Edição 452 | 01 Setembro 2014

É preciso elevar as motivações políticas e econômicas

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Luciano Gallas

"Uma economia alimentar que valorize o produto local deve pensar em uma nova forma de organização, com escalas menores e não homogeneidade ou comparabilidade entre os preços", aponta Patrícia Barbieri

“O desperdício de alimentos constitui uma questão ética quando pensamos na capacidade do ser humano de ajudar seus semelhantes. Todos nós somos capazes de buscar soluções para o desenvolvimento do bem comum. Seja pela justiça social, destinação de bens naturais, prática da solidariedade ou respeito pelo meio. Para tornar possível o progresso e chegar a eliminar o desperdício de alimentos, acabando com a fome de milhares de pessoas, precisamos elevar nossas motivações políticas e econômicas. A busca de um mundo bem melhor converge para ações que promovam a sustentabilidade socioambiental e isso depende do não pensar só em si”, constata Patrícia Barbieri na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.

Neste texto, entre outros aspectos, ela analisa as vantagens da produção local de alimentos em contraposição à distribuição de produtos homogeneizados em escala global e enumera as consequências de um modelo e outro. “Além de reduzir a emissão de gases de efeito estufa, o incentivo à produção local pode melhorar a situação de renda e emprego e dinamizar regiões deprimidas. A produção local reduz as perdas durante o transporte dos alimentos, o que melhora a oferta de produtos de qualidade para a distribuição. Por esse motivo, a venda de alimentos orgânicos, isentos de agrotóxicos, a grandes distâncias dos seus locais de produção, é uma das contradições da nossa sociedade de consumo. Esses alimentos dependem de um cultivo delicado e atencioso, o que aumenta o seu valor de venda. Portanto, uma economia alimentar que valorize o produto local deve pensar em uma nova forma de organização, com escalas menores e não homogeneidade ou comparabilidade entre os preços”, avalia.

Patrícia Barbieri é graduada em Administração de Empresas, com pós-graduação em Gestão Ambiental Empresarial e especialização em Sustentabilidade Socioambiental. É gerente geral da Associação Prato Cheio, de São Paulo - SP.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as consequências sociais e econômicas do desperdício de alimentos no Brasil?
Patrícia Barbieri -
Enquanto 870 milhões de pessoas passam fome todos os dias, 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são perdidas ou desperdiçadas anualmente no mundo. O Brasil também apresenta um alto nível de desperdício e esse quadro causa perdas econômicas, seja pelo custo envolvido na cadeia produtiva até a mesa do consumidor, seja pelo impacto significativo sobre os recursos naturais dos quais a humanidade depende para se alimentar (alimentos produzidos e não consumidos são responsáveis pela emissão de 3,3 mil milhões [3,3 bilhões] de toneladas de gases de efeito estufa na atmosfera do planeta) ou também pelos custos relacionados à saúde, gerados pela falta de acesso a alimentos — até o comprometimento do desenvolvimento intelectual por falta de acesso a nutrientes.

IHU On-Line - Que ações estão sendo realizadas, pela estrutura estatal e também pela sociedade civil, para a diminuição do desperdício, de forma a atender as populações em condição de vulnerabilidade social?
Patrícia Barbieri -
A perda e o desperdício de alimentos impõem uma grande oportunidade para que façamos a transição para uma economia verde inclusiva, de baixo carbono e eficiente na utilização de recursos. A FAO apresentou um relatório no qual destaca benefícios que podem ser obtidos, em muitos casos por meio de medidas simples e sensatas ao nível das famílias, lojas, restaurantes, escolas e empresas, e que podem contribuir para a sustentabilidade ambiental, melhorias econômicas, a segurança alimentar e para a realização do Desafio Fome Zero da Organização das Nações Unidas - ONU.

Em nível de governo, são diversas as ações que poderiam ser desenvolvidas ou reforçadas. No campo, é possível melhorar os sistemas de informação para que o agricultor não utilize variedades inadequadas ou faça o seu plantio em condições de risco climático. No transporte, caberia ao governo ou às agências reguladoras padronizar as embalagens e condições de conservação do produto. Na comercialização, muito poderia ser feito quanto à rotulagem e à melhor comunicação no que diz respeito ao prazo de validade dos alimentos processados. Finalmente, junto ao consumidor, o Brasil ainda está atrasado no que se refere às campanhas de conscientização.

