Edição 453 | 08 Setembro 2014

Ciclo de Incerteza. Eco-92 e Rio+20 em discussão

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Andriolli Costa

Luiz Oosterbeek expõe a crise global em todas as esferas que tem marcado o terceiro milênio, e alerta para a necessidade de entender aonde as Conferências do ambiente falharam

Entre os dias 03 e 14 de junho de 1992, a Conferência das Nações Unidas Sobre o Ambiente e o Desenvolvimento reuniu mais de uma centena de chefes de Estado para debater, propor e estabelecer metas que levassem em conta uma relação mais harmoniosa entre o homem e a natureza. Um marco internacional para as discussões sobre ambientalismo, a Eco-92 (ou Rio-92, como também é conhecida) estabeleceu convenções importantes sobre o clima (Protocolo de Kyoto), a biodiversidade e a sustentabilidade (Agenda 21).

Vinte anos depois, uma nova conferência da ONU foi realizada no Rio de Janeiro, a Rio+20. Para o pesquisador do Instituto Politécnico de Tomar (Portugal), Luiz Oosterbeek, no entanto, é “metodologicamente incorreto” comparar os dois eventos em termos absolutos. Assim, mais do que avaliar se o novo evento foi tão representativo como o primeiro, é preciso entender: por que a Eco-92 falhou? Afinal, “o mundo está inegavelmente pior em 2014 do que estava em 1992”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Oosterbeek reflete que há duas possibilidades para compreender esta falha: ou se considera que todos os agentes e governos são incompetentes e mal-intencionados, ou se assume que existe um erro teórico na primeira conferência. “A Eco-92 ignorou uma dimensão fundamental: a divergência de interesses históricos das tradições culturais do planeta e o diferente entendimento que cada uma delas tem de palavras como sustentabilidade, sociedade ou ambiente. O final do século XX ignorou as culturas e pensou que elas seriam engolidas pela globalização. O século XXI está demonstrando, de forma muito dura, que isso foi um erro”.

Para o pesquisador, esta dimensão, por outro lado, foi reconhecida — mesmo que timidamente — pela Rio+20. O evento foi bastante questionado por ter falhado em estabelecer metas mais arrojadas para o enfrentamento das questões ambientais. No entanto, segundo Oosterbeek, acertou “ao colocar as pessoas no centro da sustentabilidade e ao assumir que, mais do que metas, precisamos acordar caminhos partilhados”. E finaliza: “É pouco? Sim. Porém, é muito mais do que desejos generosos mas irrealistas”.

Luiz Oosterbeek é licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com doutorado em Pré-História e Arqueologia pela Universidade do Porto. Atualmente é professor do Departamento de Território, Arqueologia e Patrimônio do Instituto Politécnico de Tomar, Secretário-Geral da União Internacional das Ciências Pré-Históricas e Proto-Históricas e Vice-Presidente de HERITY International; integrou a área de Ciência e Sociedade do programa CYTED. É diretor do Museu de Mação e presidente do Instituto Terra e Memória. É autor de diversas obras, entre elas Arqueologia, patrimônio e gestão do território (Erechim: Habilis Editora, 2007) e Arqueologia trans-atlântica (Erechim: Habilis Editora, 2007).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A Eco-92 é tida como um marco histórico nas discussões sobre a cultura socioambiental no cenário internacional. Você acredita que a Rio+20 teve a mesma representatividade? Por quê?
Luiz Oosterbeek –
É sempre anacrônico, metodologicamente errado e, sobretudo, intelectualmente frágil, comparar em termos absolutos eventos extraídos de seus contextos. A Eco-92  foi de fato um evento muito marcante, que culminou mais de duas décadas de crescente afirmação da chamada “agenda ambiental” e se beneficiou do otimismo, um pouco apressado e ingênuo, resultante da queda do Muro de Berlim. A conferência cuidou de estabelecer metodologias e de estabelecer metas, considerando o planeta no seu todo. Acertou bastante em algumas metodologias (especialmente a Agenda 21 , mas importa lembrar que é depois de 92 que se generalizam os Ministérios de Meio Ambiente em todo mundo) e falhou em grande medida nas metas.

