Edição 452 | 01 Setembro 2014

O desperdício nosso de cada dia

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Ricardo Machado e Luciano Gallas / Colaboração: Julian Kober

Enquanto você lê esta pequena frase, uma pessoa acaba de morrer de fome no mundo. Ao final desta reportagem, serão dezenas. Ao fim de um dia, serão 40 mil desvalidos por falta de alimentos. "Morte por fome é assassinato", aponta o ex-relator especial para o Direito à Alimentação da Organização das Nações Unidas - ONU Jean Ziegler, em reportagem à emissora alemã de rádio e televisão Deutsche Welle. Ainda de acordo com dados da ONU, uma a cada oito pessoas sofreu de fome crônica no período de 2011 a 2013, não obtendo alimentos suficientes para levar uma vida ativa e saudável.

Em números totais, a fome atinge 842 milhões de pessoas no mundo todo, conforme o levantamento da ONU. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação – FAO, o Brasil ocupa a faixa de países em que a fome é considerada baixa, ainda que sejamos a sétima economia mundial. A frieza dos números não mostra, porém, as complexidades de um país altamente desenvolvido nas áreas urbanas, em contraponto à miséria que impera em determinadas regiões do interior.

O problema da fome, entretanto, não está relacionado necessariamente à falta de alimentos. Há inúmeros fatores em jogo, entre eles a desigualdade no acesso à nutrição e o desperdício. Ao debatermos tal problemática, é importante levar em conta dois aspectos centrais, mas distintos: as perdas ocorridas na produção e transporte de alimentos e o desperdício de itens que são comprados, mas não são consumidos, como faz, por exemplo, quem deixa a comida no prato depois das refeições ou quem deixa passar o prazo de validade dos produtos e os joga no lixo.

De acordo com a FAO, cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são perdidas por ano em todo o mundo. Para o engenheiro agrônomo e doutor em Economia Altivo de Almeida Cunha, consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD e da própria FAO, este dado é dramático, pois equivale a aproximadamente 30% do total de alimentos produzidos no mundo e a mais de 6,5 vezes a produção anual brasileira de grãos, considerada uma das maiores do planeta.

Os dados da FAO apontam que são produzidos alimentos para 12 bilhões de pessoas, enquanto a população mundial é de 7 bilhões. Esther Vivas, ativista política e social que concedeu entrevista na edição 442 da IHU On-Line, em artigo publicado no sítio Brasil Post, é categórica ao criticar o rumo que a produção de alimentos tomou nas últimas décadas. “A fome não é uma fatalidade inevitável que afeta determinados países. As causas da fome são políticas. Quem controla os recursos naturais (terra, água, sementes) que permitem a produção de comida? A quem beneficiam as políticas agrícolas e alimentares? Hoje, os alimentos se converteram em uma mercadoria, e sua função principal, alimentar-nos, ficou em segundo plano”, avalia ela.

Desperdício hiperlocal
Com o intuito de construir uma pequena amostragem da realidade dos restaurantes presentes no campus São Leopoldo da Unisinos, a reportagem do Instituto Humanitas Unisinos - IHU procurou os responsáveis pelos estabelecimentos para fazer um levantamento sobre a quantidade de comida que é deixada nos pratos após as refeições. Como alguns restaurantes não autorizaram a divulgação dos respectivos nomes, optamos por apresentar dados que englobam a totalidade de refeições servidas em três dos cinco estabelecimentos que possuem buffets e operam dentro do campus da Unisinos em São Leopoldo - RS. Dois dos restaurantes não informaram os dados sobre o desperdício de alimentos.

São servidas nos três restaurantes cerca de 1500 refeições por dia. Do serviço, resultam 35 quilos de comida que são jogados no lixo, cuja origem são os restos deixados nos pratos pelos próprios consumidores, ou seja, alimento que é pago e não é ingerido. Ao longo de um mês, a quantidade de comida jogada fora ultrapassa os 800 quilos, o que significa que, em um ano, aproximadamente 10 toneladas de comida são descartadas sem nenhum aproveitamento.

“Eu vejo muito desperdício! Na verdade, eu acho que isso faz parte de uma cultura de fartura que temos por aqui. Sou da região da Serra, onde a tradição são as mesas cheias de comida. Isso faz com que, na hora de comer fora, as pessoas adotem a mesma postura: pratos cheios que, na maioria das vezes, não serão consumidos. Há muito alimento que é deixado no prato mesmo”, aponta Priscila Tonietto, 22 anos, estudante do sétimo semestre do curso de Jornalismo na Unisinos. “No entanto, na universidade, eu vejo menos isso. A maioria do pessoal está iniciando carreira, começando a assumir suas contas, e percebe que, para as finanças fecharem no final do mês, é preciso evitar esse tipo de desperdício. Evito ‘comer com os olhos’, só mesmo o que o corpo precisa”, complementa ela.

