote a pé para salvar o mundo; - O Ciclo do Sono: para quem sofre de insônia. Monitora o padrão de sono: quantas horas foram dormidas, quanto tempo de sono profundo, sono leve, quanto não se dormiu. Não deve indicar qual a hora de tomar sonífero, quando você se desespera. Ainda atua como despertador na fase mais leve do sono, para que você comece o dia relaxado e descansado; - O Avaliador do Risco de Diabetes: estabelece seu risco de desenvolver diabetes tipo 2 nos próximos 10 anos através de perguntas simples. Conforme o resultado, indica mudanças de comportamento; - Sliders (Indicador que se desloca horizontalmente ou verticalmente para controlar uma variável): para rastrear seu bem-estar, níveis de energia, sono, usando perguntas para te dar noções de seus altos e baixos; - Diário de Cefaleias: para rastrear cefaleias: quando começam/terminam; graus de severidade, qual área da cabeça e que medicação você toma — isto pode dar um quadro do que as desencadeiam e você pode mudar seu comportamento para reduzi-las. Já se discute o pode adicitivo de tais práticas.

Segundo Deborah Lupton em “Self-Tracking Modes: Reflexive Self-Monitoring and Data Practices” (2014), muitas pessoas manifestam a impotência diante do poder das grandes empresas da internet para coletar, possuir e usufruir de seus dados pessoais. Algumas vezes, usuários de autorrastreadores concordam com o uso de seus dados pessoais como uma parte inevitável da aceitação dos termos e condições de seus dispositivos, aplicativos móveis e plataformas.

Em outros casos, seus dados podem ser acessados sem seu conhecimento ou consentimento. A segurança de dados disponibilizados em plataformas digitais não é à prova de falhas de segurança. A forma como dados digitais podem ser utilizados por diferentes atores e instâncias não pode ser prevista nem controlada. Na medida em que humanos se tornam nós em redes na internet, gerando e trocando dados digitais com outros agentes, as práticas de autorrastreamento se tornarão inevitáveis para muita gente. Parece haver uma abrangência que está se ampliando gradualmente para o uso de autorrastreamento, que provavelmente deve se expandir na medida em que um crescente número de organizações e instâncias se deem conta do potencial dos dados produzidos a partir destas práticas.

O autorrastreamento pode ser visto como uma das estratégias e discursos heterogêneos que colocam o si-mesmo liberal como um cidadão responsável, com vontade e capacidade de tomar cuidado de si ou de seus autointeresses e bem-estar. O neoliberalismo promove o conceito de cidadão que não precisa de coerção para se comportar produtivamente e sob os interesses do Estado. O cidadão voluntariamente assume práticas que tanto servem para seus autointeresses e se conforma aos objetivos do Estado.

 

IHU On-Line - O que isso demonstra sobre a construção de uma subjetividade que é perpassada por práticas adequadas e prescritas por especialistas?

Luis David Castiel - Pode-se dizer que a ideia de si-mesmo (self) nossa está cada vez mais à mercê da ‘terapeutização’ — várias atividades de certos grupos sociais embutem um caráter terapeutizante ao seu cotidiano. Trata-se de um termo pouco encontrado numa rápida pesquisa na rede. Assim, foi possível obter um artigo de dois autores belgas, Mark Elchardus  e Kobe de Keere , de 2010, da revista European Societies, que trata da institucionalização de nova subjetividade (self) nas sociedades mais ricas através de aspectos do que chamam de destradicionalização. O que importa aqui é a referência de terapeutização como o resultado da expansão das disciplinas-psi.

Também, há um artigo colombiano chamado “Higienización y terapeutización de la educación física en las instituciones educativas” da revista Hacia la Promoción de la Salud de 2013, de Victor Alonso Molina Bedoya , que procura identificar os indicadores de gestão para a promoção de hábitos e estilos de vida saudáveis em educação física com um estudo qualitativo para constatar desenvolvimentos ligados à orientação higiênica e biomédica do campo.

Creio que se pode, como sugerido anteriormente, empregar a noção de terapeutização como um argumento que, evitando o termo ‘medicalização’, não adote uma postura benevolente em demasia com as práticas eticamente reprováveis da Big Pharma.       

 

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Luis David Castiel - Um aspecto subjetivo, de modo incipiente e esquemático, que demanda maiores desenvolvimentos, se for o caso, é o possível surgimento de um sintomático exército de três homini: o da prevenção — homo praeventus (etimologicamente: ação de prevenir advertindo), da providência — homo providens (que tem ‘conhecimento antecipado’, antes proporcionado pela divina providência, agora pela suprema ciência que produz verdades experimentais) e o da preempção — homo praeemptionis (essencial para diante da suspeita de ameaças, reagir cortando o mal antes de ele ter raiz). Todos se aliam ao homo economicus do utilitarismo de Bentham  e Stuart Mill .

Em linhas gerais, a ética utilitarista denominada "consequencialista" se assenta na ideia de que cada pessoa deve articular seus interesses particulares com os interesses comuns, de maneira que sua ação gere a máxima utilidade a todas as pessoas envolvidas nos resultados da ação. Da mesma maneira com que cada um deseja naturalmente a felicidade individual, assim também o bem-estar de todos é um bem para a totalidade dos seres humanos. Uma ação boa é aquela que é útil, mas uma ação moralmente correta é aquela cujas consequências se traduzem em felicidade (prazer) para as pessoas. A correção de uma ação é medida pelas consequências que se esperam da mesma. Um modo de avaliá-la é medir o aumento da felicidade (prazer) e a redução do sofrimento dos que são afetados pela mesma, sobretudo em termos de gestão da ‘qualidade’ das ações, sem considerações estruturais. 

O princípio do utilitarismo denominado Utilidade ou Maior Felicidade sustenta que as ações são justas (corretas) na medida em que tendem a promover a felicidade, e injustas enquanto tendem a produzir o inverso da felicidade. A aplicação deste princípio implica um cálculo, uma espécie de aritmética do bem-estar, na qual se avaliam as vantagens e desvantagens das diferentes alternativas de uma dada ação, tendo em conta o grau de satisfação ou insatisfação que delas se pode esperar. Neste cálculo, deve ser considerado um conjunto de parâmetros para avaliar a satisfação/insatisfação esperada, tais como: sua intensidade, duração, certeza ou incerteza, sua tendência, probabilidade de a mesma dar origem a algo da mesma espécie, etc. Este cálculo utilitarista pretende selecionar a ação que seja boa (útil) e moralmente correta, ou seja, que permita obter o máximo de felicidade (prazer) para o maior número de pessoas. Atualmente, parece que o cálculo utilitarista se dirige ao máximo de sobrevida com vitalidade para aqueles que possam ter acesso a estratégias preemptivas, apesar de seus dilemas.

 

Leia mais...

- A dominância das dimensões médicas na sociedade. Entrevista especial publicada na edição 420 da IHU On-Line, de 27-05-2013;

- Saúde e tecnologia. A busca da imortalidade. Entrevista especial publicada no portal do IHU em 14-04-2013.

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