Por sua vez, a sociedade civil, através das organizações não governamentais, vem contribuindo com projetos de colheita urbana, hortas urbanas e com muitas campanhas de doação de alimentos que antes seriam desperdiçados, além de cursos de capacitação para profissionais de cozinha e donas de casa para reduzir o desperdício com o aproveitamento integral dos alimentos, e a otimização de compras e armazenamento, junto a comerciantes e consumidores, a fim de prover a segurança alimentar às populações em situação de vulnerabilidade e risco social com o excedente.
 
IHU On-Line - De que forma o desperdício de alimentos constatado em nossa sociedade constitui uma questão ética?
Patrícia Barbieri -
O desperdício de alimentos constitui uma questão ética quando pensamos na capacidade do ser humano de ajudar seus semelhantes. Todos nós somos capazes de buscar soluções para o desenvolvimento do bem comum. Seja pela justiça social, destinação de bens naturais, prática da solidariedade ou respeito pelo meio. Para tornar possível o progresso e chegar a eliminar o desperdício de alimentos, acabando com a fome de milhares de pessoas, precisamos elevar nossas motivações políticas e econômicas. A busca de um mundo bem melhor converge para ações que promovam a sustentabilidade socioambiental e isso depende do não pensar só em si.

IHU On-Line - Qual é a relação entre produção local e melhor aproveitamento dos alimentos? A produção local favorece a diminuição da poluição e do uso de agrotóxicos, tendo em vista a proximidade geográfica entre produção e consumo?
Patrícia Barbieri -
Vários movimentos internacionais foram criados para valorizar os circuitos curtos de distribuição de alimentos. Qual é o sentido de fazer o alimento viajar milhares de quilômetros? Além de reduzir a emissão de gases de efeito estufa, o incentivo à produção local pode melhorar a situação de renda e emprego e dinamizar regiões deprimidas.

A produção local reduz as perdas durante o transporte dos alimentos, o que melhora a oferta de produtos de qualidade para a distribuição. Por esse motivo, a venda de alimentos orgânicos, isentos de agrotóxicos, a grandes distâncias dos seus locais de produção, é uma das contradições da nossa sociedade de consumo. Esses alimentos dependem de um cultivo delicado e atencioso, o que aumenta o seu valor de venda. Portanto, uma economia alimentar que valorize o produto local deve pensar em uma nova forma de organização, com escalas menores e não homogeneidade ou comparabilidade entre os preços.
 
IHU On-Line - No meio urbano, quais são as principais causas do desperdício de alimentos? Em que circunstâncias ele ocorre?
Patrícia Barbieri -
Segundo estudos desenvolvidos pela FAO, as maiores perdas e ocorrências de desperdício na América Latina e Caribe se encontram na fase de produção do alimento, sendo que a comercialização e a manipulação pelo consumidor vão representar 15% do total. Esse é o verdadeiro valor do desperdício. Pode parecer uma porcentagem baixa, mas é a parte visível do problema e, por aí, pode-se imaginar quantas pessoas deixam de ter acesso ao alimento.
 
Na fase de comercialização, muito do desperdício se dá porque o comerciante dá preferência pela venda de alimentos com melhor aspecto estético e maior prazo de validade, a fim de obter maior lucro e atender com excelência seus clientes. Os alimentos que não se enquadram nos padrões comerciais são descartados.

O consumidor brasileiro, por sua vez, não está habituado a planejar suas compras e perde os alimentos ainda na geladeira. Enquanto a fome afeta uma em cada oito pessoas no mundo, um terço do que se produz não chega à mesa e aumenta o volume de lixo orgânico ainda sem destinação adequada.
 