O que interessa hoje é perceber o porquê desta falha, pois o mundo está inegavelmente pior em 2014 do que estava em 1992. E aqui ou se considera que todos os agentes e governos são incrivelmente mal-intencionados ou incompetentes, ou se assume que talvez existisse um erro teórico na Eco-92, que aliás já estava na formulação anterior do chamado “tripé da sustentabilidade”. Na minha opinião, a Eco-92 ignorou uma dimensão fundamental: a divergência de interesses históricos das tradições culturais do planeta e o diferente entendimento que cada uma delas tem de palavras como sustentabilidade, sociedade ou ambiente. O final do século XX ignorou as culturas e pensou que elas seriam engolidas pela globalização. O século XXI está demonstrando, de forma muito dura, que isso foi um erro. A Rio+20 teve um mérito: reconheceu a dimensão cultural, ainda que de forma tímida, ao colocar as pessoas no centro da sustentabilidade, e ao assumir que, mais do que metas, precisamos acordar caminhos partilhados. É pouco? Sim. Porém, é muito mais do que desejos generosos mas irrealistas.

IHU On-Line – O grande tema da Rio +20 era “O futuro que queremos”. No entanto, sem a adesão dos Estados Unidos e com a supressão de metas mais polêmicas, quais indicativos são possíveis de se estabelecer?
Luiz Oosterbeek –
Sobre a questão das metas creio já ter deixado claro que não as considero o mais importante nesta fase, que é uma fase de construção de confiança entre as partes. Vivemos uma nova grande depressão (ainda que os governos tenham medo de o admitir) e estamos assistindo a todos os sinais que acompanharam as depressões anteriores, de 1873-96 e de 1929-47, incluindo as guerras. Pensar que se pode construir uma agenda de sustentabilidade comum sobre a base de interesses estratégicos divergentes é uma ingenuidade cara.

Os EUA são essenciais neste processo, mas o que Obama disse há uns dias sobre o Estado Islâmico, ao confessar que “ainda” não tem uma estratégia, é algo que muitos governos poderiam dizer, sobre muitos assuntos — da Ucrânia ao sistema monetário internacional — e que, obviamente, já não funciona. Os recuos da União Europeia em muitas matérias, e desde logo o avanço da pobreza e da extrema direita no velho continente, vêm ajudar-nos a perceber que o problema não se pode resolver de forma pontual. A Rio+20, ao falar em gestão integrada do território (GIT) , deu um contributo positivo relevante. A questão agora é como operacionalizar essa GIT, e, na minha opinião, só há uma forma: a partir do reconhecimento da diversidade cultural. A obsessão do caminho único, que é uma variante do pensamento único, nunca ajudou a construir nenhuma parceria e está agora a destruir rapidamente a União Europeia, por exemplo.

IHU On-Line – Quais são, atualmente, as perspectivas de futuro vislumbradas internacionalmente? Qual o paradigma que norteia estas políticas? 
Luiz Oosterbeek
– Não há um paradigma, há vários em conflito, e infelizmente os que parecem ter mais força agora são os paradigmas anteriores aos acordos do pós-2ª Guerra (Ialta , Bretton Woods , etc.). Vemos renascer a ilusão da força dos antigos impérios, completamente a contraciclo do ponto de vista da globalização, mas natural enquanto resposta cultural baseada na desconfiança e no medo. Há certamente um novo paradigma, que defendo, que é o de uma GIT que vá integrando as dinâmicas e propicie novas formas de governança. Um paradigma que assuma que a incerteza é a regra do século XXI, e que por isso o foco não devem ser as metas (destinadas a falhar) e sim os mecanismos de parceria, envolvendo países, instituições e pessoas. Especialmente compreendendo o papel decisivo que as pessoas têm nos momentos de viragem para o desconhecido, que é o que vivemos hoje.

IHU On-Line - Em tempos em que o pensamento ecológico, sistêmico e conectivo parece ter se fortalecido bastante, tanto empírica quanto teoricamente, vemos, por outro lado, que o abismo da desigualdade nunca foi tão grande. Como atingir a sustentabilidade se a racionalidade econômica tende à concentração e à segregação?
Luiz Oosterbeek –
Não creio que o pensamento ecológico, sistêmico e conectivo seja hoje mais forte do que era, por exemplo, no tempo de Kant. É verdade que é maior hoje do que era nos anos 1950 ou 1960, mas também é verdade que já foi maior em 2000 do que é agora em 2014. A fome e a guerra são indutores do isolacionismo, da segregação. E o niilismo, cultivado por boa parte das elites que fazem opinião, é hoje um problema dramático.