Tiago Fentzke, 24 anos, estudante do sétimo semestre de Publicidade e Propaganda na Unisinos, também percebe pessoas desperdiçando comida. “É comum entrar nos restaurantes e ver gente se servindo além da conta. Eu tenho o hábito de pegar apenas o que eu sei que vou ter capacidade de comer. É simples, não vejo motivo para não fazer isso, e é comida que acaba sendo desperdiçada”, descreve. Andresa Raguzoni Tedesco, 24 anos, formada em Gastronomia na Unisinos, se alinha a esta perspectiva e ainda dá uma dica de como evitar o desperdício. “Costumo ver desperdício com bastante frequência. Penso que é apenas uma questão de controle. Quando como fora, primeiro dou uma olhada no buffet, vejo o que tem de comida, e depois já sei o que vou querer comer. Então sirvo só o que quero mesmo! Pra mim funciona. Normalmente não jogo comida fora.”

Perda de alimentos
Conforme estudos desenvolvidos pela FAO, as maiores ocorrências de perdas e desperdício de alimentos na América Latina e Caribe ocorrem nas fases de produção e transporte, enquanto as perdas e o desperdício constatados na comercialização e manipulação pelo consumidor representam 15% do total de alimentos que são descartados sem uso. Na Europa, América do Norte e Oceania, os números indicam a situação oposta, com um percentual de 30 a 40% do desperdício concentrado na fase do consumo. Contra este desperdício em específico, o consumidor só depende de si para começar a resolver o problema. Precisando, para isso, modificar seus próprios hábitos de consumo.

A questão torna-se ainda mais relevante quando se considera que a fome afeta uma em cada oito pessoas no mundo, como citado antes. Além disso, é preciso ter em conta que, das mais de 180 mil toneladas de resíduos sólidos produzidos por dia no Brasil, mais da metade é formada por resíduos orgânicos, a maior parte constituída justamente pelos alimentos descartados nos processos de produção e comercialização e pelo consumo realizado de forma não consciente.

Ainda assim, conforme a engenheira agrônoma Anita de Souza Dias Gutierrez, presidente do Instituto Brasileiro de Qualidade em Horticultura – HortiBrasil e chefe do Centro de Qualidade em Horticultura da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo – Ceagesp, as perdas verificadas nas centrais de abastecimento em geral, e na Ceagesp em particular, não excedem 1,5% do peso total das frutas e hortaliças que dão entrada nestes armazéns.  Conforme ela, parte destes 1,5% de alimentos que viram lixo é formada ainda por restos de palha e coroa de abacaxi, entre outros vestígios deixados pela atividade de comercialização realizada nestes locais — os alimentos mais desperdiçados seriam aqueles enviados a granel para a central de abastecimento, notadamente o mamão e o abacaxi. É provável que o pequeno percentual de desperdício esteja relacionado à perda de peso e à compactação sofridas pelos alimentos descartados enquanto vão sendo manuseados ao longo do dia, principalmente devido à eliminação de água.

Produção local
A engenheira agrônoma Anita Gutierrez entende que o incentivo à produção local, com a aproximação entre as regiões de plantio de frutas e hortaliças e os locais de consumo, baseada no oferecimento dos alimentos da estação, embora importante, não resolverá o problema do desperdício. Até porque, na sua avaliação, este modelo de comercialização não conseguirá atender à demanda por alimentos dos grandes centros urbanos. “O varejo e o serviço de alimentação precisam do mix de frutas e hortaliças todos os dias — um pouco de cada. A produção é especializada, sazonal, fragmentada. A população está concentrada em grandes centros urbanos”, pondera. Segundo ela, a Ceagesp recebe hortaliças e frutas de mais de 1,5 mil municípios, de 24 estados brasileiros e de outros 15 países.

Para percorrer as grandes distâncias entre os locais de produção e de consumo e resistir ao manuseio e ao transporte realizados, os alimentos acabam por ser colhidos ainda “verdes”, imaturos — eles apresentam maior resistência neste estágio. O problema é que o alimento adquirido pelo consumidor nestas condições vai acabar estragando na sua residência, durante o processo de amadurecimento. “A fruta colhida verde não tem sabor. A fruta colhida madura é mais valorizada na comercialização. No entanto, a comercialização é uma corrida contra o tempo. O produto precisa ser colhido imaturo, muito firme, para aguentar o transporte. O que fará com que ele não tenha boa qualidade de consumo”, reconhece ela.