IHU On-Line - Como assegurar a coleta segura de alimentos frescos para posterior repasse às populações em situação de vulnerabilidade? Que tipo de alimento é tradicionalmente recolhido nestas ações urbanas e quais são suas condições para consumo?
Patrícia Barbieri -
A colheita urbana geralmente arrecada alimentos frescos (frutas, legumes e verduras) que seriam descartados pelo comerciante, porque perderam seu valor comercial. A qualidade desses alimentos é assegurada pelo compromisso dos comerciantes, doadores parceiros, com as iniciativas existentes (geralmente com organizações não governamentais e Bancos de Alimentos Municipais), em doar alimentos que, mesmo sem valor para a venda, preservam suas características nutricionais (frutas um pouco amassadas, legumes com pontas descoloridas, etc.).

Assim, podemos garantir que os alimentos tenham qualidade para serem oferecidos com segurança, como complemento das refeições de pessoas em situação de vulnerabilidade e risco social.

IHU On-Line - Quais são as principais ações desenvolvidas pela Associação Prato Cheio?
Patrícia Barbieri -
A Associação Prato Cheio nasceu em 2001 e tem a missão de “promover o acesso à alimentação adequada para pessoas em situação de vulnerabilidade e risco social, através do combate ao desperdício de alimentos e da educação nutricional, contribuindo para o desenvolvimento socioambiental”.

Alinhados aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, os projetos da Prato Cheio contribuem para o combate da fome e da desnutrição, além de melhorar o aproveitamento de alimentos que normalmente seriam desperdiçados na cadeia produtiva. Nossos principais projetos são:

- Rota Solidária - Programa Colheita Urbana, conceito desenvolvido pela Food Chain, uma rede de organizações não governamentais norte-americana e canadense. Tem como base a coleta de alimentos frescos de forma segura e seu posterior repasse. Arrecadou 185 toneladas de alimentos em 30 doadores parceiros no ano de 2013 e atualmente contribui com a alimentação diária de 8,5 mil pessoas em situação de vulnerabilidade social, atendidas em 52 entidades assistenciais de São Paulo;

- Nutrindo com Saúde, ação de continuidade do projeto Rota Solidária. É um programa de educação nutricional, movido por três ações: avaliação nutricional, oficinas culinárias e oficina “da casca ao talo”. Este projeto capacita os profissionais de cozinha e consumidores em geral para oferecerem maior valor nutricional agregado às refeições com menor desperdício de alimentos, além de técnicas de segurança e higiene. Mensalmente capacitamos cerca de 100 pessoas em oficinas culinárias ministradas em laboratórios de técnica e dietética de universidades parcerias. Além dessa atividade, o projeto levanta dados antropométricos das crianças que recebem os alimentos que doamos (elas correspondem a 76% das pessoas que atendemos). Assim, avaliamos o desenvolvimento e benefícios gerados pelo consumo de hortifrútis e a mudança de hábitos alimentares.

IHU On-Line - Gostaria de adicionar algo?
Patrícia Barbieri -
A sustentabilidade socioambiental necessita de ações permanentes que visem não apenas ao aperfeiçoamento tecnológico e profissional, mas também que sensibilize a sociedade sobre as fragilidades enfrentadas pela maioria, ainda carente de recursos básicos como saneamento, alimentação e educação. Quando conseguimos enxergar os menos favorecidos e agimos, mesmo que com pequenos gestos, podemos melhorar a qualidade de vida de muitas pessoas. Mas essa ação não pode ser assistencialista. Acredito que o desafio seja prover para o autodesenvolvimento: “ensinar a pescar; conforme a necessidade, dar a vara e mostrar onde tem peixe”.
 
A Associação Prato Cheio nasceu para suprir uma necessidade essencial, mas trabalha para que as entidades assistidas por ela sejam capazes de conseguir suas próprias doações, reduzindo o desperdício de alimentos junto aos comerciantes dos seus entornos, reduzindo custos com transporte (custos ambientais e econômicos) e promovendo a relação entre esses stakeholders. Para quem estiver sensibilizado sobre as questões que defendemos, peço que acessem nosso site — www.pratocheio.org.br — para saber mais sobre nossas atividades. Também temos uma página no Facebook — www.facebook.com/Apratocheio — onde podem ser acompanhadas nossas ações.

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