Há momentos na história em que a racionalidade e a urgência não estão juntas. Foi assim no início da revolução industrial, quando a racionalidade promovia a proletarização e a ruína do campesinato, para potenciar o crescimento econômico (ao qual muito devemos hoje, sendo que o preço foi pago pelos milhões que na época pioraram de vida). Hoje, a economia cresce quando a tecnologia retira mão de obra da produção, e por isso vivemos um dilema: os que se opõem a esse progresso tecnológico não percebem que não é possível voltar atrás sem que morra pelo menos cerca de um terço da população mundial de forma violenta; os que apenas apostam no crescimento não percebem que não é possível mobilizar alegremente milhões de pessoas em nome de um progresso de que vão se beneficiar, talvez, os seus tataranetos. Especialmente agora que a natalidade diminui.

O caminho passa de novo pela GIT, integrando aí um forte investimento social: foi assim que Bismarck  criou o Estado Social e superou a 1ª depressão, e foi assim com o New Deal  e Keynes . Creio que os mais esclarecidos dirigentes do planeta, no Brasil, nos EUA, na China ou no Irã, para citar apenas alguns, percebem isto, embora de formas distintas. Creio que grandes empresários, como Warren Buffett  ou Bill Gates , também o entendem. A escolha, apesar de tudo, é simples: ou uma GIT que integre a diversidade cultural e atenda à dimensão social com mais atenção à economia e menos espaço para a financialização, ou a guerra. Não há terceiro caminho.

IHU On-Line – Como promover um desenvolvimento para a liberdade, e não um crescimento que aprisiona e separa?
Luiz Oosterbeek –
A vida tem contradições, e as palavras têm múltiplos sentidos. Há quem entenda que há mais liberdade quando se pode dizer o que se pensa, ainda que 25% da população não tenha emprego; há quem pense que a liberdade é essencialmente o direito empresarial de cada um; há quem entenda que a liberdade só existe quando pode ser exercida com base na estabilidade da sua vida e no conhecimento… O crescimento nunca aprisiona, o que aprisiona é a gestão que se faz desse crescimento. É muito perigoso o discurso do decrescimento , pois há hoje 7 bilhões de pessoas que precisam comer, e isso só se consegue com crescimento. Mas o crescimento não basta: é preciso uma redistribuição da riqueza, que vai ser feita ou por consenso ou de forma violenta. O importante é perceber que não se pode reduzir um caminho de dilemas a uma sequência de títulos de jornal.

IHU On-Line - Uma das ressalvas que você faz à Rio-92 foi que ela não considerava a diversidade cultural — visto que “cultura também é economia”. Qual a importância de considerar este fator?
Luiz Oosterbeek –
Há um equívoco muito grande quando se separa cultura de economia, porque a economia é a regulação das atividades humanas articulando necessidades com recursos. Ora, as necessidades são culturalmente percepcionadas (no Brasil deve haver poucas pessoas com necessidade de comer arroz no café da manhã, por exemplo), os recursos só são úteis se houver conhecimento para reconhecê-los e utilizá-los, e tudo isso forma, ao cabo de séculos, o modo de estar de uma comunidade, ou seja, uma cultura. Quando se olha para Ouro Preto ou para a Serra da Capivara, ver só a estética desses lugares não nos ensina quase nada. Importa perceber como se formaram, as razões de colocar as Igrejas ou a arte rupestre em determinados lugares, e isso significa entender os processos econômico-culturais. Hoje é a mesma coisa: a opção de criar uma cidade administrativa em Belo Horizonte, mais perto do aeroporto de Confins, é uma escolha econômica (em função do projeto de aerotrópole) ou cultural (quando se cria o circuito de museus da Praça da Liberdade ou se busca a assinatura de Niemeyer  para o novo complexo)? Uma coisa não se pode distinguir da outra. Quando se separa a economia da cultura (o que é um fenômeno recente), cria-se um gueto para a cultura e reduz-se a economia a uma operação de contabilidade e finanças. Esta tem sido a escolha depois de 1970… e o resultado é visivelmente mau.