Dados disponíveis indicam que uma fruta ou hortaliça cultivada em São Paulo leva quatro dias entre a colheita e o consumidor final. No Nordeste, este tempo saltaria para sete dias. E a maior parte do transporte é realizada em carga seca, sem refrigeração. Além disso, há a questão das responsabilidades sobre o transporte dos alimentos, as quais não são devidamente reguladas pela legislação. “A responsabilidade pelo produto é do seu fabricante — no caso, o produtor. No Brasil, não existem regras de responsabilização de cada agente ao longo do processo de produção, transporte e comercialização”, constata Anita. Assim, até mesmo os custos do transporte recaem sobre o agricultor, que se torna o elo da cadeia mais prejudicado em termos econômicos.

Para Anita Gutierrez, este conjunto de práticas de manuseio e conservação dos alimentos na produção, transporte e venda, tanto no atacado quanto no varejo, precisa ser melhor avaliado e corrigido. “Pode-se dizer que, na maioria das situações, as práticas adotadas de colheita e pós-colheita são inadequadas, especialmente no varejo, quando são tirados os produtos da embalagem e misturados produtos de diferentes origens, num manuseio que causa ferimentos, aceleração do metabolismo [e, portanto, do amadurecimento], ‘murcha’ e desenvolvimento de podridões por micro-organismos oportunistas”, sintetiza a engenheira agrônoma. Na Ceagesp, os produtos que não têm mais valor de venda, que são rejeitados pelos compradores, são doados pelos atacadistas para mais de 300 entidades cadastradas. A companhia mantém um banco de alimentos que recebe as doações e as repassa para as instituições interessadas.
 
Mudança climática, agronegócio e sustentabilidade
Segundo o relatório Alimentos e mudança climática: o elo esquecido, produzido pela Grain (em português, "Grão"), entre 44% e 55% dos gases do efeito estufa, que provoca aquecimento em partes do globo terrestre e esfriamento em outras, são criados durante os processos do sistema agroalimentar, com a soma das emissões decorrentes do desmatamento, da produção agrícola em si, do processamento, transporte e empacotamento dos alimentos e dos desperdícios gerados pela cadeia alimentar global. A Grain é uma organização internacional sem fins lucrativos que desenvolve ações de apoio aos pequenos agricultores e aos movimentos sociais na luta pela construção de sistemas alimentares baseados na biodiversidade e na sustentabilidade.

Manter uma produção ecológica e sustentável é a meta permanente do agricultor José Francisco Klein, 61 anos, de São Leopoldo. Ele dedicou sua vida inteira à lide com a terra. A exceção foi um período de quatro anos em que trabalhou na indústria, caracterizado por ele como “uma prisão”. Aposentou-se como zelador de um sítio e, desde então, trabalha com o cultivo de pelo menos 26 espécies de frutas, raízes e hortaliças na chácara de três hectares da qual é proprietário. Entre as verduras cultivadas, estão vários tipos de alfaces, rúculas, couves, radiches, repolhos e espinafres. Tudo produzido de forma absolutamente orgânica, sem o uso de agrotóxicos ou de fertilizantes químicos. A única perda que Klein conhece na sua lavoura é aquela causada principalmente pelos fungos, os quais atingiram de 15 a 20% da produção de hortaliças nos últimos meses devido às chuvas.

“Não uso defensivos agrícolas ou adubos químicos. Só uso adubo natural e orgânico. No dia em que tiver que usar [os insumos químicos], paro de plantar. Se tiver que usar, vou na ‘Ceasa’ [central de abastecimento], compro os produtos e os revendo. Seria mais fácil. Mas eu gosto de trabalhar com a terra. Acredito que temos que conquistar o dinheiro com o próprio suor. Além disso, posso garantir para os meus clientes o que eles estão comprando, porque sou eu quem produz. Isso me deixa tranquilo. Temos que produzir coisas boas. Claro, o preço é um pouquinho mais alto, mas os clientes preferem estes produtos mesmo assim. E vale a pena ver a satisfação deles”, declara o agricultor.

Para além destas perdas provocadas por fungos e insetos, Klein desconhece o que seja desperdício em sua lavoura. Toda a produção é aproveitada. Enquanto o município não organiza uma feira específica para produtos ecológicos e orgânicos onde possa comercializar sua colheita, ele próprio percorre as residências próximas de clientes ou os recebe em sua chácara para negociar os alimentos. A propaganda é feita de boca a boca, por quem se preocupa com o que leva à mesa de casa. As hortaliças e frutas saem das mãos do agricultor direto para as mãos dos consumidores — Klein só colhe os alimentos no momento da entrega. Quando não há compradores, ele entra em contato com a pessoa responsável por administrar uma creche comunitária na cidade, que então se desloca até a chácara para retirar gratuitamente as verduras. Tudo sai diretamente do pé para alimentar as crianças da instituição.

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