IHU On-Line - Como a questão cultural passou a ser vista após a Rio+20?
Luiz Oosterbeek –
Se se perguntar a grande parte dos dirigentes políticos o que eles pensam da cultura, talvez eles ainda pensem que são aquelas coisas de que cuidam os Ministérios da Cultura: as artes, o patrimônio… Mas na medida em que a Rio+20 percebeu a importância da diversidade cultural para a sustentabilidade (nas declarações sobre a centralidade da pobreza, mas também em eventos como o Humanidade 2012 ), deu passos no caminho certo. Falta ainda fazer esse caminho, no entanto, começando por promover projetos integradores de cultura e economia. Há setores que são mais sensíveis a isso, como o turismo, claro. Mas se pensarmos na exportação de vinhos do Brasil, é muito claro que ela só se conseguirá consolidar com uma forte afirmação cultural.

IHU On-Line - O que vem a ser a gestão integrada e por que ela vem sendo apontada como fundamental para o desenvolvimento sustentável?
Luiz Oosterbeek –
Durante toda a primeira década do século XXI, em Mação  e em diversos cenários se foram organizando intervenções de GIT, que se apoiam na compreensão de que conhecimento (do meio ambiente, da tecnologia e dos processos sociais) e logística (que na verdade é um conhecimento aplicado à equação espaciotemporal) são as bases de um processo que deve olhar o futuro enxergando os dilemas de escolha que se oferecem, a cada momento, à sociedade, o que por sua vez favorece a definição de visões convergentes de médio e longo prazo, e também a governança. É esse processo que deu origem ao Instituto Terra e Memória , incialmente constituído na Europa e agora, também, no Brasil.

Gestão Integrada do Território é o que faziam as sociedades que no passado foram bem-sucedidas. Num ciclo de mudança sistêmica global, todas as atenções tendem a se concentrar, alternadamente, em apenas um dos seus vetores: ora o financeiro, ora o social, ora o ambiental, algumas vezes o econômico, raras vezes o cultural. E todas essas atenções se vão deslocando de um para outro à medida de suas desilusões, constatando que não são mais eficazes e suficientes as soluções setoriais de problemas.

A GIT supera estéreis debates sobre as opções entre crescimento e desenvolvimento e constrói um quadro de discussão em que a didática dos dilemas é o elemento nuclear, para a elevação das competências críticas dos indivíduos, para que estes possam decidir sobre nosso futuro coletivo. Neste processo, mais do que ambiente, economia ou cultura, é a palavra território que se torna nuclear, e, num futuro que se apresenta incerto e inseguro, a concorrência entre territórios e a sua possível certificação serão certamente realidades.

A maioria das teorias econômicas defende que o elemento decisivo para o futuro é o crescimento, e que este se apoia, sobretudo, nos investimentos para esse futuro, como a educação, a tecnologia e as infraestruturas. Porém, essa visão não considera suficientemente a dimensão humana nos seus dois eixos fundamentais: cognitivo-temporal (cultura) e organizativo-espacial (sociedade). É por isso que privilegia uma variável contínua e não personalizável (o crescimento) sobre uma variável discreta, mas muito mais poderosa e decisiva: a governança. Ora é na dimensão da governança que de fato se joga o futuro. Precisamos, assim, de uma estratégia que assuma a governança como preocupação fundamental, e integre as demais dimensões. Falarei com mais detalhe deste processo, e das equações que podemos usar nele, durante o III Congresso Internacional de Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável , em Belo Horizonte.

IHU On-Line – Deseja acrescentar mais alguma coisa?
Luiz Oosterbeek -
O início do terceiro milênio está sendo marcado por uma crise global que se exprime em todas as esferas: economia (reorganização dos mercados, dificuldades do sistema monetário internacional), sociedade (quebra acentuada da natalidade no planeta, desemprego estrutural em muitos territórios, crise da classe média no hemisfério norte), ambiente (crise energética, desertificação) e culturas (crescente mobilidade por motivos econômicos e de segurança, consequente questionamento das fronteiras, não apenas socioeconômicas e políticas, mas, também, identitárias). Precisamos construir instrumentos para um ciclo de incerteza.

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